Artigo de Fernando Gabeira
Se o PT pusesse fogo em Brasília e alguém protestasse, a
resposta viria rápida: onde você estava quando Nero incendiou Roma? Por que
não protestou? Hipocrisia.
Com toda a paciência do mundo, você escreve que ainda não
era nascido, e pode até defender uma ou outra tese sobre a importância
histórica de Roma, manifestar simpatia pelos cristãos tornados bodes
expiatórios. Mas é inútil.
Você está fazendo, exatamente, o que o governo espera. Ele
joga migalhas de nonsense no ar para que todos se distraiam tentando catá-las
e integrá-las num campo inteligível.
Vi muitas pessoas rindo da frase de Dilma que definiu a
causa do escândalo da Petrobrás: a omissão do PSDB nos anos 1990. Nem o riso
nem a indignação parecem ter a mínima importância para o governo.
Depois de trucidar os valores do movimento democrático que
os elegeu, os detentores do poder avançaram sobre a língua e arrematam
mandando a lógica elementar para o espaço. A tática se estende para o
próprio campo de apoio. Protestar contra o dinheiro de Teodoro Obiang, da
Guiné Equatorial, no carnaval carioca é hipocrisia: afinal, as escolas de
samba sempre foram financiadas pela contravenção.
O intelectual da Guiné Juan Tomás Ávila Laurel escreveu
uma carta aos cariocas dizendo que Obiang gastou no ensino médio e superior de
seu país, em dez anos, menos o que investiu na apologia da Beija-Flor. E
conclui alertando os cariocas para a demência que foi o desfile do carnaval de
2015.
O próprio Ávila afirma que não há números confiáveis
na execução do orçamento da Guiné Equatorial. Obiang não deixa espaço
para esse tipo de comparação. Tanto ele como Dilma, cada qual na sua esfera,
constroem uma versão blindada às análises, comparações numéricas e ao
próprio bom senso.
O mundo é um espaço de alegorias, truques e efeitos
especiais. Nicolás Maduro e Cristina Kirchner também constroem um universo
próprio, impermeável. Se for questionado sobre uma determinada estratégia,
Maduro poderá dizer: um passarinho me contou. Cristina se afoga em 140 batidas
do Twitter: um dia fala uma coisa, outro dia se desmente.
Numa intensidade menor do que na Guiné Equatorial, em nossa
América as cabeças estão caindo. Um promotor morre, misteriosamente em
Buenos Aires, o prefeito de Caracas, Antonio Ledezma, só e indefeso, é
arrastado por um pelotão da polícia política bolivariana.
Claro, é preciso denunciar, protestar, como fazem agora os
argentinos e os venezuelanos. Mas a tarefa de escrever artigos, de argumentar
racionalmente, parece-me, no Brasil de hoje, tão antiga como o ensino do latim
ou o canto orfeônico.
Alguma evidência, no entanto, pode e deve sair da narrativa
dos próprios bandoleiros. Quase tudo o que sabemos, apesar do excelente
trabalho da Polícia Federal, veio das delações premiadas.
Alguns dos autores da trama estão dentro da cadeia. Não escrevem
artigos, apenas mandam bilhetes indicando que podem falar o que sabem.
Ao mesmo tempo que rompe com a lógica elementar, o governo
prepara sua defesa, organiza suas linhas e busca no fundo do colete um novo
juiz do Supremo para aliviar sua carga punitiva. O relator Teori Zavascki, na
prática, foi bastante compreensivo, liberando Renato Duque, o único que tinha
vínculo direto com o PT.
Todas essas manobras e contramanobras ficarão marcadas na
história moderna do Brasil. Essa talvez seja a razão principal para continuar
escrevendo.
Dilmas, Obiangs, Maduros e Kirchners podem delirar no seu
mundo fantástico. Mas vai chegar para eles o dia do vamos ver, do acabou a
brincadeira, a Quarta-Feira de Cinzas do delírio autoritário.
Nesse dia as pessoas, creio, terão alguma complacência
conosco que passamos todo esse tempo dizendo que dois e dois são quatro.
Constrangidos com a obviedade do nosso discurso, seguimos o nosso caminho
lembrando que a opressão da Guiné Equatorial é a história escondida no
Sambódromo, que o esquema de corrupção na Petrobrás se tornou sistemático
e vertical no governo petista.
Dilma voltou mais magra e diz que seu segredo foi fechar a
boca. Talvez fosse melhor levar a tática para o campo político. Melhor do que
dizer bobagens, cometer atos falhos.
O último foi confessar que nunca deixou de esconder seus
projetos para ampliar o Imposto de Renda. Na Dinamarca (COP 15), foi um pouco
mais longe, afirmando que o meio ambiente é um grande obstáculo ao
desenvolvimento.
O País oficial parece enlouquecer calmamente. É um pouco
redundante lembrar todas as roubalheiras do governo. Além de terem roubado
também o espaço usual de argumentação, você tem de criticar politicamente
alguém que não é político, lembrar o papel de estadista a uma simples
marionete de um partido e de um esquema de marketing.
O governo decidiu fugir para a frente. Olho em torno e vejo
muitas pessoas que o apoiam assim mesmo. Chegam a admitir a roubalheira, mas
preferem um governo de esquerda. A direita, argumentam, é roubalheira, mas com
retrocesso social. Alguns dos que pensam assim são intelectuais. Nem vou
discutir a tese, apenas registrar sua grande dose de conformismo e
resignação.
Essa resignação vai tornando o País estranho e
inquietante, muito diferente dos sonhos de redemocratização. O rei do
carnaval carioca é um ditador da Guiné e temos de achar natural porque os
bicheiros financiam algumas escolas de samba.
A tática de definir como hipocrisia uma expectativa sincera
sobre as possibilidades do Brasil é uma forma de queimar esperanças. Algo
como uma introjeção do preconceito colonial que nos condena a um papel
secundário.
Não compartilho a euforia de Darcy Ribeiro com uma
exuberante civilização tropical. Entre ela e o atual colapso dos valores que
o PT nos propõe, certamente, existe um caminho a percorrer.
Artigo publicado no Estadão em 27/02/2015
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