Artigo de Fernando Gabeira
Na fronteira do Piauí com o Ceará, onde está o cânion do Rio
Poti, as pedras são a grande atração. Suas formas nos desafiam, as composições
derrotam nosso desejo de classificá-las. A exceção são as pedras que lembram
bichos. Nesse caso ganham um nome: Pedra da Baleia, da Tartaruga. Na última
viagem a Brasília, examinando a configuração que o governo tomou ao longo da
crise, senti-me desafiado a descrevê-lo: que bicho é esse? Como muitas pedras
no cânion do Rio Poti, não é nada parecido com imagens familiares.
Acuado pela pressão das ruas, o PT lançou mão de Joaquim
Levy para tocar a economia e do PMDB para tocar a política. Na Câmara dos
Deputados, Eduardo Cunha reina, às vezes, com um enfoque autoritário. Proibiu
que presos fossem à CPI, mas blindando o intermediário do PMDB, Fernando
Baiano. Como o PMDB se dispõe a fazer avançar a agenda do capitalismo e suas
metamorfoses e promete garantir a liberdade de imprensa, abriu um crédito,
senão de simpatia, pelo menos de tolerância.
Outro dia, uma emissora de TV, extremamente crítica ao
governo, ressaltava a habilidade de Temer em bloquear a CPI do BNDES. A
locutora não queria entrar no mérito, apesar de destacar essa qualidade.
Acontece que é impossível dissociar a habilidade do objetivo de sua ação:
desvendar a atuação do banco é algo importante para o momento, e fundamental
quando se escrever a história desses anos de governo petista.
Numa conferência, Fernando Henrique Cardoso afirmou que a
sociedade não pode viver em guerra e que, em algum momento, haveria um acordo.
Fernando Henrique está equivocado sobre a necessidade de seu partido manter
distância do movimento das ruas. E está equivocado quando diz que impeachment é
uma bomba atômica. O impeachment pedido pelas multidões não é uma bomba
atômica. É uma batata quente nas mãos de um grupo que não gosta de combater,
que sonha em cruzar as estradas enlameadas sem sujar o guarda-pó.
Se houver algum tipo de acordo, sem consulta às ruas, será
apenas uma tentativa de esvaziar o movimento. E confirmar, como dizem tantos
jornalistas próximos ao governo, que as multidões não têm foco e vão se dispersar.
Como fazer um acordo com Joaquim Levy sobre o ajuste fiscal?
Ou com Temer sobre a paz política? Um influencia a economia, outro, a política,
mas o PT continuará dominando a máquina.
Que sentido tem um esforço fiscal com a máquina dominada
pelo PT? Eles não aceitam cortes nem admitem a corrupção em todos os níveis do
governo. Vamos poupar para que a máquina continue sendo assaltada? Estamos
falando com intermediários do PT, Levy e Temer.
Que tipo de horizonte político o PMDB pode garantir? Renan
Calheiros e Eduardo Cunha estão sendo investigados pela PF. Mas não deixam o
cargo enquanto o processo se desdobra. Uma demanda desse tipo pode ser
quixotesca agora. Mas não no futuro, quando o país amadurecer. O máximo que o
PMDB pode fazer é segurar uma das alças do caixão da Nova República. Isto é
participar de uma fase de transição que leve a 2018.
A configuração que se criou em Brasília, com o PMDB ocupando
espaços do PT e Joaquim Levy negociando o ajuste, libera Dilma para uma atuação
simbólica, de rainha da Inglaterra.
Enquanto Levy trabalha e o PMDB tranquiliza, o PT apenas
hibernará. Se o ajuste econômico for um fracasso, será um fracasso da política
dos adversários.
Nunca vi uma situação como essa, ou mesmo um partido tão
rejeitado nas ruas. Ao perder a iniciativa na economia e na política, só lhe
resta se apegar aos cargos no governo. E esperar um momento para levantar a
cabeça. Este momento para mim é muito remoto. Milhões de brasileiros acompanham
os escândalos. É uma ilusão pensar que esquecem. O ano que vem vai mostrar aos
candidatos municipais do PT o tamanho da conta a pagar.
Não adianta construir um esconderijo perfeito. Pouco se
avançará sem a punicão dos assaltantes da Petrobras e outras empresas do
governo. E nada se avançará sem que os partidos assumam sua responsabilidade
nos escândalos de corrupção.
Fernando Henrique tem razão: a sociedade não pode viver em
guerra permanente. Mas também não pode ser vítima de um assalto permanente.
Esse é o grande nó a ser desatado. Alguns conhecidos de
esquerda acham que a corrupção é secundária, angústia de pequenos burgueses.
Outros me chamam de velho conservador e dizem que se viver mais dez anos vou
defender a monarquia absolutista. Eles esperam que viva mais. Fico agradecido.
Teremos tempo para cuidar de nossas divergências.
Mesmo porque agora o poder, de uma certa maneira, se
deslocou. Vamos cuidar do PMDB, do ajuste fiscal e esperar que a esquerda
oficial saia da toca. Muitos dos seus quadros não andam nas ruas, não sabem o
que os espera.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 19/04/2014
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