Artigo de Fernando Gabeira
Navegando no pântano do Rio Pandeiros, no norte de Minas,
tive uma intuição sobre o curso das coisas no Brasil. As plantas aquáticas
dominavam o caminho, não se via água. Onde estava o leito do rio? Nosso
objetivo era alcançar o São Francisco onde o Rio Pandeiros desemboca.
O barco avançava entre os aguapés ao som do ruído do choque
das plantas com o metal do casco e percebi que sozinho ficaria perdido na
imensidão daquele pântano verde-garrafa. Por isso levamos o barqueiro Pedro,
que conhece as pequenas e fugidias trilhas da água. E ele nos levou, depois de
quase três horas de viagem, ao encontro do São Francisco.
A verdade é que na volta, pelo mesmo caminho, o motor do
barco fundiu. Mas Pedro faz o mesmo percurso quase todo dia. Sabe se mover no
pântano.
A sensação de se mover de forma errática naquele território
de mil hectares seria insuportável. No entanto, ela se parece com a que vivemos
na cena nacional. Os atores aparentam não conhecer as trilhas do pântano. E se
perdem no emaranhado das folhas, retrocedem achando que avançam.
Falemos dos projetos de “bondades” que o Congresso aprovou e
Dilma vetou. Derrubar os vetos da presidente, sem dúvida, a enfraqueceria. Mas
ao custo de perpetuar a mesma ilusão que nos jogou no buraco: fazer o bem sem
olhar o momento ou saber como pagar.
O governo, então, parece ter adotado o pântano, como os
jacarés. Delira em público sobre impostos, da CPMF à Cide, e termina sua noite
nos cassinos, sonhando em legalizar o jogo. Com quem será, com quem será que a
gente vai se ferrar?
Todos sabem que não se sai do pântano sem um timoneiro. E a
maioria considera o impeachment inevitável. Mesmo o PT já deve estar discutindo
internamente se a renúncia ou o impeachment pode servir-lhe melhor na outra
vida. Se houver outra vida depois da que se perdeu na delinquência.
Dos atores pantaneiros, o que me parece ter um esboço do
caminho é o PMDB. Recusou indicar ministros e marcou para dia Proclamação da
República a convenção que pode romper com o governo federal. Daí para se unir
com a oposição e despachar Dilma é somente um passo.
Não é um trajeto fácil, porque o barco do PMDB ainda vai
enfrentar a tempestade da Lava Jato, mais ameaçadora ainda com o surgimento de
novas delações premiadas. E alguns dos seus quadros não resistem a participar
de um governo, mesmo depois de morto.
E há as grandes dificuldades do pós-impeachment. As empresas
brasileiras perderam R$ 1 trilhão em valor de mercado. O dólar aumenta
vertiginosamente, com reflexos na economia, no cotidiano e na produtividade de
quem depende de produtos importados.
São instrumentos de trabalho que não se vendem no posto
Ipiranga. Falava de tudo isso, segunda-feira, num encontro com amigos em
Niterói, no momento em que o motorista que me esperava na porta foi sequestrado
e assaltado.
Com os últimos arrastões no Rio e a insegurança que sinto
nos meus deslocamentos, deveria ter enfatizado algo que apenas esbocei em
alguns artigos. As duas crises que se alimentam mutuamente, a política e a
econômica, começam a disparar o gatilho da que realmente vai mudar a qualidade
do processo: a crise social.
Dois importantes termômetros são o índice de desemprego e o
aumento da violência urbana. Daí o sentido de urgência não só de despachar
Dilma, de mas esboçar uma visão de como sair do pântano. Algumas realidades não
desaparecem com a saída de Dilma. O rombo no Orçamento, por exemplo. Teremos
pouco dinheiro para demandas crescentes.
Creio que as trilhas do impeachment são visíveis no momento.
Para o depois, nem tanto.
Existe um quase consenso, do qual compartilho, de que é preciso
reconquistar a confiança do mercado. Inúmeras vezes defendi essa tese no
Parlamento, a de uma sintonia com o mercado. No entanto, sempre ressalvei que
precisava trabalhar com outras coordenadas, senão iria soltar a voz na Bolsa de
Valores, e não no Congresso Nacional.
O desafio de sintonizar-se com o mercado, articulando as
diferentes dimensões da crise, é dos políticos. Talvez esteja dramatizando um
pouco, mas em outro contexto. O Congresso deveria estar fervilhando não apenas
com o impulso da queda de Dilma, mas no debate das opções que se abrem.
Em linhas mais gerais, ficou claro que só é possível avançar
respeitando as leis que regem o capitalismo. Só tem sentido contrariar essas
grandes realidades quando se tem outro modelo como estratégia. Exemplo: o
“socialismo do século 21” na Venezuela. Na verdade, uma ruína do século 21.
Ao longo destes anos, o governo do PT suscitou um arsenal
crítico que é um ponto de referência. Mudar a política externa, hoje talvez
seja fácil, pelo menos no curto período que vai até 2018: bastaria inverter as
prioridades do governo petista. Isso não significa voltar as costas para os
vizinhos continentais. Mas diante das potencialidades do País, não podemos
distanciar-nos da inovação tecnológica.
A tarefa central de um governo minimamente articulado será a
de levar o País para 2018, restabelecendo um fio de confiança no processo
político brasileiro. Aí, então, será possível renovar a esperança e prosseguir
na tarefa gigantesca não só de resolver a crise econômica, mas todos os
problemas que incomodavam quando a economia, para muitos, ainda parecia bem em
2013 e milhões de pessoas foram às ruas exigir melhores serviços públicos.
Quando caiu o Muro de Berlim, os camelôs vendiam seus
pedaços aos turistas. O material acabou e os camelôs passaram a vender pedaços
de muro falsificados. Não sei se vejo bem, mas a ideia me ocorreu quando
comecei um livro sobre o meu aprendizado da democracia nos trópicos.
Este momento histórico mostra a implosão, no País, do último
pedaço falsificado do Muro de Berlim.
Artigo publicado no Estadão em 25/09/2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário