Da IstoÉ
Em uma tarde de fevereiro de 2005, Taisiane Simião viu o
então presidente Luiz Inácio Lula da Silva descer do céu, no bairro de Canaã,
em Caruaru, Pernambuco.“Eu jogava bola com os meninos quando voaram dois
helicópteros por cima da gente”, diz. “Saímos correndo do campinho e fomos para
perto da cerca. Na época eu não sabia, mas era o Lula. Ele se agachou,
perguntou nossos nomes e idades. Aí deu
lanche, pão e bolo. Depois, sumiu.” Taisiane – no retrato ao lado, ela é a
criança que encara o fotógrafo com olhos sonhadores – tinha 5 anos e estava
prestes a entrar na escola. A vida era dura para a família dela. Ivonete, a
mãe, fazia bicos como faxineira, mas o dinheiro não dava para nada. João, o
pai, ganhava uns trocados como servente de pedreiro. Taisiane e outras seis
pessoas viviam em uma casa de um cômodo, sem água encanada e banheiro. Na rua,
o esgoto era a céu aberto. A chegada estrondosa de Lula, que desceu do
helicóptero como um herói que retornou para salvar o seu povo, mexeu com aquela
garotinha. O presidente, afinal, encarnava a esperança de um futuro melhor.
Nos últimos 13 anos, desde que o PT chegou ao centro do
poder, Lula tem repetido a mesma cantilena. A grande marca da gestão petista,
diz ele, é a inclusão social. Para Lula e seus seguidores, políticas públicas
como o Bolsa-Família, o Farmácia Popular e o programa Minha Casa, Minha Vida
transformaram a vida de milhões de brasileiros ao oferecer oportunidades
negadas em governos anteriores. Na campanha presidencial, Dilma Rousseff
conquistou votos ao afirmar que seu partido foi o único capaz de diminuir
drasticamente a distância que separa os pobres dos que estão no topo da
pirâmide. É preciso reconhecer que, durante muito tempo, esse argumento pareceu
válido. Se a principal marca do governo Fernando Henrique Cardoso foi a
estabilidade monetária, na era petista muita gente ascendeu socialmente. O
símbolo máximo dessa escalada atende pelo nome de “classe C”, a nova camada
social que fez disparar os níveis de consumo no País. Tudo isso poderia ser
verdade até pouco tempo atrás, mas não agora. A bandeira do avanço social não
pode mais ser hasteada pelos petistas. O discurso da inclusão, tão caro a Lula
e Dilma, ficou sem sentido. Ele faz parte do passado. Acabou.
Os números falam por si só. De acordo com dados do
Ministério do Planejamento, em 2016 o governo Dilma vai cortar pelo menos R$ 26
bilhões dos programas sociais, o que equivale a quase todo o investimento feito
por uma empresa do porte da Petrobras durante um ano. Uma conta rápida mostra
como a tesoura de Dilma está afiada, e em que direção ela aponta. Com os R$ 26
bilhões, é possível construir mais de 17 mil leitos de UTI ou 6 mil creches. Só
o programa Minha Casa, Minha Vida será ceifado em R$ 9 bilhões, ou cerca de 50%
do total gasto no ano passado. Com isso, a equipe governamental decidiu
suspender o lançamento da já prometida terceira fase do programa de moradia.
O PAC Saneamento, indispensável para levar água e esgoto
para regiões pouco desenvolvidas do Brasil – como a Caruaru de Taisiane –,
perderá R$ 2 bilhões. Para se ter uma ideia da agressividade do ajuste, o
orçamento de 2015 previa R$ 2,8 bilhões para este programa. O de 2016,
portanto, destinará apenas R$ 800 milhões para a construção de obras
sanitárias. Diante desses dados, não é exagero dizer que o PT de Dilma está
virando as costas para os mais pobres. O discurso da inclusão pode soar bonito,
mas se tornou fajuto. Na prática, o segundo mandato da presidente ficará
marcado como o da exclusão. Muitos brasileiros terão benefícios suprimidos pela
insensibilidade de Dilma. O novo jeito petista de governar suscita dúvidas. Os
avanços sociais dos últimos anos resistirão ao atual retrocesso? Qual foi o
real impacto dos programas de inclusão instituídos na última década?
Dez anos depois que Lula desceu do helicóptero para se
encontrar com as crianças de Caruaru, pouca coisa mudou. Elas cresceram, mas a
vida continuou tão difícil quanto antes. Enquanto Dilma ganhava duas eleições
presidenciais, os pernambucanos da foto que foi usada para simbolizar uma era –
a da inclusão social – tiveram que enfrentar muitos obstáculos. Taisiane
abandonou a 5ª série aos 13 anos para se dedicar ao trabalho em uma confecção.
Aos 15, ficou grávida. Hoje, com 16, cuida do bebê Ângelo Miguel e faz algum
dinheiro costurando roupas. Ela ainda mora, com outras sete pessoas, no mesmo
casebre de um quarto, que continua sem água encanada e rede de esgoto. Josivan,
um dos irmãos de Taisiane, tem um sonho prosaico: tomar banho todos os dias. No
máximo, faz isso quatro vezes por semana, porque nunca tem água em casa. Lula
tirou uma foto bacana com as crianças, mas a dura verdade é que seus programas
sociais não fizeram nada por elas. A escola não foi capaz de mantê-las por
perto. Não apareceram boas oportunidades de emprego. Os pais de Taisiane vivem,
como faziam há 10 anos, com os recursos do Bolsa Família, mas eles não deram um
passo sequer à frente. Permaneceram imóveis, asfixiados pela ausência de
perspectivas.
A falta de horizontes também aflige Jackeson Manuel da Silva
de Jesus, o garoto de 9 anos que, na foto, olha sério para Lula, como se
adivinhasse os desafios que o destino reservaria para ele. Em 2005, quando
encarou o presidente, Jackeson não imaginaria que, em pouco tempo, nunca mais
pisaria em uma escola. Ele deixou os estudos por volta dos 11 anos para
trabalhar como passador de roupas. Até hoje, Jackeson não sabe o dia em que
nasceu e continua sobrevivendo de serviços informais, apesar da promessa de
pleno emprego do governo petista. Na semana passada, depois de um mês sem se
ocupar, conseguiu alguns reais instalando uma cisterna. Se depender de Dilma,
vai faltar dinheiro para esse tipo de trabalho. De acordo com o plano
orçamentário de 2016, o investimento na construção de cisternas, fundamentais
para armazenar água potável e abastecer famílias do agreste brasileiro, vai
cair pela metade.
Jackeson é mais um entre milhões de trabalhadores sem
qualificação profissional. E isso é ruim por diversos motivos. Para os
empresários, a escassez de mão de obra qualificada afeta os índices de
produtividade de suas companhias. Para o governo, a informalidade reduz a
arrecadação de impostos. Para os trabalhadores, ela representa uma barreira que
freia o crescimento pessoal. No momento de romper esse ciclo pernicioso, o
governo Dilma faz o oposto. O Pronatec, programa social voltado para o ensino
profissionalizante, foi um dos mais afetados pela navalha da presidente. Mesmo
com o lema “Brasil, Pátria Educadora”, Dilma mandou desidratar o programa em R$
2,3 bilhões. Além de ter endurecido as regras de acesso ao benefício, o projeto
Ciência Sem Fronteiras, que promove intercâmbio de estudantes, terá seu
orçamento reduzido em cerca de 50%, passando de R$ 4,1 bilhões para R$ 2,1
bilhões.
Os cortes de R$ 26 bilhões nos programas sociais
correspondem a 74% do superávit primário (economia para o pagamento dos juros
da dívida) prometido pela União em 2016. Ou seja: para atingir uma meta
monetária, Dilma não se envergonhou de dizimar benefícios conquistados a duras
penas nos últimos anos. Enquanto não corta, de vedade, na própria carne (a
reforma ministerial saiu muito mais tímida do que se previa), a presidente
eliminou recursos até de áreas sensíveis. Ela deixará de investir, em 2016, R$
3,3 bilhões na construção de creches e pré-escolas. Seria mais do que justo
arrancar dinheiro de outro lugar, num Estado cercado de pompas e compadrio,
para garantir o direito de mães levarem seus filhos para lugares seguros
enquanto trabalham. É a falta de creches que impede pessoas como a pernambucana
Taisiane Simião de encontrar um emprego, ou de voltar a estudar, porque ela é
obrigada a ficar com o filho o dia inteiro.
Rubson Deivid Leite, 17 anos, diz que o seu sonho é viajar
para fora do Brasil, mas ele está a anos-luz de realizá-lo. O menino, o de
sorriso sapeca na foto de 2005 com Lula, repetiu diversas vezes a primeira
série até que, aos 13, desistiu de estudar. Conhecido no bairro como Rubinho,
ele trabalha pregando botões e tachinhas em roupas e já é pai do recém-nascido
Nathan Rafael. Os dois moram de favor na casa dos avós de sua mulher, que não
trabalha. A renda da casa é complementada pela venda de “dudu”, o picolé
caseiro de saquinho. Rubson é o retrato acabado da omissão do Estado, que não
ofereceu as bases mínimas para que ele pudesse mudar seu destino. Lula
fracassou com o garoto.
A incompetência generalizada do governo Dilma eclipsou
muitas conquistas dos últimos anos. Pesquisas mostram que a crise política e
econômica sem fim atingiu em cheio a classe C, divisão social mais beneficiada
pelo crescimento do País. O PT gabava-se de ter ajudado os integrantes dessa
faixa de renda a viajar de avião, comprar carro zero quilômetro e pagar
faculdade para os filhos. Mas a festa acabou cedo. Nos últimos 12 anos, o
Brasil perdeu quase 1 milhão de empregos, e boa parte deles diz respeito a
trabalhadores da classe C. Uma pesquisa realizada em agosto pelo instituto Data
Popular mostra o tamanho do problema. De acordo com o levantamento, 94% das
famílias foram obrigadas a mudar hábitos de consumo, pelo simples motivo de não
conseguirem honrar seus compromissos. O mesmo estudo mostrou que 62% dos
brasileiros da classe C fazem bico para complementar a renda, enquanto metade
deles deixou de pagar ao menos uma conta. Os seja, as pessoas trabalham mais e
ganham menos.
Presidente do Data Popular, Renato Meirelles define com
clareza o que se passa com a chamada nova classe média. “As famílias estão
fazendo um ajuste fiscal em casa”, diz. Entenda-se por isso o corte radical de
gastos, e mais tesouradas devem vir por aí. “Houve um incentivo exagerado do
crédito e agora a conta chegou”, afirma Fernando Luis Schuler , professor e
cientista político do Insper. “A inadimplência bateu recorde e vários outros
indicadores preocupam. O que acontece hoje é o esgotamento das famílias”. A
oferta abundante de crédito foi praticamente uma política de Estado dos
governos petistas, mas nenhum País saudável sobrevive com o consumo
descontrolado. Nasceram daí a inflação alta e o calote, dois monstros que
travam a recuperação econômica.
A cabeleireira Elisabete Kanzler, 55 anos, tinha no mural de
fotos pregado na parede de seu salão em São Paulo um retrato dela ao lado de
Lula. De uns tempos para cá, tudo começou a dar tão errado que ela resolveu se
livrar da recordação. Com a crise, o movimento do salão caiu 30% ao mesmo tempo
em que os preços dos produtos de beleza dispararam. Se repassar a alta de
custos, o sumiço da clientela vai ser maior ainda. “Tenho feito acrobacias para
pagar as contas”, diz Elisabete. O encarregado de manutenção, Agmário Carneiro,
32 anos, enfrenta o mesmo sufoco financeiro. Ele não recebe salário há dois
meses. Para dar um alívio nas contas, foi obrigado a vender um carro. “O ano
está complicado demais”, diz. Atrasos também se tornaram rotineiros para a
secretária Maurani Varanda Ramos, 44 anos, que está sem receber o salário há
três meses. O marido Jefferson, 48 anos, está desempregado. Entre atrasar a
prestação do apartamento em Cotia (SP), custeado pelo programa Minha Casa,
Minha Vida, e o cartão de crédito, o casal ficou com a segunda opção. Mas os
juros altos demais – na semana passada, o do rotativo chegou a 400% ao ano –
fizeram a dívida dar um salto e agora eles não sabem o que fazer. “Tenho medo
de perder tudo o que conquistei”, diz Maurani.
Pouco depois que a foto de Lula em Caruaru foi tirada, o
senador Cristovam Buarque (PDT-DF) resolveu visitar as crianças e suas
famílias. Preocupado com o futuro delas, ele enviou uma carta ao presidente,
com conteúdo premonitório. Dizia o texto: “No olhar dessas crianças, vi a
tragédia que herdamos. Mas vi outra maior: a possibilidade dessa realidade
continuar com os filhos dessas crianças. Uma herança que, aí sim, seria deixada
por nós”. Anexou uma série de propostas que, imaginava, poderia evitar a perpetuação
da miséria. Uma década depois, Buarque retomou o contato com aquelas famílias e
descobriu que a realidade continua tão áspera quanto antes. Agora, pretende
escrever uma nova carta, desta vez endereçada à presidente Dilma.
Nenhum comentário:
Postar um comentário