Da IstoÉ
A revelação de ISTOÉ, na última semana, de que a presidente
Dilma Rousseff reincidiu nas pedaladas em 2015, conferiu data e hora para o
pontapé inicial do impeachment. O rito já estava desenhado pela oposição. Mas
uma decisão do STF suspendendo liminarmente a liturgia do processo, ao mesmo
tempo em que embaralhou o jogo do afastamento de Dilma, deu mais poder à caneta
do presidente da Câmara, Eduardo Cunha. E Cunha, descolado em se valer dos
pontos fracos de aliados e adversários, não perde uma chance dessas. O
tabuleiro do xadrez político foi mais uma vez bagunçado. Os movimentos mais
bruscos partiram do Planalto. Em tentativas desesperadas de se salvar, o
governo da petista já tinha celebrado uma série de acertos espúrios. Rolou na
lama do varejo político, ao entregar os anéis e os dedos ao baixo clero do
PMDB. Demitiu auxiliares que tinha na mais alta conta durante a desastrada
reforma ministerial e alçou ao primeiríssimo escalão do Planalto políticos mais
alinhados com o ex-presidente Lula. Quando parecia que não restava mais nada em
termos de conchavos para se safar de um processo de impedimento, Dilma passou a
costurar um acordo indecente com Cunha, o deputado enrolado com traficâncias na
Petrobras que até outro dia era o seu pior adversário. As negociações avançaram
depois que o andamento ou não do impeachment passou a depender apenas de uma
decisão monocrática do presidente da Câmara.
Assim, de arquiinimigo, o peemedebista virou o malvado
favorito de Dilma, do PT e de Lula. O acordão choca o País e chega a corar de
vergonha os próprios petistas – cujos padrões éticos já não servem de exemplo
para ninguém há muito tempo. Quem afirma não é um político de oposição, mas o
ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, do PT. Segundo ele, fazer um
acordão com Eduardo Cunha, é “entregar a alma ao diabo”.
O problema chave é que Dilma e Cunha confabulam, treinam
jogadas ensaiadas, tentam ganhar tempo, mas nunca estiveram tão fragilizados. O
acerto entre ambos é tão precário quanto a decisão do STF de cancelar o rito
inicial do impeachment – as liminares concedidas por Teori Zavascki e Rosa
Weber ainda podem ser derrubadas durante votação do mérito em plenário. Dilma
não tem poderes para garantir a salvação a Cunha. Mas o governo dispõe de meios
políticos para evitar a cassação dele no Conselho de Ética. E isso é o melhor
dos mundos para Cunha. O que ele mais teme é perder o foro privilegiado e
acabar em Curitiba, preso pelas mãos do juiz Sérgio Moro. Quem consegue
controlar a agenda da Lava Jato?
Cunha, por seu lado, pode até não deferir o pedido de
impeachment da oposição. A presidente, neste caso, ganharia um respiro
momentâneo. Nada impede, no entanto, que novas revelações empurrem Dilma ao
cadafalso. Nem que um outro presidente da Câmara, em substituição a Cunha,
coloque em marcha o processo de impedimento da petista.
Com ou sem o apoio do governo, dificilmente Eduardo Cunha
conseguirá sobreviver. Na sexta-feira 16, em parecer enviado ao STF, depois de
pedir abertura de novo inquérito, o procurador-geral da República, Rodrigo
Janot, afirmou que há indícios suficientes de que o dinheiro encontrado nas
contas no exterior atribuídas ao deputado, sua mulher Cláudia Cruz e filha
Danielle Cunha “são produto do crime”. As contas de Cunha na Suíça receberam
depósitos de pelo menos 4,8 milhões de francos suíços e US$ 1,3 milhão,
equivalentes a R$ 23,8 milhões. Os documentos apresentados pelo presidente da
Câmara para abertura de uma de suas contas levaram o banco Julius Baer a
estimar seu patrimônio em mais de 37 vezes do declarado à Justiça Eleitoral.
No final da semana, a PGR também recebeu das autoridades
suíças cópias do passaporte, assinaturas e dados pessoais do presidente da
Câmara. No material, a Procuradoria identificou uma frota de carros de luxo
utilizados por Cunha e família. Entre os veículos, avaliados em R$ 940 mil, há
dois Porsches, uma BMW e cinco SUVs.
Foi incluído na denúncia o teor da delação premiada do
lobista Fernando Soares, conhecido como Fernando Baiano. Em um dos depoimentos
da delação, Baiano disse que entregou entre R$ 1 milhão e R$ 1,5 milhão em
espécie no escritório do presidente da Câmara. O novo revés torna praticamente
insustentável a permanência de Cunha no comando da Câmara. E o risco de ele vir
a perder o mandato é grande. Na semana passada, um grupo de parlamentares do
PSOL e da Rede Sustentabilidade protocolou um pedido de investigação contra o
peemedebista por quebra de decoro no Conselho de Ética, assinada por cerca de
50 deputados, 32 deles da bancada do PT. Artífice, ao lado de Lula, do acordão
com Cunha, a presidente Dilma também permanece com uma espada pendendo sobre
sua cabeça. Na quinta-feira 15, os juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr,
integrantes da oposição e dos movimentos de rua protocolaram num cartório de
São Paulo um novo pedido de impeachment com base das pedaladas fiscais de 2015
reveladas com exclusividade por ISTOÉ.
Em meio às desconfianças sobre a viabilidade do acordão, em
curso até o final da semana, Dilma e Cunha pareciam encarnar uma nova versão da
parábola do sapo e do escorpião. No caso, ao longo da travessia do rio, os dois
vão se alternando nos papéis de sapo e escorpião. É difícil identificar quem é
quem. E qual deles será o primeiro a ferir de morte o parceiro de jornada.
Durante a semana, enquanto o ministro Jaques Wagner
encontrava-se com Cunha na Base Aérea de Brasília para perguntar o que ele
queria receber em troca para salvar Dilma de um impeachment, a presidente da
República entabulava o mais duro discurso desde o início da crise contra o que
chamou de “moralistas sem moral”. Sentindo-se certamente estimulada por uma
plateia favorável, composta por integrantes da Central Única dos Trabalhadores,
a petista chamou a oposição de “golpista” e teve a ousadia de perguntar: “Quem
tem força moral, reputação ilibada e biografia limpa suficientes para atacar a
minha honra?”. A fala indignada foi amplamente aplaudida pelos sindicalistas.
Acordos na surdina e bravatas públicas encenadas são artes
do PT. Antes do encontro de Wagner na Base Aérea, o chefe da Casa Civil já
havia estado com Cunha no dia 7 de outubro, na residência oficial de Cunha na
tentativa de reestabelecer o diálogo. No início de outubro, conforme apurou
ISTOÉ, um outro ministro, de passagem pelo Congresso, foi convidado a se
dirigir ao gabinete de Cunha a sós, em uma visita de cortesia - comportamento
que em tese faria parte de uma relação natural entre os dois poderes. Durante a
conversa, o anfitrião deu sinais de que, ao contrário de posicionamentos
anteriores, dessa vez haveria brecha e ele toparia construir pontes com o
governo. Governo e Cunha começavam ali a costurar a aliança para valer.
Não foi por falta de tentativa anterior. De maio para cá,
enquanto a militância petista detonava o peemedebista nas redes sociais e nas
ruas, o governo mandava emissários para seduzir Cunha e deter seus movimentos
pelo impeachment. Mas o peemedebista, ao não ceder aos encantos das benesses
oficiais, não fazia apenas charme. Seus movimentos foram friamente calculados.
Profundo conhecedor dos meandros políticos, cercou o governo por todos os
lados. Indicou aliados para CPIs que podiam constranger o Planalto, entoou um
discurso de rompimento sem volta com o PT, descartou participar da reforma
ministerial e insinuou o quanto pôde que prosseguiria com o processo de
afastamento de Dilma. Até conseguir enredar o governo na teia que ele próprio
teceu.
Assim como Dilma, Eduardo Cunha quer manter o cargo e salvar
a própria pele. Ele espera do governo e de sua tropa de choque na Câmara ajuda
para barrar no Conselho de Ética um eventual processo de sua cassação. Na atual
circunstância política, e com a Lava Jato a todo vapor, é muito difícil que
Cunha escape. Mas o Planalto já hipotecou apoio. Por exemplo, na semana passada,
Dilma aceitou uma sugestão para empregar na superintendência do Iphan da Bahia
uma pessoa indicada pelo deputado José Carlos Araújo (PSD-BA). E o que isso
guardaria relação com Cunha? Araújo é nada menos do que o presidente do
colegiado que vai decidir a sorte do peemedebista: o Conselho de Ética. O
deputado aguardava a confirmação da vaga para seu apadrinhado havia cinco
meses. Na avaliação dos articuladores políticos do governo, o “agrado” fará com
que o parlamentar baiano passe a ter “boa vontade” com os interesses
governistas. Se a orientação for para salvar Cunha, Araújo não hesitará,
apostam auxiliares palacianos.
Na ótica duramente pragmática do presidente da Câmara, a
oposição teria bem menos a oferecer. A interlocutores, Cunha disse que a
oposição andou algumas casas para trás em seu conceito, o que pode ser
considerado um elogio. No fim de semana do feriado, sob a avalanche de
informações das investigações suíças, os partidos de oposição - PSDB, DEM, PPS
e PSB - emitiram uma nota defendendo o afastamento de Cunha da Presidência da
Câmara. Cunha retomou as atividades legislativas na terça-feira 13 furioso.
“‘Se eu derrubo Dilma agora, no dia seguinte, vocês me derrubam”, afirmou o
peemedebista em encontro com oposicionistas na residência oficial da presidência
da Casa. O recado estava dado.
Numa outra ponta, percebendo a relação de Cunha com a
oposição azedar, Lula entrava em campo para garantir o enlace com o governo. Na
tarde de quinta-feira 15, o ex-presidente se reuniu com deputados petistas e,
em tom inflamados, discorreu sobre a importância de não haver rachas internos
no apoio ao presidente da Câmara. Orientado por Lula, o presidente do PT, Rui
Falcão, reforçou as articulações para conter a adesão de correligionários ao
“fora, Cunha”.
Ciente dos movimentos de aproximação do governo, em uma
conversa com um ministro próximo de Dilma, o presidente da Câmara baixou as
cartas. Deixou bem claro que poderia segurar o tempo que fosse a apreciação de
pedidos de impedimento contra Dilma. Em contrapartida, gostaria de ver
atendidas algumas de suas exigências. “Nunca vi reforma ministerial sem que se
mexa na Justiça e na Fazenda”, verbalizou. A crítica ao ministro Joaquim Levy,
até semana passada, ainda não havia sido bem compreendida por interlocutores da
presidente. Mas o plano de derrubar o ministro José Eduardo Cardozo do comando
da Justiça é real. A ideia de Cunha é pressionar pela substituição Cardozo pelo
vice-presidente da República, Michel Temer, ideia já acalentada pelo
ex-presidente Lula. Dessa forma, calcula o parlamentar, o novo chefe da pasta
poderia exercer maior controle sobre a Polícia Federal, ajudar a segurar o
procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e blindar petistas e
peemedebistas contra vazamentos das investigações da Lava Jato. Integrantes do
governo chegaram a considerar a hipótese. Mas Dilma ainda resiste.
Cunha tem o que oferecer em troca. Ele controla as três
Comissões Parlamentares de Inquéritos com potencial para dar problemas ao
governo e ao PT -- Petrobras, BNDES e Fundos de Pensão. Existe na CPI da
Petrobras, por exemplo, requerimento para ouvir Paulo Okamoto, presidente do
Instituto Lula. A entidade aparece na contabilidade das empreiteiras
investigadas na Operação Lava Jato. Depende apenas de ser agendada, prerrogativa
do presidente da CPI, Hugo Motta (PMDB-PB), pupilo de Cunha. A oposição investe
contra Lula e seus familiares na CPI do BNDES, mas, a depender do PMDB de
Cunha, pode ser encerrada sem uma prorrogação e sem ter produzido nada de
relevante. Ao contrário do governo e do cada vez mais enrolado Eduardo Cunha,
os oposicionistas não precisam de uma estratégia para sobreviver. Mas já
planejam um plano “B” para não sepultar as chances de levar à frente a
deposição da chefe do Executivo. Consumado o acordão Cunha-PT, não restará
outra alternativa ao PSDB, DEM e PPS senão trabalhar para a eleição de um novo
presidente da Câmara de reputação ilibada. Alguém capaz de entender a grandeza
do cargo, sem se curvar a interesses convenientes e mesquinhos. Nesta
empreitada, não lhes faltarão apoio nas ruas. Para o dia 19, já está prevista
uma mobilização no Largo da Batata em São Paulo. Pode ser o embrião de uma nova
mega manifestação. Contra estes, não há acordão que resista.
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