Fidel Castro fez 90 anos. Mas de que homem se trata? Ao
longo do tempo, quantas metamorfoses? Há um primeiro Fidel de quem pouco se
fala, jovem ainda, tateando caminhos. Os detratores já o caracterizam como
aventureiro. A versão oficial prefere silenciar. John Lee Anderson, em
biografia anunciada, talvez ilumine a importância desse período. O homem ganha
nitidez depois de março de 1952, quando um golpe de Estado, urdido por
Fulgencio Batista, instaurou uma das ditaduras mais sangrentas e corruptas da
América Latina, transformando Cuba num cassino e num puteiro.
Amarrou-se, mais do que no passado, a dependência ao grande
irmão do Norte. Fidel Castro rebelou-se, como várias outras lideranças.
Formou-se uma frente nacionalista e democrática, plural, contra a ditadura. O
programa defendido inseria-se nos movimentos latino-americanos dos anos 1950,
por Estados soberanos e regimes democráticos, preocupados com a justiça social.
A luta desdobrou-se até janeiro de 1959, quando um exército guerrilheiro,
liderado por ele, entrou vitorioso na cidade de Havana.
Este segundo Fidel cedo suscitou suspeitas quanto a suas
reais inclinações democráticas. Garantia, porém, que jamais se tornaria um
ditador. A realidade caminhava em outras direções: em vez de liberdades,
consolidou-se o exército rebelde como instituição reitora. O verde-oliva como
cor oficial. O líder tornou-se comandante em chefe. Militarizou-se a revolução,
verticalizada, autoritária. Enquanto os compromissos democráticos definhavam,
as políticas favoráveis à afirmação nacional (expropriação de empresas
estrangeiras) e ao bem-estar social (reforma agrária) mobilizavam as
consciências.
Os governos americanos reagiram com brutalidade. Cortaram
laços econômicos e diplomáticos, pressionaram os Estados latino-americanos a
fazer o mesmo, armaram e apoiaram contrarrevolucionários. Em suas toscas
estimativas, os cubanos capitulariam. Não foi o que aconteceu. Fidel, numa
terceira versão, agigantou-se como chefe nacionalista e ditador revolucionário.
Sua oratória empolgava as gentes, armadas na Praça da Revolução. Um furacão no
Caribe, escreveu J. P. Sartre.
Na luta desigual, que durou até o fim dos anos 1960, Cuba
tornou-se um ator — pequeno, mas ativo — da Guerra Fria. A União Soviética
apoiou, com ajuda econômica e militar. Para não trocar a velha dependência por
uma nova, seria preciso revolucionar a América Latina e o mundo. O Che Guevara
jogou esta carta. Perdeu-a. E perdeu a vida com ela. Fidel, realista,
ajustou-se. O discurso de apoio à invasão da Tchecoslováquia pelas tropas
soviéticas, menos de um ano depois do assassinato do Che na Bolívia, selou uma
opção.
Desde então, e até meados dos anos 1980, prevaleceu a
dependência aos padrões soviéticos: centralização e estatização econômica,
exército profissional, ditadura política, repressão às oposições. Apareceu um
quarto Fidel: ditador marxista-leninista, submisso à ajuda soviética, conservador.
Em contrapartida, a população conseguiu altos padrões de bem-estar social —
educação e saúde gratuitas, serviços urbanos baratos e habitação
igualitariamente distribuída.
Havia ineficiência e desperdício, mas a União Soviética
pagava as contas. E, no limite, respeitava certas margens de autonomia — Cuba
nunca chegou a se tornar uma “democracia popular”, como os satélites da URSS na
Europa central. A perestroika e a desagregação da grande potência socialista
encerraram esta fase, com efeitos devastadores. Os EUA aproveitaram e apertaram
as cravelhas dos antigos bloqueios.
Quando tudo parecia perdido e se anunciava o fim próximo, a
sociedade cubana reativou suas referências nacionalistas. Fidel ressurgiu numa
quinta versão, como pai da pátria, recolocando José Martí no proscênio e
deixando o leninismo na obscuridade. Foram aí de grande valia o recurso a
expedientes econômico-financeiros heterodoxos e a aliança com o nacionalismo
redivivo na América Latina, rompendo o isolamento cubano.
Ironias da história: o que o Che não conseguira com armas
nas mãos, seria conseguido agora pela diplomacia. Fidel, nesta última versão,
voltava às origens de chefe e dirigente nacionalista. Depois de décadas no
poder, sempre exercido de forma ditatorial, como nacionalista, revolucionário,
socialista ou conservador, Fidel Castro vinculou irremediavelmente seu nome à
história do Estado cubano. Pelos feitos da sociedade, tornou-se um ditador
amado, seduzindo pessoas comuns e mesmo intelectuais, medusados por sua
inteligência, carisma e oratória.
E assim se fez sua glória. E sua misé ria, que é a de todos
os ditadores, e também a das gentes que os amam, pois é triste a sorte dos que,
perdendo a autonomia e a capacidade crítica, se prosternam diante de chefes e
se deixam subjugar por eles.
Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da
UFF
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