Pouco antes de se completar um ano da tragédia provocada
pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana-MG, começa a esboçar-se a
punição dos culpados deste que é um dos maiores crimes ambientais da história.
No dia 20 de outubro, o MPF denunciou 4 empresas e 22 pessoas. As acusações são
de crime ambiental e penal. Foram 19 mortes, centenas de famílias desabrigadas,
prejuízos econômicos e sociais incalculáveis e um rastro de poluição no
percurso do rio Doce. A punição tem que ser exemplar e, ainda assim, será
apenas o início de uma justiça que ainda estará longe de ser completa.
Os procuradores afirmam que os acusados estavam conscientes
da gravidade da situação e permitiram o rompimento das barragens por “ações e
omissões”. Dizem também que o crime foi motivado pela “ganância desmedida das
empresas por lucro”.
Aqui está a principal dificuldade para a justiça plena: o
lucro como justificativa para suspender limites éticos. A função social da
propriedade, os direitos difusos, o patrimônio público, o equilíbrio ambiental,
tudo isso tem sido classificado como despesa que deve ser cortada para garantir
o maior lucro possível. Por essa lógica, a lei também é vista como um
empecilho; tem que ser mudada ou burlada.
A tragédia da nossa civilização é a inclusão da vida –
inclusive a vida humana – nesse rol de despesas indesejáveis. Eis porque é tão
longo o caminho a ser percorrido.
A completa justiça exige, além da punição, a reparação dos
danos – o que às vezes é impossível ou leva muitos anos – e, principalmente,
uma mudança nos valores e no comportamento que propiciaram o crime. Essa mudança
ainda enfrenta, no Brasil, enormes entraves. No governo de Dilma, tanto na
legislação quanto na ação dos órgãos fiscalizadores, vivemos um grande
retrocesso que seu ex-vice e agora sucessor parece pretender continuar e
aprofundar.
Vejamos, justamente, o caso da mineração. Projetos de novos
marcos regulatórios tramitam no Congresso sem qualquer consulta à sociedade,
nem mesmo à comunidade científica, enfrentando os protestos das comunidades e
movimentos sociais. Tratam de criar mais facilidades às empresas mineradoras e
não trazem novidades quanto à segurança social e ambiental. Consagram uma visão
atrasada e insustentável de um setor da economia pelo qual o Brasil
constituiu-se como uma colônia e pode continuar sendo – agora, colonizando a si
mesmo e aos seus habitantes.
O que pensa sobre isso o “novo” governo? Os dirigentes do
Ministério das Minas e Energia, quando se pronunciam sobre o assunto, dizem que
a questão institucional precisa ser repensada “em favor do desenvolvimento”. O
governo acha que o PIB do setor pode crescer, se for criado o que pensa ser um
ambiente de “confiança para os investimentos”. Pretende mudar o Departamento
Nacional de Pesquisa Mineral (DNPM) e nada diz do Conselho de Mineração, há
anos sem representação da sociedade.
A verdadeira confiança, tanto de investidores quanto da
sociedade, só acontecerá se o Brasil não for uma “terra das oportunidades” para
o lucro rápido indefensável e passar a ser um país de leis estáveis e voltadas
para a segurança socioambiental, com ganhos que sejam sustentáveis e
admiráveis. Um país que cuida do seu patrimônio e não dá “jeitinho” para
favorecer interesses escusos. Um país onde não haja a certeza da impunidade
retroalimentando o ciclo vicioso dos crimes contra pessoas, patrimônio
histórico e meio ambiente.
O mesmo dilema acontece na questão do licenciamento
ambiental. Retrocessos nos últimos anos e ameaças de mais retrocessos. O
ministro Sarney Filho vê-se em meio a pressões do próprio governo, de sua base
parlamentar e, mais recentemente, da Fiesp, com quem se reuniu há duas semanas.
Todos querem uma maior desregulamentação, diminuição no poder de ação dos
órgãos fiscalizadores, licenças sem senões, ou seja, suspensão de tudo o que
consideram entraves ao “desenvolvimento”. Usa-se a desejável busca por
agilidade dos processos como pretexto para rebaixar a qualidade do
licenciamento.
Nesse ambiente político e institucional, a punição do crime
cometido em Mariana pode representar o início de um novo momento. Não é, ainda,
uma operação Lava-Jato socioambiental, mas já pode ser um bom indicador para
mostrar que o país não aceita mais a cultura da impunidade.
O Brasil só tem a ganhar abandonando o falso dilema entre
ecologia e economia. A Justiça pode ajudar a corrigir ideias, normas e posturas
que dão suporte e abrigo ao crime ambiental. Tenho defendido a proposta de que
crimes ambientais como os de Mariana sejam considerados hediondos. Os crimes
cometidos pela Samarco contra a população de Mariana, o patrimônio público, a
economia e o meio ambiente foram de tamanha gravidade e magnitude que estão a
exigir, também, uma versão das “dez medidas” que o MPF propõe para o combate à
corrupção. Não tenhamos dúvida: corrupção e devastação andam juntas e uma
alimenta a outra.
Há poucos dias, uma amiga me mostrou o rap Chuva Ácida do
compositor Criolo, que traz consigo uma história interessante. O rap foi
composto há 20 anos, quando o autor ainda nem era conhecido, para um concurso
sobre meio ambiente. Foi gravado em seu primeiro disco, há dez anos, relançado
agora com mudanças em algumas letras. Segundo ela, Criolo relançou seu primeiro
disco com mudanças porque viu que tinha, no início de sua carreira,
preconceitos que ofendiam mulheres e minorias e ele diz que precisava fazer uma
reparação, pois mudou e aprendeu muito nesses dez anos. Manteve a música sobre
meio ambiente porque continua atual e acrescentou uma introdução exatamente
sobre a tragédia de Mariana, além de fazer shows para ajudar as vítimas.
O artista aponta um caminho: aprender, rever seus erros,
corrigir-se, mudar. A atualidade de seu protesto ambiental é, infelizmente, uma
medida da falta dessa autocrítica e dessa mudança em grande parte do mundo da
política e da economia. Enquanto não buscarmos, com sinceridade, a justiça em
nossas relações com a natureza e com todas as pessoas, não sairemos do atraso.
Mesmo que chamemos esse atraso de progresso, crescimento ou desenvolvimento.
Marina Silva, ex-senadora e fundadora da Rede
Sustentabilidade, foi ministra do Meio Ambiente e candidata à Presidência da
República em 2010 e em 2014.
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