Alberto Aggio, O Estado de S.Paulo
Dentre os vários ensinamentos que a história e a sociologia
política nos legaram está a noção de que “conceitos são palavras em seus
contextos”. Tanto mais se o conceito em questão guarda uma polissemia
construída historicamente. É esse precisamente o caso da noção de “esquerda”,
assimilada como um conceito que, no plano político, deve ser pensado de maneira
relacional. Assim, em relação à esquerda talvez não se deva buscar nem uma
normativa fora da história nem uma suposta evolução conceitual que derive em
significados absolutos e imutáveis.
Olhando historicamente, é constatável que a esquerda pode,
muitas vezes, estar ausente ou ser muito rarefeita num determinado sistema de
forças políticas, tornando difícil sua identificação. Não é incomum que a
esquerda se mostre dividida em vários grupos, sem que se possa dizer qual deles
é mais representativo ou autêntico. Também não são poucas as ocasiões em que a
esquerda se expressa como uma força antagônica ao sistema social, ou como
conciliatória no sistema político, não se descartando até mesmo uma combinação,
às vezes surpreendente, entre ambas. Desnecessário dizer, portanto, que estamos
diante de um universo de possibilidades quase infinito.
Em função da crise vivenciada pelo PT e do debate que está
provocando, nota-se que não raro emergem equívocos de interpretação a respeito
dos problemas de identidade da esquerda. Por vezes vemos predominar nas
intervenções de intelectuais e políticos um reiterado dogmatismo, ao se
sugerirem diversos invólucros para abrigar o que seria uma “verdadeira
esquerda”, como uma espécie de Graal capaz de dirigir as massas que, em tese,
estariam dispostas a se manter vinculadas ao PT ou ao que vier a emergir da sua
crise.
Há problemas de diagnóstico no enfrentamento da crise do PT
e dos destinos da esquerda brasileira. Além do corporativismo, do personalismo
e do reconhecimento do que agora se chama de “reformismo fraco” promovido pelo
lulismo, justificadamente levantados, há questionamentos mais amplos a respeito
da visão totalitária presente em parcelas da esquerda, da sua inclinação ao
adesismo e, por fim, do seu viés populista.
A retomada do tema do totalitarismo dá a impressão de um
recuo no tempo. É curioso observar que a parcela da esquerda brasileira que há
anos rechaça práticas do totalitarismo seja desconsiderada no debate,
especialmente aquela que assumiu como central a perspectiva da “democracia como
valor universal”. Imaginava-se que o PT também havia cumprido esse percurso,
mas depois se percebeu que entre seus dirigentes havia mais retórica do que
convicção nessa direção. De resto, felizmente, a esquerda que valida práticas
totalitárias é, entre nós, residual. Surpreende, contudo, termos de retornar a
tal ponto para pensarmos numa “reconstrução da esquerda”. Talvez esse seja um
forte indicativo das limitações intelectuais que esse campo sofre para avaliar
o fracasso do petismo e os desafios do futuro.
O mesmo se dá com tema do adesismo, uma ideia banal presente
no imaginário esquerdista. Trata-se de uma definição de esquerda a partir do
seu status antissistema, de sua eterna vocação anti-institucional. Suspeita-se
da incorporação da esquerda ao sistema da democracia representativa e da
afirmação de uma “esquerda de governo”, quer como líder de uma coalizão, quer
como um dos partidos coligados de um governo democrática e constitucionalmente
instituído. Esse fantasma martiriza a esquerda por se temer uma identificação
com a social-democracia ou com um “reformismo” que busque soluções positivas
por meio de reformas institucionais, de programas sociais universalistas e de
transformações culturais democráticas e emancipadoras. Na velha linguagem, o
que há é o temor de que a esquerda administre o capitalismo, como se essa fosse
a questão definidora no nosso tempo. Novamente há um retorno a uma abordagem
antiga, tornando inviável um diagnóstico mais preciso da crise e dos elementos
teóricos que devem ser mobilizados para a reconstrução da esquerda,
especialmente diante de um cenário de ruínas deixado pelo petismo e de um
contexto mundial cheio de sobressaltos e riscos para o País.
O populismo, por fim, é um problema mais profundo. Trata-se
de um conceito fracassado na interpretação da história latino-americana.
Contudo o que chamamos hoje de populismo, vindo da esquerda ou da direita, ultrapassa
suas origens, fronteiras e seus marcos históricos de referência,
manifestando-se essencialmente, e em perspectiva, como uma política de rechaço
à democracia. Para se afirmar como “antielitista” o populismo mobiliza o
conceito de “democracia iliberal” para relativizar seu rechaço aos sistemas
democráticos do nosso tempo. Caracterizado como ideologia ou apenas como uma
retórica, o fato é que a contraposição entre populismo e democracia indica que
não poderá haver uma esquerda democrática que compactue ou coqueteie com o
populismo. As experiências recentes do bolivarianismo, que arrasaram a economia
da Argentina e da Venezuela, comprovam tal evidência.
No Brasil, esse problema é visto de soslaio e se perde num
escapismo que não consegue dar conta de explicar que as razões do fracasso do
PT repousam mais no colapso do esquema mafioso de poder e de uma política
econômica desastrosa do que da imposição de um “populismo orgânico”. O PT, de
bom grado, deixou-se assenhorear por Lula e hoje vive para defendê-lo. Sendo
impossível deslocar seu protagonismo, Lula passou a ser um poderoso obstáculo
para que a esquerda, a partir do petismo, se reinvente no País.
O debate em torno do futuro da esquerda brasileira deve ser
mais exigente e se pôr à altura dos desafios do nosso tempo, buscando um novo
lugar no mundo para o Brasil, e não se pautar por um catálogo antigo dos
pecados cometidos pela esquerda histórica.
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