Da ISTOÉ
Na madrugada lúgubre da quarta-feira 30, quando dos rostos
dos brasileiros ainda vertiam as lágrimas do desalento e do pesar profundo
pelos seus heróis mortos, a Câmara dos Deputados terminou de enxovalhar o que
restava de sua reputação – se é que ainda lhe sobrava algo. Sem corar a face e
em meio a gargalhadas de deboche, parlamentares eleitos para representar e
atender aos desígnios dos que em neles depositaram a esperança do voto
atingiram o apogeu da ousadia. Dando de ombros e pouco se lixando para o povo,
rejeitaram as medidas que serviam de alicerce ao pacote anticorrupção e
aprovaram uma emenda ampliando as possibilidades de punição a juízes e
procuradores da Lava Jato, hoje já submetidos às leis de controle do Judiciário
vigentes. No dia seguinte, apoiado por senadores de diversas colorações
partidárias, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que viria a se
tornar réu por peculato horas depois, ainda tentou votar a toque de caixa o
indecoroso projeto. Vergonha é pouco para descrever o que se viu no Congresso
nos últimos dias. Há mais de um século, um dos mais importantes escritores
portugueses da história, José Maria de Eça de Queiroz, cunhou uma frase que se
ajusta com perfeição aos nossos tempos: “Políticos são como fraldas. Devem ser
trocados de tempos e tempos. E pelo mesmo motivo”.
Na última semana, os nossos congressistas foram merecedores
da comparação nauseabunda. As iniciativas, respaldadas pela imensa maioria da
população, haviam sido subscritas por 2,4 milhões de pessoas. O resultado
indignou a sociedade, fez soar novamente o tilintar das panelas nas principais
capitais brasileiras e representou o mais contundente ataque perpetrado contra
a Lava Jato até agora. No contexto atual, em que a força-tarefa formada por
procuradores e policiais federais pode estar prestes a condenar a maioria dos
parlamentares ao ostracismo político, a tentativa de aprovar no afogadilho a
emenda, que ainda precisa da chancela do Senado, foi sem dúvida mais uma
contra-ofensiva destinada a retaliar quem os investiga e pune. Pior: tratou-se
de um gesto eivado de irresponsabilidade, pois no momento em que o País vive
uma circunstância de fragilidade política, a ação dos parlamentares desencadeou
uma crise entre Poderes.
A reação
A presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia,
divulgou nota na qual afirmou “lamentar que, em oportunidade de avanço
legislativo para a defesa da ética pública, inclua-se, em proposta legislativa
de iniciativa popular, texto que pode contrariar a independência do Poder
Judiciário”. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, declarou que o
Ministério Público “não apóia o texto que restou, uma pálida sombra das
propostas que nos aproximariam de boas práticas mundiais”. Porém, a mais
inflamada manifestação viria da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. Na tarde
de quarta-feira 30, os procuradores convocaram uma entrevista coletiva na qual
fizeram duras críticas à atuação da Câmara e ameaçaram renunciar aos cargos na
investigação caso o abuso de autoridade seja mantido da forma como foi
aprovado. “Nós somos funcionários públicos. Temos uma carreira no Estado e não
estaremos mais protegidos pela lei. Se nós acusarmos, nós podemos ser acusados.
Nós podemos responder, inclusive, com o nosso patrimônio. Não é possível, em
nenhum estado de direito, que não se protejam promotores e procuradores contra
os próprios acusados. Nesse sentido, a nossa proposta é de renunciar
coletivamente caso essa proposta seja sancionada pelo presidente (Michel
Temer)”, afirmou o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima. Na quinta-feira
1, foi a vez de o juiz federal Sérgio Moro criticar a sorrateira atuação da
Câmara. Em audiência no Senado, ao lado de Renan e do ministro do STF, Gilmar
Mendes, Moro ponderou que a aprovação do crime de responsabilidade para juízes
e promotores teria que ser objeto de um debate, de uma reflexão maior por parte
do parlamento. “Essas emendas da meia-noite, que não permitem uma avaliação por
parte da sociedade, um debate mais aprofundado por parte do parlamento, não são
apropriadas tratando de temas assim tão sensíveis”.
De fato, a emenda foi gestada perto das 12hs. O projeto,
relatado pelo deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), apoiado pelo MPF por ter
preservado o espírito das dez medidas, começou a ser apreciado às 23h47. Foi
aprovado por 450 votos favoráveis. A manobra, no entanto, começaria logo em
seguida. Aos poucos, os parlamentares apresentaram emendas que foram alterando
toda a essência do projeto, cuja votação se estendeu até às 4h da madrugada. O
líder do PDT, Wewerton Rocha (MA), foi responsável por uma das mais nocivas: o
crime de responsabilidade contra magistrados e membros do Ministério Público. O
problema, nesse caso, não é estabelecer regras para coibir abusos dos juízes e
procuradores. É ter aprovado esta emenda sorrateiramente, sem discussão, e com
uma fundamentação que abre brecha para punir qualquer um. Dentre os abusos
estão “atuar (…) com motivação político-partidária”, de forma incompatível com
o decoro ou, pior ainda, quando os promotores e procuradores propuserem ação
civil pública “temerariamente”. A inclusão desta emenda pegou a todos de
surpresa, porque o abuso de autoridade já estava sendo debatido em um projeto
no Senado. Ao cabo, a emenda de Wewerton Rocha foi aprovada por 313 votos, com
posicionamento favorável das grandes legendas: PT, PMDB, PCdoB e PR, dentre
outras. DEM e PSDB liberaram suas bancadas para votarem do jeito que quisessem.
Enquanto isso, em conversas ao pé do ouvido no plenário da Casa, deputados como
Givaldo Carimbão (PHS-AL) demonstravam preocupação zero com a opinião pública:
“Não estou nem aí se nas redes sociais vão me esculhambar”. Outro deputado,
sapecou em mais um raro momento de sinceridade: “A gente não está preocupado em
não ser eleito. Estamos preocupados em não sermos presos”.
O cair da madrugada embalou outros petardos contra o projeto
de lei. Os deputados descartaram, por exemplo, a criminalização do
enriquecimento ilícito do agente público e um instrumento para facilitar a
perda de bens para recuperação de valores fruto de crimes. “Fizeram picadinho
da minha proposta”, lamentou o relator Onyx Lorenzoni. Só sobraram duas medidas
relevantes: a criminalização do caixa dois, mas com abrandamento da punição de
partidos e dirigentes partidários, e o aumento das penas para corrupção. Neste
último caso, a pena mínima passa de dois anos para quatro, e a corrupção se
torna crime hediondo quando o valor envolvido for superior a dez mil salários
mínimos.
DEZ MEDIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO
Propostas originais:
1. Aplicação de testes de integridade a agentes públicos
2. Criminalização do enriquecimento ilícito de agentes
públicos incompatível com seus rendimentos
3. Aumento das penas e crime hediondo para corrupção de
altos valores
4. Maior eficiência dos recursos no processo penal, como
evitar recursos protelatórios, e mudanças no habeas corpus
5. Maior celeridade nas ações de improbidade administrativa
e possibilidade de Ministério Público assinar acordo de leniência nesses casos
6. Mudanças no sistema de prescrição penal.
7. Ajustes nos artigos que tratam das nulidades dos processos
penais, dentre eles a possibilidade de uso de prova ilícita
8. Responsabilização dos partidos políticos e criminalização
do caixa dois
9. Prisão preventiva para assegurar a devolução do dinheiro
desviado
10. Recuperação do lucro derivado do crime
Mãos sujas
No Senado, apesar da manobra para submeter o projeto à
votação em regime de urgência, Renan acabou derrotado pelo voto contrário de 44
dos seus pares. Agora, a proposta seguirá a tramitação normal na Casa, tendo
que passar pelo crivo das comissões e ser novamente discutido com a sociedade.
É nessa nova trincheira que o Ministério Público deposita as suas esperanças.
Os procuradores têm repetido quase como um mantra que a maior operação de
combate à corrupção no País não é capaz de produzir milagres. Está tratando
apenas de um tumor e não vai salvar o Brasil. O problema, de fato, é que o
sistema atual é cancerígeno e favorece a quem está habituado a delinqüir.
Impunidade, lentidão da Justiça, penas brandas e regras excessivamente
favoráveis aos réus compõem o cenário perfeito e aplainam o terreno para que,
ao cabo, o crime, sobretudo o do colarinho branco, seja compensador para quem
os comete. Foi exatamente para tentar reverter esse quadro que o Ministério
Público Federal (MPF) propôs ao Congresso o pacote de dez medidas contra a
corrupção. “Temos esperança de que o Senado reconsidere esse projeto aprovado
pela Câmara”, afirmou o procurador regional da República Wellington Saraiva.
Se referendada pelo Senado, o que seria o pior dos mundos, a
desfiguração do projeto anticorrupção, que não poderá jamais levar esse nome,
será a materialização da versão brasileira da Operação Mãos Limpas, deflagrada
na década de 1990 na Itália. A “Mani Pulite” também detectou um esquema
sistêmico de corrupção enraizado nas instituições políticas italianas. A reação
da classe política veio a jato: foram aprovadas medidas legislativas destinadas
a enfraquecer as investigações e salvar a pele dos políticos criminosos. O
primeiro passo foi dado em 1994 com o decreto Biondi, popularmente conhecido
como “salva-ladrões”. Proibia a prisão preventiva para crimes contra a
administração pública e o sistema financeiro, para os quais se passou a admitir
apenas a prisão domiciliar. Nessa época, a Mãos Limpas tinha provocado a prisão
de cerca de 350 pessoas por crimes desta natureza, de acordo com artigo do
procurador de Justiça Rodrigo Régnier Chemim Guimarães. O estudioso lista uma
série de medidas que foram tomadas na Itália no período no sentido de coibir as
investigações. Dentre elas, mudanças nas regras processuais que facilitaram a
prescrição, a anulação de provas obtidas do exterior e a diminuição das penas
para determinados delitos. Aprovou-se até mesmo a suspensão de processos contra
presidente da República e dos outros Poderes, mas a legislação foi considerada
inconstitucional. Os erros não podem ser repetidos, sob pena de fulminar a Lava
Jato. Caberá, agora, aos senadores decidirem se desejam empreender mudanças
profundas na maneira de combater a corrupção no Brasil ou entrar para a
história como símbolos do retrocesso.
Mudanças feitas no plenário:
1. Testes de integridade continuaram retirados
2. Rejeitada a criminalização do enriquecimento ilícito de
agentes públicos
3. Mantém a corrupção como crime hediondo com punição maior
que dez mil salários mínimos
4. Mantidas as mudanças nos embargos e rejeitadas as de
habeas corpus
5. Rejeitadas mudanças sobre improbidade, como o acordo de
leniência pelo MP
6. Rejeitado artigos que mudavam as regras de prescrição
7. Mantida rejeição do uso da prova ilícita
8. Mantida a criminalização do caixa dois
9. Mantida rejeição da prisão preventiva para evitar a
dissipação do produto do crime
10. Rejeitado o instrumento para perda de bens na
recuperação de produto do crime
11. Rejeitado o reportante do bem
12. Acordo penal rejeitado
13. Inclui crime de abuso de autoridade para magistrados e
membros do MP
14. Inclui punição a investigadores e juízes que violarem
prerrogativa de advogados
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