segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

NA CALADA DA NOITE

Da ISTOÉ
Na madrugada lúgubre da quarta-feira 30, quando dos rostos dos brasileiros ainda vertiam as lágrimas do desalento e do pesar profundo pelos seus heróis mortos, a Câmara dos Deputados terminou de enxovalhar o que restava de sua reputação – se é que ainda lhe sobrava algo. Sem corar a face e em meio a gargalhadas de deboche, parlamentares eleitos para representar e atender aos desígnios dos que em neles depositaram a esperança do voto atingiram o apogeu da ousadia. Dando de ombros e pouco se lixando para o povo, rejeitaram as medidas que serviam de alicerce ao pacote anticorrupção e aprovaram uma emenda ampliando as possibilidades de punição a juízes e procuradores da Lava Jato, hoje já submetidos às leis de controle do Judiciário vigentes. No dia seguinte, apoiado por senadores de diversas colorações partidárias, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que viria a se tornar réu por peculato horas depois, ainda tentou votar a toque de caixa o indecoroso projeto. Vergonha é pouco para descrever o que se viu no Congresso nos últimos dias. Há mais de um século, um dos mais importantes escritores portugueses da história, José Maria de Eça de Queiroz, cunhou uma frase que se ajusta com perfeição aos nossos tempos: “Políticos são como fraldas. Devem ser trocados de tempos e tempos. E pelo mesmo motivo”.
Na última semana, os nossos congressistas foram merecedores da comparação nauseabunda. As iniciativas, respaldadas pela imensa maioria da população, haviam sido subscritas por 2,4 milhões de pessoas. O resultado indignou a sociedade, fez soar novamente o tilintar das panelas nas principais capitais brasileiras e representou o mais contundente ataque perpetrado contra a Lava Jato até agora. No contexto atual, em que a força-tarefa formada por procuradores e policiais federais pode estar prestes a condenar a maioria dos parlamentares ao ostracismo político, a tentativa de aprovar no afogadilho a emenda, que ainda precisa da chancela do Senado, foi sem dúvida mais uma contra-ofensiva destinada a retaliar quem os investiga e pune. Pior: tratou-se de um gesto eivado de irresponsabilidade, pois no momento em que o País vive uma circunstância de fragilidade política, a ação dos parlamentares desencadeou uma crise entre Poderes.
A reação
A presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, divulgou nota na qual afirmou “lamentar que, em oportunidade de avanço legislativo para a defesa da ética pública, inclua-se, em proposta legislativa de iniciativa popular, texto que pode contrariar a independência do Poder Judiciário”. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, declarou que o Ministério Público “não apóia o texto que restou, uma pálida sombra das propostas que nos aproximariam de boas práticas mundiais”. Porém, a mais inflamada manifestação viria da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. Na tarde de quarta-feira 30, os procuradores convocaram uma entrevista coletiva na qual fizeram duras críticas à atuação da Câmara e ameaçaram renunciar aos cargos na investigação caso o abuso de autoridade seja mantido da forma como foi aprovado. “Nós somos funcionários públicos. Temos uma carreira no Estado e não estaremos mais protegidos pela lei. Se nós acusarmos, nós podemos ser acusados. Nós podemos responder, inclusive, com o nosso patrimônio. Não é possível, em nenhum estado de direito, que não se protejam promotores e procuradores contra os próprios acusados. Nesse sentido, a nossa proposta é de renunciar coletivamente caso essa proposta seja sancionada pelo presidente (Michel Temer)”, afirmou o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima. Na quinta-feira 1, foi a vez de o juiz federal Sérgio Moro criticar a sorrateira atuação da Câmara. Em audiência no Senado, ao lado de Renan e do ministro do STF, Gilmar Mendes, Moro ponderou que a aprovação do crime de responsabilidade para juízes e promotores teria que ser objeto de um debate, de uma reflexão maior por parte do parlamento. “Essas emendas da meia-noite, que não permitem uma avaliação por parte da sociedade, um debate mais aprofundado por parte do parlamento, não são apropriadas tratando de temas assim tão sensíveis”.
De fato, a emenda foi gestada perto das 12hs. O projeto, relatado pelo deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), apoiado pelo MPF por ter preservado o espírito das dez medidas, começou a ser apreciado às 23h47. Foi aprovado por 450 votos favoráveis. A manobra, no entanto, começaria logo em seguida. Aos poucos, os parlamentares apresentaram emendas que foram alterando toda a essência do projeto, cuja votação se estendeu até às 4h da madrugada. O líder do PDT, Wewerton Rocha (MA), foi responsável por uma das mais nocivas: o crime de responsabilidade contra magistrados e membros do Ministério Público. O problema, nesse caso, não é estabelecer regras para coibir abusos dos juízes e procuradores. É ter aprovado esta emenda sorrateiramente, sem discussão, e com uma fundamentação que abre brecha para punir qualquer um. Dentre os abusos estão “atuar (…) com motivação político-partidária”, de forma incompatível com o decoro ou, pior ainda, quando os promotores e procuradores propuserem ação civil pública “temerariamente”. A inclusão desta emenda pegou a todos de surpresa, porque o abuso de autoridade já estava sendo debatido em um projeto no Senado. Ao cabo, a emenda de Wewerton Rocha foi aprovada por 313 votos, com posicionamento favorável das grandes legendas: PT, PMDB, PCdoB e PR, dentre outras. DEM e PSDB liberaram suas bancadas para votarem do jeito que quisessem. Enquanto isso, em conversas ao pé do ouvido no plenário da Casa, deputados como Givaldo Carimbão (PHS-AL) demonstravam preocupação zero com a opinião pública: “Não estou nem aí se nas redes sociais vão me esculhambar”. Outro deputado, sapecou em mais um raro momento de sinceridade: “A gente não está preocupado em não ser eleito. Estamos preocupados em não sermos presos”.
O cair da madrugada embalou outros petardos contra o projeto de lei. Os deputados descartaram, por exemplo, a criminalização do enriquecimento ilícito do agente público e um instrumento para facilitar a perda de bens para recuperação de valores fruto de crimes. “Fizeram picadinho da minha proposta”, lamentou o relator Onyx Lorenzoni. Só sobraram duas medidas relevantes: a criminalização do caixa dois, mas com abrandamento da punição de partidos e dirigentes partidários, e o aumento das penas para corrupção. Neste último caso, a pena mínima passa de dois anos para quatro, e a corrupção se torna crime hediondo quando o valor envolvido for superior a dez mil salários mínimos.
DEZ MEDIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO
Propostas originais:
1. Aplicação de testes de integridade a agentes públicos
2. Criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos incompatível com seus rendimentos
3. Aumento das penas e crime hediondo para corrupção de altos valores
4. Maior eficiência dos recursos no processo penal, como evitar recursos protelatórios, e mudanças no habeas corpus
5. Maior celeridade nas ações de improbidade administrativa e possibilidade de Ministério Público assinar acordo de leniência nesses casos
6. Mudanças no sistema de prescrição penal.
7. Ajustes nos artigos que tratam das nulidades dos processos penais, dentre eles a possibilidade de uso de prova ilícita
8. Responsabilização dos partidos políticos e criminalização do caixa dois
9. Prisão preventiva para assegurar a devolução do dinheiro desviado
10. Recuperação do lucro derivado do crime
Mãos sujas
No Senado, apesar da manobra para submeter o projeto à votação em regime de urgência, Renan acabou derrotado pelo voto contrário de 44 dos seus pares. Agora, a proposta seguirá a tramitação normal na Casa, tendo que passar pelo crivo das comissões e ser novamente discutido com a sociedade. É nessa nova trincheira que o Ministério Público deposita as suas esperanças. Os procuradores têm repetido quase como um mantra que a maior operação de combate à corrupção no País não é capaz de produzir milagres. Está tratando apenas de um tumor e não vai salvar o Brasil. O problema, de fato, é que o sistema atual é cancerígeno e favorece a quem está habituado a delinqüir. Impunidade, lentidão da Justiça, penas brandas e regras excessivamente favoráveis aos réus compõem o cenário perfeito e aplainam o terreno para que, ao cabo, o crime, sobretudo o do colarinho branco, seja compensador para quem os comete. Foi exatamente para tentar reverter esse quadro que o Ministério Público Federal (MPF) propôs ao Congresso o pacote de dez medidas contra a corrupção. “Temos esperança de que o Senado reconsidere esse projeto aprovado pela Câmara”, afirmou o procurador regional da República Wellington Saraiva.
Se referendada pelo Senado, o que seria o pior dos mundos, a desfiguração do projeto anticorrupção, que não poderá jamais levar esse nome, será a materialização da versão brasileira da Operação Mãos Limpas, deflagrada na década de 1990 na Itália. A “Mani Pulite” também detectou um esquema sistêmico de corrupção enraizado nas instituições políticas italianas. A reação da classe política veio a jato: foram aprovadas medidas legislativas destinadas a enfraquecer as investigações e salvar a pele dos políticos criminosos. O primeiro passo foi dado em 1994 com o decreto Biondi, popularmente conhecido como “salva-ladrões”. Proibia a prisão preventiva para crimes contra a administração pública e o sistema financeiro, para os quais se passou a admitir apenas a prisão domiciliar. Nessa época, a Mãos Limpas tinha provocado a prisão de cerca de 350 pessoas por crimes desta natureza, de acordo com artigo do procurador de Justiça Rodrigo Régnier Chemim Guimarães. O estudioso lista uma série de medidas que foram tomadas na Itália no período no sentido de coibir as investigações. Dentre elas, mudanças nas regras processuais que facilitaram a prescrição, a anulação de provas obtidas do exterior e a diminuição das penas para determinados delitos. Aprovou-se até mesmo a suspensão de processos contra presidente da República e dos outros Poderes, mas a legislação foi considerada inconstitucional. Os erros não podem ser repetidos, sob pena de fulminar a Lava Jato. Caberá, agora, aos senadores decidirem se desejam empreender mudanças profundas na maneira de combater a corrupção no Brasil ou entrar para a história como símbolos do retrocesso.
Mudanças feitas no plenário:
1. Testes de integridade continuaram retirados
2. Rejeitada a criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos
3. Mantém a corrupção como crime hediondo com punição maior que dez mil salários mínimos
4. Mantidas as mudanças nos embargos e rejeitadas as de habeas corpus
5. Rejeitadas mudanças sobre improbidade, como o acordo de leniência pelo MP
6. Rejeitado artigos que mudavam as regras de prescrição
7. Mantida rejeição do uso da prova ilícita
8. Mantida a criminalização do caixa dois
9. Mantida rejeição da prisão preventiva para evitar a dissipação do produto do crime
10. Rejeitado o instrumento para perda de bens na recuperação de produto do crime
11. Rejeitado o reportante do bem
12. Acordo penal rejeitado
13. Inclui crime de abuso de autoridade para magistrados e membros do MP
14. Inclui punição a investigadores e juízes que violarem prerrogativa de advogados
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