Artigo de Marina Silva, EL PAÍS
Antes de tudo, um minuto de silêncio. Estamos assistindo, há
algum tempo, o terrível espetáculo da torpeza e do horror. No palco não estão
apenas os personagens psicopáticos na arte de sublimar a vida, como definiu
Freud. A vida mesma se tornou tragédia e a morte está na cena cotidiana. Há
muito ficaram para trás os limites do intolerável.
Para conseguirmos ver e perceber, ouvir e compreender a
violência extrema nas prisões precisamos ter clareza de que os massacres não
estão apenas mostrando e dizendo algo para nós, mas estão, sobretudo, falando
algo de todos nós.
Os massacres nos dizem que somos impotentes. Ao
reconhecermos essa verdade, antes mesmo de “enfrentar o problema”, podemos
retomar a racionalidade que nos foi subtraída ao longo do tempo, voltando, por
um momento que seja, ao abrigo silencioso da nossa herança humanista e aos
valores que baseiam as atitudes que nos constituem como humanidade.
Primeiro de tudo, não tenhamos medo de ficar sem palavras.
Quebrar o silêncio com palavras desprovidas de sentido e compromisso pode
agravar ainda mais o prejuízo, que já é imenso.
A psicopedagoga argentina Alicia Fernández, no seu livro “A
Atenção Aprisionada”, advertia que estar no silêncio não é o mesmo que estar em
silêncio, muito menos se calar: “habitar o silêncio para não silenciar”.
Como referência, a grande e saudosa mestra evoca a
inestimável beleza e perturbadora clareza de uma cena do filme "Rapsódia
em Agosto", de Akira Kurosawa. É o encontro de duas amigas que haviam
perdido seus maridos nos bombardeios de Nagasaki. Sentam-se, uma junto à outra,
e compartilham um chá em silêncio. Os netos espiam o encontro pela janela e ao
final, assombrados, perguntam para a avó o porquê de não falarem nada durante
toda a visita. A avó explica que “só em silêncio podem comungar alguns
sentimentos para os quais não há palavras”. Foi o que também ensinou - em ato -
o Papa Francisco, com sua silente oração ao visitar Auschwitz, da memória cruel
do campo de concentração nazista. Arte e fé se encontram e se tocam, na
humildade do silêncio, produzindo fagulhas de esperança para nossas almas
ensurdecidas pelo barulho de tantas guerras.
Janeiro de 2017 é quando soam todos os alarmes. Mas essa
sangrenta rapsódia vem sendo escrita há muito tempo, e não é possível ouvi-la
sem lembrar do abandono, descaso e negligência dos poderes públicos ao longo de
todos esse anos. A recusa em nacionalizar o debate sobre segurança pública e em
criar um sistema integrado e duradouro - como o da Saúde e o da Educação,
apesar de suas falhas - tem persistido por muito tempo. E a causa de tamanha
negligência, todos sabemos, é política e eleitoreira: tudo para não perder
“popularidade”.
O diagnóstico já vem sendo feito há muito tempo por quem
conhece o problema em profundidade, pessoas que agora, mesmo cumprindo o dever
de apresentar suas contribuições na mídia, sequer estão sendo chamados pelo
governo para ajudar a construir saídas viáveis. O governo parece ignorar a
contribuição da sociedade diante de uma crise com esse contorno e proporção.
Não foram poucas as oportunidades em que a sociedade ajudou
o Estado com ações, propostas e experiências valiosas, como a de Betinho e Dom
Mauro Morelli no combate à fome, ou de Ana Maria Peliano e Ricardo Paes de
Barros na elaboração de políticas voltadas para a superação da extrema pobreza.
Foi com a participação de estudiosos e a contribuição da sociedade que governos
e organismos internacionais encontraram caminhos para o tratamento do HIV/AIDS,
que à época parecia não ter solução. Foi a partir do esforço integrador de
grupo de renomados economistas que o país conseguiu sair de uma situação
crônica de instabilidade econômica na década de 90. Da mesma forma, foi assim
quando decidimos enfrentar as inaceitáveis taxas de desmatamento da Amazônia e
pudemos contar com a colaboração dos governos estaduais, da comunidade
científica e da sociedade, constituindo um plano de prevenção e controle que
possibilitou a redução da derrubada de florestas em 80%, por cerca de dez anos
consecutivos.
Existem muitos homens e mulheres comprometidos com causas e
não com projetos de poder pelo poder. Quando chamados de forma honesta e
sincera, nunca negam sua contribuição e suas valiosas ideias, mesmo que,
eventualmente, de forma reservada. Pude ver isso durante as campanhas em que
participei como candidata à Presidência da República.
Em 2010, sob a coordenação do antropólogo Luiz Eduardo
Soares, fizemos um seminário para estabelecer os eixos programáticos de uma
política integrada de segurança pública para o país, com a participação de
especialistas e secretários de segurança, pessoas com conhecimento teórico e
experiência prática nos governos de vários Estados e dos mais diferentes
partidos políticos e orientações ideológicas.
Debates assim me motivam a recusar a polarização do embate
político e insistir na ideia de que é possível governar com as melhores
contribuições da sociedade e dos partidos.
Será que os massacres nos presídios em vários Estados não
deixaram evidente que esse é um problema nacional que merece a máxima atenção
de todos? Será que a perda de dezenas de vidas e as cenas sangrentas das
execuções não são suficientes para silenciar a tagarelice política e nos fazer
refletir com humildade?
O governo federal anunciou a intenção de criar uma comissão
permanente de acompanhamento da crise nos presídios. Urge que ela saia da mera
intenção e ganhe mandato para enfrentar os graves e inaceitáveis problemas da
segurança pública do país. O governo precisa ter a humildade de admitir-se
insuficiente, carente de ajuda e até desprovido de razão. Afinal, voltando a
Freud e seu instigante texto Personagens Psicopáticos no Palco, quem não perde
a razão em certas circunstâncias não tem nenhuma razão a perder.
A complexidade da situação atual exige um trabalho conjunto
para consolidação de uma política criminal e prisional mais eficiente e
comprometida com a dignidade humana. A segurança pública não pode ser tratada
apenas como atribuição dos Estados. O governo federal precisa assumir
responsabilidades por meio de uma política nacional de segurança pública, capaz
de integrar Estados, órgãos do sistema de segurança e organizações da sociedade
civil.
Hoje, o Brasil possui a quarta maior população carcerária do
mundo, cerca de 622 mil presos (Infopen/dezembro 2014). No período de dez anos,
de 2004 a 2014, a população prisional aumentou em 80% e o número de vagas nos
presídios ficou estável, resultando num déficit de mais de 250 mil vagas.
Roraima e Amazonas, dois dos Estados onde houveram massacres nas últimas
semanas, têm as maiores taxas de ocupação no sistema prisional do país; não foi
por acaso que neles surgiu o furo no tumor que revelou o apodrecimento do
sistema.
Diagnósticos, alertas e propostas não faltaram ao longo de
todos esses anos, em que as políticas públicas na área de segurança foram se
decompondo. Aos governos faltou o básico: silêncio para ouvir e compromisso
para agir.
Grandes fracassos, sejam eles políticos, econômicos, sociais
ou todos ao mesmo tempo, como os que vivenciamos agora, nunca acontecem de uma
hora para a outra. Resultam de um descaso prolongado e uma omissão amadurecida
em sucessivos governos, em cumplicidade com parcelas privilegiadas da
sociedade. Sua descontinuidade, entretanto, é possível e acontecerá se ouvirmos
os sinais de alarme - depois de termos ignorado os sinais de alerta.
Precisamos aprender com o belo poema de John Donne que os
sinos dobram por todos nós. Traduzindo para a cruel realidade de nossos dias,
quando as sirenes dos presídios fazem ecoar no país seu sinal de alarme, é para
todos nós e por todos nós.
Nenhum comentário:
Postar um comentário