quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

POR QUEM TOCAM OS ALARMES

Artigo de Marina Silva, EL PAÍS
Antes de tudo, um minuto de silêncio. Estamos assistindo, há algum tempo, o terrível espetáculo da torpeza e do horror. No palco não estão apenas os personagens psicopáticos na arte de sublimar a vida, como definiu Freud. A vida mesma se tornou tragédia e a morte está na cena cotidiana. Há muito ficaram para trás os limites do intolerável.
Para conseguirmos ver e perceber, ouvir e compreender a violência extrema nas prisões precisamos ter clareza de que os massacres não estão apenas mostrando e dizendo algo para nós, mas estão, sobretudo, falando algo de todos nós.
Os massacres nos dizem que somos impotentes. Ao reconhecermos essa verdade, antes mesmo de “enfrentar o problema”, podemos retomar a racionalidade que nos foi subtraída ao longo do tempo, voltando, por um momento que seja, ao abrigo silencioso da nossa herança humanista e aos valores que baseiam as atitudes que nos constituem como humanidade.
Primeiro de tudo, não tenhamos medo de ficar sem palavras. Quebrar o silêncio com palavras desprovidas de sentido e compromisso pode agravar ainda mais o prejuízo, que já é imenso.
A psicopedagoga argentina Alicia Fernández, no seu livro “A Atenção Aprisionada”, advertia que estar no silêncio não é o mesmo que estar em silêncio, muito menos se calar: “habitar o silêncio para não silenciar”.
Como referência, a grande e saudosa mestra evoca a inestimável beleza e perturbadora clareza de uma cena do filme "Rapsódia em Agosto", de Akira Kurosawa. É o encontro de duas amigas que haviam perdido seus maridos nos bombardeios de Nagasaki. Sentam-se, uma junto à outra, e compartilham um chá em silêncio. Os netos espiam o encontro pela janela e ao final, assombrados, perguntam para a avó o porquê de não falarem nada durante toda a visita. A avó explica que “só em silêncio podem comungar alguns sentimentos para os quais não há palavras”. Foi o que também ensinou - em ato - o Papa Francisco, com sua silente oração ao visitar Auschwitz, da memória cruel do campo de concentração nazista. Arte e fé se encontram e se tocam, na humildade do silêncio, produzindo fagulhas de esperança para nossas almas ensurdecidas pelo barulho de tantas guerras.
Janeiro de 2017 é quando soam todos os alarmes. Mas essa sangrenta rapsódia vem sendo escrita há muito tempo, e não é possível ouvi-la sem lembrar do abandono, descaso e negligência dos poderes públicos ao longo de todos esse anos. A recusa em nacionalizar o debate sobre segurança pública e em criar um sistema integrado e duradouro - como o da Saúde e o da Educação, apesar de suas falhas - tem persistido por muito tempo. E a causa de tamanha negligência, todos sabemos, é política e eleitoreira: tudo para não perder “popularidade”.
O diagnóstico já vem sendo feito há muito tempo por quem conhece o problema em profundidade, pessoas que agora, mesmo cumprindo o dever de apresentar suas contribuições na mídia, sequer estão sendo chamados pelo governo para ajudar a construir saídas viáveis. O governo parece ignorar a contribuição da sociedade diante de uma crise com esse contorno e proporção.
Não foram poucas as oportunidades em que a sociedade ajudou o Estado com ações, propostas e experiências valiosas, como a de Betinho e Dom Mauro Morelli no combate à fome, ou de Ana Maria Peliano e Ricardo Paes de Barros na elaboração de políticas voltadas para a superação da extrema pobreza. Foi com a participação de estudiosos e a contribuição da sociedade que governos e organismos internacionais encontraram caminhos para o tratamento do HIV/AIDS, que à época parecia não ter solução. Foi a partir do esforço integrador de grupo de renomados economistas que o país conseguiu sair de uma situação crônica de instabilidade econômica na década de 90. Da mesma forma, foi assim quando decidimos enfrentar as inaceitáveis taxas de desmatamento da Amazônia e pudemos contar com a colaboração dos governos estaduais, da comunidade científica e da sociedade, constituindo um plano de prevenção e controle que possibilitou a redução da derrubada de florestas em 80%, por cerca de dez anos consecutivos.
Existem muitos homens e mulheres comprometidos com causas e não com projetos de poder pelo poder. Quando chamados de forma honesta e sincera, nunca negam sua contribuição e suas valiosas ideias, mesmo que, eventualmente, de forma reservada. Pude ver isso durante as campanhas em que participei como candidata à Presidência da República.
Em 2010, sob a coordenação do antropólogo Luiz Eduardo Soares, fizemos um seminário para estabelecer os eixos programáticos de uma política integrada de segurança pública para o país, com a participação de especialistas e secretários de segurança, pessoas com conhecimento teórico e experiência prática nos governos de vários Estados e dos mais diferentes partidos políticos e orientações ideológicas.
Debates assim me motivam a recusar a polarização do embate político e insistir na ideia de que é possível governar com as melhores contribuições da sociedade e dos partidos.
Será que os massacres nos presídios em vários Estados não deixaram evidente que esse é um problema nacional que merece a máxima atenção de todos? Será que a perda de dezenas de vidas e as cenas sangrentas das execuções não são suficientes para silenciar a tagarelice política e nos fazer refletir com humildade?
O governo federal anunciou a intenção de criar uma comissão permanente de acompanhamento da crise nos presídios. Urge que ela saia da mera intenção e ganhe mandato para enfrentar os graves e inaceitáveis problemas da segurança pública do país. O governo precisa ter a humildade de admitir-se insuficiente, carente de ajuda e até desprovido de razão. Afinal, voltando a Freud e seu instigante texto Personagens Psicopáticos no Palco, quem não perde a razão em certas circunstâncias não tem nenhuma razão a perder.
A complexidade da situação atual exige um trabalho conjunto para consolidação de uma política criminal e prisional mais eficiente e comprometida com a dignidade humana. A segurança pública não pode ser tratada apenas como atribuição dos Estados. O governo federal precisa assumir responsabilidades por meio de uma política nacional de segurança pública, capaz de integrar Estados, órgãos do sistema de segurança e organizações da sociedade civil.
Hoje, o Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo, cerca de 622 mil presos (Infopen/dezembro 2014). No período de dez anos, de 2004 a 2014, a população prisional aumentou em 80% e o número de vagas nos presídios ficou estável, resultando num déficit de mais de 250 mil vagas. Roraima e Amazonas, dois dos Estados onde houveram massacres nas últimas semanas, têm as maiores taxas de ocupação no sistema prisional do país; não foi por acaso que neles surgiu o furo no tumor que revelou o apodrecimento do sistema.
Diagnósticos, alertas e propostas não faltaram ao longo de todos esses anos, em que as políticas públicas na área de segurança foram se decompondo. Aos governos faltou o básico: silêncio para ouvir e compromisso para agir.
Grandes fracassos, sejam eles políticos, econômicos, sociais ou todos ao mesmo tempo, como os que vivenciamos agora, nunca acontecem de uma hora para a outra. Resultam de um descaso prolongado e uma omissão amadurecida em sucessivos governos, em cumplicidade com parcelas privilegiadas da sociedade. Sua descontinuidade, entretanto, é possível e acontecerá se ouvirmos os sinais de alarme - depois de termos ignorado os sinais de alerta.
Precisamos aprender com o belo poema de John Donne que os sinos dobram por todos nós. Traduzindo para a cruel realidade de nossos dias, quando as sirenes dos presídios fazem ecoar no país seu sinal de alarme, é para todos nós e por todos nós.
Bookmark and Share

Nenhum comentário:

Postar um comentário