Apesar de ofuscada pela divulgação da lista da Odebrecht, a
prisão do ex-secretário de Saúde de Cabral não me surpreendeu. Desde 2010,
quando imaginei poder competir com essa gigantesca e sedutora máquina de
corrupção, apontei, diretamente, para os desvios na Saúde. Minha ideia era
simples. Havia corrupção em toda a parte, mas era preciso priorizar as
denúncias. Na Saúde, a corrupção mata. É mais fácil passar a mensagem, embora
em outros setores ela também produza grandes estragos.
A variedade de escândalos, desde aluguéis de carros que
valiam mais do que os próprios carros, ao superfaturamento da compra de
material elementar, como gaze, até equipamentos complexos, não deixava dúvida:
roubava-se em tudo. No fundo, todas as pessoas informadas estavam alertas como
a vizinha de Sérgio Côrtes, na Lagoa. Ela pediu ao porteiro que a acordasse, a
que hora fosse, quando a Polícia Federal viesse prender o assecla de Cabral. O
interessante nas gravações reveladas pela Lava-Jato é constatar como a equipe
de Cabral pensa, agora que foi descoberta. Sérgio Côrtes queria combinar uma
delação premiada com o cúmplice, tomando o cuidado de omitir as cifras
roubadas, senão teria que devolver o dinheiro. A condenação pública e a própria
cadeia não são os fatores que preocupam Côrtes, mas, sim, uma fórmula de reter
o dinheiro acumulado. Tudo de valor que poderia ter sido apreendido em sua casa
foi vendido, inclusive obras de arte. Para que servem as obras de arte, senão
para serem convertidas em dinheiro? Por isso são compradas pelos corruptos
brasileiros. Na verdade, a prisão de Côrtes não surpreendeu a ninguém, nem
mesmo a ele. A demora serviu apenas para que se preparasse e salvasse um pouco
da grana, uma vez que sempre contam com cadeia curta.
A lista da Odebrecht saiu num momento difícil para mim. Meu
avião partia às 6h para Roraima. A opção era dormir ou pesquisar todos os
detalhes dos pedidos de inquérito. Matérias tão amplas e vazadas parcialmente
acabam trazendo um pouco de confusão. É o ônus do mundo on-line. Lula e Dilma
não estavam na lista. Não têm foro privilegiado. Mas alguns admiradores que, no
passado, defendiam-nos com o argumento de que todos recebiam dinheiro foram um
pouco mais longe: insinuaram, agora, que todos, menos o Lula e a Dilma, receberam.
São um espanto.
O tempo vai mostrar que o sistema político brasileiro sofreu
um grande baque, e só sua renovação interessa. A esquerda sonha com a vitória
de Lula porque acha que vitória na eleição absolve. Nesse quadro mental, a
aplicação das leis passa pela contagem de votos. É um caminho para a
instabilidade, porque processos legais seguem seu ritmo. Urnas não lavam um
passado de crimes. Da mesma maneira, o PSDB terá que reduzir seu leque de
candidatos. Os que foram denunciados pela Odebrecht estariam sujeitos também à
mesma instabilidade no poder. A diferença entre os dois partidos é o fato de a
esquerda se apoiar apenas no nome de Lula. Como é um líder carismático,
milhares acreditam nele, mesmo com tantas evidências contrárias. A estratégia é
vencer as eleições para escapar da prisão. No caso do PSDB, sem líderes
messiânicos, os eleitores tendem a se comportar de uma forma mais severa. Uma
candidatura, apenas para se salvar da polícia, seria tão desastrosa que
morreria ao nascer. Não foi apenas o quadro da eleição presidencial que se
abalou com as delações da Odebrecht. Foi todo o sistema partidário, o modo de
fazer eleições — esses temas que já estavam no ar antes da aparição da lista.
Os jornalistas pediram tempo de análise, diante de tantos nomes
e fatos surgidos na delação da Odebrecht. Apesar da rapidez que a tecnologia
impõe, faria bem a todos que discorrem sobre o tema ler com cuidado toda a
massa de informações. Por isso, divido a prisão de Côrtes com a lista. Esta
última ainda merece reflexão e debate, algo difícil para mim agora, trabalhando
na fronteira com a Venezuela. O caso de Côrtes e da quadrilha de Cabral, no
entanto, é um terreno mais seguro. Algumas pessoas costumam dizer que não se
alegram com a prisão do outro. Compreendo que sejam assim, mas seria falso
admitir esse sentimento em mim. Certas prisões me alegram. Pessoas que roubam
na Saúde, superfaturam remédios e próteses, inventam desnecessárias cirurgias e
ficam podres de ricas com isso, merecem cadeia. Muitos anos de cadeia.
A sofrida população do Rio, por exemplo, os milhares de
rostos anônimos, de corpos doloridos jogados em macas nos corredores dos
hospitais, todos estão incluídos no conceito de ser humano. E às vezes escapam
dos radares dos autointitulados progressistas que votaram em Cabral, com a
bênção de Lula. Vivemos um momento pantanoso, o país precisa de tolerância e
alguma unidade para enfrentar seus problemas. Mas existe uma linha divisória
incontornável. Os brasileiros precisam responder qual é o seu lado: o de quem
roubou ou de quem foi roubado.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 16/04/2017
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