Artigo de Fernando Gabeira
Furacões, ciclones e tsunamis são fenômenos dinâmicos:
chegam e passam. Costumo trabalhar com desastres naturais, tempestades
devastadoras. De um modo geral, o presidente sobrevoa a região, verte uma
lágrima diante das câmeras, anuncia uma ajuda financeira que, além de ser
realmente menor do que vai enviar, no fim é parcialmente devorada pela
corrupção local.
O que foi arrasado, agora, não é um pedaço de terra, mas um
sistema político eleitoral. E não há presidente para ajudar, pois está agarrado
aos escombros para não ser levado pela enxurrada. De qualquer forma, com ou sem
ajuda, o problema que se coloca é sempre esse: como reconstruir. Apesar de
figurar no topo da lista de países dominados pela corrupção, o Brasil tem
condições de superar esse estágio, a partir da vontade de uma boa parte de seu
povo.
Não acredito tanto em lição de moral. O que vai funcionar é
tornar o risco da corrupção extremamente alto para quem se deixa seduzir por
ela. O primeiro e grande passo para isso foi a Lava-Jato, que revelou a
possibilidade de uma investigação eficaz que sobreviva ao arsenal de artifícios
jurídicos do próprio sistema corrompido.
Algumas outras operações morreram na praia. A Lava-Jato
sobreviveu às pancadas dos bandidos mascarados, mas também dos
bem-intencionados defensores do estado de direito. Ela cumpriu o papel
histórico de apontar para um futuro em que a qualidade da investigação torna
muito mais arriscado escolher o caminho do crime. Necessita de outra medida
importante para que o risco seja maior ainda: o fim da impunidade, garantida
pelo foro privilegiado.
Com essas duas colunas erguidas, o processo de reconstrução
do edifício devastado torna-se mais promissor. Finalmente, uma articulação
entre os políticos que sobreviveram à tempestade e os que virão nas próximas
eleições pode ser a amálgama de algo próximo da expectativa popular.
Não tenho muitas ilusões. Em 2012, já fora da política
eleitoral, percorri grande parte do país, falando para jovens candidatos a
vereador. A sensação que tive na época foi a de que a maioria esmagadora queria
se integrar ao esquema político tal como ele existia, inclusive, e sobretudo,
com seu potencial de enriquecimento. Enfim, sonhavam com ascensão social,
grana, era possível ler nos seus lábios: eu também estou aí/ estou aí/ o que é
que há/ também estou nessa boca.
Esses anos foram muito tristes para mim. Por mais
informações que tivesse, a delação da Odebrecht, pelos detalhes e
circunstâncias, trouxe um grande impacto emocional. Houve algumas surpresas,
decepções, mas não creio que o caminho seja apenas criticar as pessoas. Não
eximo ninguém da responsabilidade. Mas, no sistema político partidário
brasileiro, era praticamente impossível vencer uma eleição majoritária sem
aceitar as regras do jogo. É preciso mudá-lo, senão os que ainda não caíram
cairão no futuro, sejam experientes ou não. E algo precisa ser feito agora.
Algumas medidas parecem sensatas. Uma delas é o fim da
coligação proporcional, nas quais você vota num candidato e acaba elegendo
gente indesejável na sua carona. Outra é a cláusula de performance. Partidos
que não têm representatividade, algo que se mede eleitoralmente, não podem
ocupar o espaço político. Eles tornam o presidencialismo de coalizão um
fracasso ético anunciado. Finalmente, para não ir muito longe: o programa
eleitoral gratuito é uma jabuticaba. É possível suprimi-lo. Com seu fim,
desaparecem também as grandes somas de campanha, os marqueteiros fissurados por
grana.
É possível um caminho intermediário, algumas inserções.
Nesse contexto, a imprensa precisaria cobrir as eleições proporcionais também,
algo que o faz com muita relutância. Ainda assim, embora ganhe meu pão na
grande imprensa, é preciso admitir que o mundo mudou, ela não é o único canal
para se comunicar com a sociedade. Não há razões para essa programação
patética, falsamente chamada de gratuita, pois na verdade é paga pelo
contribuinte.
A esta altura, sei que muitos estão perguntando se já
combinei com os russos. Haverá sempre uma grande resistência à mudança. Mas, se
a sociedade não for capaz de impor um caminho de transição para 2018, as regras
do jogo vão estraçalhar de novo as melhores intenções.
Voltando aos desastres naturais, sempre me impressionei com
os japoneses. Por mais desolador que seja o panorama, esfregam as mãos e
reconstroem tudo com rapidez. Pontes que levamos anos para construir no Brasil,
consumindo milhões com propinas, reaparecem em semanas, novas, honestas,
reluzentes. Bobagem supor que vamos nos comportar exatamente como os japoneses.
O peso cultural é acachapante, consome gerações para se transformar. Mas tudo
muda.
O Brasil que iniciamos com o movimento das Diretas já não
existe mais. Nossa geração de políticos não soube ler os sinais no horizonte.
A delação do fim do mundo é o prenúncio de um novo mundo.
Será que agora, escrito em letras garrafais e até com desenhos, finalmente,
vamos compreender em que país vivemos?
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 23/04/2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário