Artigo de Fernando Gabeira
A Lava-Jato representa uma novidade no Brasil. Mas, às
vezes, tem uma recaída, típica dos momentos anteriores. Considero insensato
permitir que Adriana Ancelmo, mulher de Sérgio Cabral, cumpra prisão
domiciliar. Não desconfio da honestidade do juiz. Prefiro supor que tenha
caído, como todos nós caímos, na armadilha do meloso sentimentalismo que
envolve nossa cultura.
Em primeiro lugar, quero dizer que concordo com a ideia das
mães cumprirem prisão ao lado dos filhos. As cadeias foram feitas para homens,
e a ONU reconheceu essa inadequação ao aprovar as Regras de Bangcoc. As regras
são boas, vão no sentido do progresso e reconhecem a singularidade da mulher.
No entanto, como quaisquer regras, não podem ser aplicadas cegamente. Não creio
que sejam no Brasil, onde dois terços dos pedidos de prisão domiciliar foram
negados pela Justiça. A primeira pergunta que todos colocaram, inclusive a
ministra dos Direitos Humanos: “Por que Adriana Ancelmo, e não todas as outras,
tem direito à prisão domiciliar?” Pelo menos, a intervenção do governo admite
que pobres também são humanos e retira esse conceito do limbo em que foi jogado
por militantes que consideram humano apenas quem compartilha de suas ideias.
No entanto, não é esse o meu ponto. A decisão de transferir
Adriana Ancelmo para sua casa foi insensata por outras razões, que se
relacionam também com o conceito de Humanidade. Adriana é um dos cérebros da
quadrilha que assaltou o Rio. O dinheiro das propinas de Cabral passava por
suas mãos. Ela acompanhava o marido nas viagens ao exterior, nas quais o casal
organizava melhor a distribuição da fortuna pelos diferentes esconderijos.
Os promotores acham que Cabral desviou R$ 1 bilhão. Cerca de
R$ 300 milhões foram encontrados e, inclusive, aliviaram o drama de aposentados
que não recebiam havia meses. E os outros possíveis R$ 700 milhões… Onde
estariam? Adriana Ancelmo certamente sabe e vai querer redistribui-los não só
para os gastos imediatos, mas também para utilizá-los no futuro. Cadeias no
Brasil duram pouco.
Essa é a questão ética que se coloca para o juiz Marcelo
Bretas, e ele respondeu de forma equivocada: atender à mãe separada dos filhos
ou às milhares de mães que teriam seus dramas amenizados se o dinheiro fosse
encontrado? Verdade que ele tomou precauções. Adriana não pode usar telefone
nem internet. Mas como a Justiça brasileira, que não consegue bloquear
telefones nos presídios, vai fazê-lo num prédio do Leblon? De novo, as
precauções: a Polícia Federal está autorizada a realizar vistorias periódicas,
sem avisar. Nos presídios, o próprio Exército está fazendo esse trabalho, que,
na verdade, é um trabalho de Sísifo: você apreende os celulares hoje,
reaparecem novos aparelhos na semana seguinte.
Em sua casa, Adriana poderá receber parentes, sem as regras
rígidas do presídio. A essa altura, os defensores de Bretas devem estar
pensando: se nos presídios não se bloqueiam celulares, qual a vantagem de
mantê-la presa? Se a família Cabral não respeita as regras do presídio, graças
ao grande cúmplice Pezão, que diferença faz receber parentes no Leblon?
Desde o início da década tenho acentuado a simpatia que a
Justiça do Rio tem por Sérgio Cabral. No TSE ameaçavam processar quem o
questionasse. Os tentáculos parecem se estender ao STJ, onde amigos estão
prontos para ajudá-lo.
As recentes prisões de quase todos os conselheiros do
Tribunal de Contas do Estado dão apenas uma visão da metástase do processo de
corrupção em todos os setores do estado fluminense.
A Lava-Jato caiu na armadilha. Achou um caminho para que um
dos cérebros da quadrilha continuasse a trabalhar em paz, articulando a
redistribuição do botim. Fez tudo isso para que ela cumprisse suas funções
maternas, levasse de novo paz à casa desfeita. Mesmo essa boa intenção
implícita nas Regras de Bangcoc torna-se ridícula quando analisada no caso de
Adriana.
A decisão de Bretas e dos simpatizantes de Cabral no STJ
levou o inferno ao Leblon. O quarteirão onde está o apartamento de Adriana vive
em sobressalto. Manifestações, panelaços, gritos de protesto. O próprio
restaurante em que Cabral comia, tão perto que os garçons poderiam servi-lo em
casa, não é mais o mesmo. Carros buzinam a todo instante, e as vozes dos
motoristas indignados penetram no salão. A experiência mostra que esses focos
crônicos de protesto tendem a polarizar quando a conjuntura se agrava. Há um
potencial de tragédia no ar.
Não é o caso de Bretas, mas, se Cabral tem amigos no STJ, é
bom que saibam que ele pode delatar. É preciso gostar muito dele para ajudá-lo.
E acreditar que a recíproca é tão verdadeira que, louco para reduzir a pena,
Cabral não os entregue também.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 09/04/2017
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