Artigo de Fernando Gabeira
No momento em que escrevo está tudo muito confuso. Concordo
com a ideia de que o Brasil entrou numa rota de incerteza. Mas existem algumas
bússolas, ainda que precárias.
Em alguns artigos afirmei que a difícil tarefa de Temer
consistia em jogar ao mar os que fossem envolvidos na Lava Jato e saber, com
precisão, se em algum momento ele também teria de se lançar na água. Pois bem,
chegou a hora. Temer deve abandonar o barco. O momento é ruim porque uma tímida
recuperação aparecia no horizonte.
Na verdade, o que restou no poder foi uma parte da grande
quadrilha que dirigiu o País nos últimos anos. Agora o quadro se torna um pouco
mais completo.
Depois da Odebrecht, a delação da JBS também tem a
capacidade de revelar o conjunto do quadro político-partidário no Brasil,
sobretudo a necessidade de renová-lo. Ela pode surpreender-nos com detalhes,
nomes ou mesmo ritual. Foi uma delação com filmes, áudios, chips nas mochilas,
numeração de notas anotada, enfim, uma ação perfeitamente orquestrada.
Nela, além de Temer, caiu também Aécio Neves. Ele já estava
sob suspeita, com vários inquéritos. Um deles, originado na delação da
Odebrecht, diz respeito à Usina de Santo Antônio, em Porto Velho, Rondônia. Agora
Aécio afirma que sua relação com Wesley Batista era pessoal. É impossível
imaginar que a JBS, assim como a Odebrecht, tenha apenas amizades. O termo
amigo é somente uma forma de encobrir interesses recíprocos.
Enfim, foram quase todos para o espaço. Com o que restou do
Congresso é preciso cumprir a Constituição, levando em conta uma variável
essencial: a crise econômica, 14 milhões de desempregados. Naturalmente que uma
formulação dessas é muito vaga, cumprir a Constituição significa fazer o que
está escrito nela ou o que for inserido de forma legal, por meio das votações
no Congresso.
Há uma ideia de fazer novas eleições para tudo, envolvendo
também os parlamentares. Essa é uma saída complicada, porque dificilmente eles
aceitariam encurtar o próprio mandato.
Independentemente dos rumos imediatos, certamente a sucessão
de terremotos que abala o País deixará mortos, fraturas expostas e ferimentos
leves entre os políticos. A sociedade terá importante papel, pois dependerá
dela não apenas a renovação, mas também o controle de uma nova etapa.
O velho sistema eleitoral era movido a dinheiro. Tanto o
PSDB como o PT sempre pensaram em ficar 20 anos no poder. Era preciso grana
para se eleger, grana para governar e grana para se reeleger. O tempo inteiro é
marcado pelo encontro de duas máquinas: a de empresários buscando lucros e a de
políticos buscando grana. O planejamento nacional vai para o espaço, o governo
do País torna-se apenas a administração do assalto aos recursos populares, de
forma que as duas partes estejam satisfeitas. Até que uma delação premiada se
instale entre elas.
O que sempre me espanta no Brasil é a surpresa com certos
escândalos. A JBS arrancava generosos empréstimos do BNDES, buscava dinheiro em
todos os setores públicos onde podia arrancá-lo. Mesmo em termos transparentes,
era a maior financiadora de campanhas políticas .
A própria polícia já estava no seu rastro, investigando-a em
várias frentes. Havia algo muito sério por trás de tudo isso. Não era claro
ainda o papel do PMDB nessa história.
Todos intuíamos que Eduardo Cunha, por exemplo, tinha uma
bancada pessoal, movida a propina. Supunha-se que o dinheiro viesse de várias
empresas. Agora parece que a JBS teve papel decisivo.
Todos intuíam os vínculos de Temer e Cunha. Mas poucos
sabiam como eram profundos, a ponto de Temer estimular o pagamento de um
cala-boca para evitar a delação de Cunha.
Também sabíamos que era estranho o BNDES financiar uma
empresa de carnes. Nesse caso, era mais fácil duvidar. Bastava ver o volume de
dinheiro investido na JBS e o quanto a empresa empregava nas campanhas do PT.
Enfim, o esquema político-partidário estava envolvido, por
intermédio de suas principais siglas. A delação da JBS apenas confirmou o
processo de decomposição irreversível.
Toda essa tragédia que arruína um país e amplia o sofrimento
de seu povo talvez pudesse ser atenuada. Já na década de 1980 discutíamos se os
partidos não eram uma forma de organização historicamente condenada. Partido ou
movimento?, perguntávamos.
Essa discussão existia também na França e creio que talvez
tenha tido uma remota influência na forma como o atual presidente, Emmanuel
Macron, se elegeu. São temas que talvez tenhamos de recuperar assim que baixar
a temperatura, elevada pelo desfecho policial de nossa História recente.
Os fatos são escabrosos, os jornalistas tendem a uma certa
hesitação, o momento é de tatear num quarto escuro em busca de uma tomada de
luz. Ainda não dá para respirar, porque são necessárias soluções imediatas,
serenas, que levem em conta, sobretudo, os altos níveis de desemprego.
Embora, como afirmei, seja correta a expressão rota de incerteza,
a bússola constitucional está aí, assim como existem algumas ideias que possam
tirar-nos desta maré baixa. O sistema partidário afundou, algumas instituições
se destacaram e a própria sociedade cresceu muito em informação e nível de
consciência.
A História não apresenta ao Brasil um problema insolúvel.
Apenas vai dar trabalho, ansiedade e muita turbulência. É melhor assim. Demorou
muito.
O ideal agora é conversar entre nós, amigos, parentes,
colegas de trabalho, sem nos prendermos só às notícias sensacionais, mas
focando nas saídas. O mundo real nos interroga. A política só tem sentido
quando se propõe a melhorar a vida das pessoas. Fora disso é uma agitação
custosa e funesta.
A redemocratização brasileira caiu num pântano. A guinada
perversa para a corrupção contribuiu para nos arruinar e lançar tanta gente no
desemprego. Numa situação dessas, a chegada da polícia é um alívio e renova as
esperanças.
Artigo publicado no Estadão em 19/05/2017
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