quinta-feira, 20 de julho de 2017

RECORDANDO PADRE CÍCERO

Há exatos 83 anos, a população de Juazeiro do Norte, no Ceará, dava  último adeus a Cícero Romão Batista, o Padre Cícero. Nascido em 24 de março de 1844, Crato (CE), Padre Cícero faleceu em 20 de julho de 1934, em Juazeiro do Norte. Carismático, Padre Cícero ou “Padim Ciço”, obteve grande prestígio e influência sobre a vida social, política e religiosa do Ceará e da Região Nordeste do Brasil.
Padre Cícero, foi o primeiro prefeito de Juazeiro do Norte, em 1911, quando o povoado foi elevado a cidade. Voltou ao poder, em 1914, quando o governador Marcos Rabelo foi deposto. No final da década de 1920, o Padre Cícero começou a perder a sua força política, que praticamente acabou depois da Revolução de 1930. Seu prestígio como santo milagreiro, porém, aumentaria cada vez mais.
Em 1° de novembro de 1969 no alto do Horto, em Juazeiro do Norte foi erguido uma estátua (a terceira maior do mundo) em homenagem ao Padre Cícero Romão Batista. Em 22 de março de 2001 “Padim Ciço” foi eleito o cearense do século.
A trajetória religiosa e política de Padre Cícero é relatada na excelente biografia Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão, do jornalista Lira Neto. A obra é primorosa, resultado trabalho intenso de dez anos de pesquisa, baseada em documentos raros e inéditos tornam a biografia a mais completa obra sobre a vida do mais amado e controvertido religioso que o Brasil já teve, Padre Cícero, para os romeiros e fiéis, o “Padim Ciço”.
Clique aqui e ouça a música Viva meu Padim, composta pelo Rei do Baião, Luiz Gonzaga e João Silva para homenagear Padre Cícero. A canção tem a participação especial de Benito di Paula. 

Leia mais sobre Padre Cícero

Lira Neto, via Aventuras na História
Um padre que viveu sob o signo da controvérsia e morreu proscrito, condenado pelo Santo Ofício. Esse foi sacerdote brasileiro Cícero Romão Batista, acusado no fim do século 19 de proclamar falsos milagres, de incentivar o fanatismo popular e de se beneficiar financeiramente da devoção extremada de seus milhões de seguidores.
Em decorrência das acusações de que era um rebelde, um desobediente à hierarquia católica e um semeador de fanatismos, ele foi alvo de um inquérito eclesiástico que terminou por proibi-lo de rezar missas, de confessar fiéis e de ministrar sacramentos como o batismo e o matrimônio. Tornou-se, então, um pária da fé. Apesar de idolatrado pelos cerca de 2,5 milhões de peregrinos que acorrem todos os anos à cidade cearense de Juazeiro do Norte para reverenciar sua memória, Cícero foi um padre maldito, renegado pela Igreja Católica.
Fazedor de milagres
Toda a história pessoal de Cícero Romão Batista está permeada de mistérios, ambiguidades e contradições. Amado e odiado em igual medida por seus contemporâneos, depois de morto - e talvez ainda mais a partir daí - ele continua a provocar sentimentos idênticos de adoração e repulsa.
Nascido na cidade cearense do Crato em 1844, ordenado padre em 1870, Cícero viveu e cresceu na confluência de dois mundos. De um lado, o universo mágico do misticismo sertanejo, no qual a crença em lobisomens, almas penadas e mulas-sem-cabeça convivia com a festiva devoção aos santos padroeiros e com as advertências apocalípticas dos profetas populares, que pregavam o fim dos tempos. Do outro lado, o mundo da fé ritualizada, da disciplina clerical e da submissão cristã com a qual foi educado e doutrinado no seminário. Com um pé no maravilhoso, outro na ascese, Cícero protagonizou uma biografia acidentada, recheada de episódios mirabolantes que mais parecem beirar a ficção.
Entretanto, até os 45 anos de idade, sua vida nada teve de extraordinária. Em 1889, Cícero era um simples padre de aldeia, rezando missa numa minúscula capelinha do então povoado do Juazeiro, a 600 quilômetros de Fortaleza, quando um fenômeno misterioso chamou a atenção dos sertanejos, da Igreja e da imprensa. Ao ministrar a comunhão a uma beata - a humilde costureira e doceira Maria de Araújo -, a hóstia consagrada teria se transformado em sangue. "Não posso duvidar, porque vi muitas vezes", escreveu Cícero a dom Joaquim José Vieira, bispo do Ceará.
Os jornais abriram manchetes para noticiar o fenômeno e os sertanejos caíram de joelhos diante do proclamado milagre. A Igreja, porém, acusou Cícero e a beata de fraude. "Se Maria de Araújo recebe realmente provas do céu, que as vá gozando só, sem perturbar a boa ordem da diocese", desdenhou o bispo Vieira.
Fato ou embuste, o caso é que o padre e seus adeptos evocaram em sua defesa uma série de fenômenos mais ou menos semelhantes, devidamente chancelados pelo Vaticano sob a classificação genérica de "milagres eucarísticos". Mas uma frase atribuída ao então reitor do Seminário da Prainha, o padre Pierre-Auguste Chevalier, revelaria a dificuldade do clero tradicional em aceitar as manifestações da fé popular: "Jesus Cristo não iria sair da Europa para fazer milagres no sertão do Brasil", teria tripudiado o francês.
Chefe político
O episódio da hóstia que diziam se transformar em sangue rendeu a Cícero a admiração dos milhares de peregrinos, que desde então não nunca pararam de chegar a Juazeiro para testemunhar a suposta maravilha. Mas também significou para o padre uma longa via-crúcis de indisposições perante as autoridades eclesiásticas da época.
Banido pelo clero, Cícero passou a ocupar a posição de mártir no imaginário coletivo, ao mesmo tempo que começou a desfrutar de uma enorme notoriedade e de um imenso poder junto ao povo mais simples do sertão, vítimas históricas da seca e do descaso governamental. Aquela gente, sem perspectivas, sem dinheiro e sem chão, cada vez mais se identificava com o sacerdote que nunca foi propriamente um grande orador, mas em compensação sabia falar a mesma língua deles, chamando-os de "amiguinhos", ouvindo-lhes as queixas, distribuindo prédicas e conselhos.
Moralista severo, Cícero pregava contra os amancebados, os festejos pagãos e o desregramento das famílias. Numa terra em que imperava a lei do punhal e do bacamarte, seu lema mais famoso conclamaria os pecadores ao arrependimento: "Quem bebeu não beba mais, quem roubou não roube mais, quem matou não mate mais", costumava dizer.
Quando não pôde mais celebrar batismos, ele próprio aceitou apadrinhar inúmeras crianças, vindo daí o título de "padrinho padre Cícero", que na corruptela da linguagem popular resultou Padim Pade Ciço.
"Em cada casa um oratório, em cada quintal uma oficina", pregava ele, atraindo trabalhadores, agricultores e artesãos de todo o Nordeste, que passaram a se fixar e aos poucos transformaram o arrabalde em um importante centro manufatureiro. O povoado virou cidade autônoma e, em 1911, Cícero foi nomeado o primeiro prefeito de Juazeiro. Líder religioso, tornou-se também chefe político, igualmente polêmico e contraditório. Ao mesmo tempo que pregava aos "náufragos da vida", como se referia aos menos favorecidos, estabeleceu alianças com as elites poderosas.
A Santa Sé delibera
Entre 2001 e 2006, uma comissão multidisciplinar de estudos se debruçou sobre a vasta documentação relativa ao padre, em arquivos do Brasil e do Vaticano. Coordenada pelo bispo do Crato, dom Fernando Panico, tal comissão foi composta por especialistas de várias áreas do conhecimento: antropologia, filosofia, história, psicologia, sociologia e teologia. A finalidade era trazer à luz novos documentos que servissem para tentar responder a uma questão que sempre acompanhou o nome de Cícero: quem afinal foi esse homem, acusado de espertalhão por muitos, aclamado como visionário por outros tantos?
O relatório final da comissão foi entregue em maio de 2006 na Santa Sé. Junto, uma coleção de 11 volumes reunia as transcrições das centenas de cartas trocadas entre os principais personagens da história do padre. Um volume à parte levava cerca de 150 mil assinaturas de populares em prol da reabilitação, às quais se somava um abaixo-assinado no qual se lia o nome de 253 bispos brasileiros favoráveis à causa. Em complemento à papelada, a carta de dom Fernando ao papa: "Venho com toda esperança e humildade suplicar a Vossa Santidade que se digne reabilitar canonicamente o padre Cícero Romão Batista, libertando-o de qualquer sombra e resquício das acusações por ele sofridas",
Em setembro de 2008, a igreja de Nossa Senhora das Dores - o templo que Cícero construiu em Juazeiro e no qual depois se viu impedido de rezar missa - foi elevado pelo Vaticano à categoria de basílica. Com isso, o brasão de Bento XVI foi sintomaticamente colocado à porta de entrada, bem à vista dos romeiros que chegam para louvar o Padim. No templo em que o padre está enterrado, a capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, também em Juazeiro, foi autorizada a instalação de um vitral multicolorido em que se destaca a imagem de Cícero, ao lado de outros santos oficiais.
Em 2015, finalmente, o perdão se tornou 100% oficial. O bispo Dom Fernando Pânico, declarou sua reabilitação em 13 de dezembro. Esse é o primeiro passo para uma posterior beatificação, ou seja, o reconhecimento canônico de que o homem Cícero Romão Batista teria vivido na plenitude das virtudes cristãs, sendo um "bem-aventurado", resultou na consequente autorização para o culto público a seu nome. Devido às milhares de graças que os romeiros dizem ter alcançado por intercessão do padre Cícero - cegos que teriam voltado a ver, aleijados que andaram novamente, loucos que teriam recuperado o juízo -, o caso, ainda pode evoluir da simples beatificação para a efetiva canonização, quando então ele seria elevado à honra dos altares de toda a Igreja. Esse processo burocrático, como ocorreu com Frei Galvão (1739-1822), o primeiro santo nascido no Brasil e durou vários anos.
Santo sertanejo
A polêmica trajetória de Padre Cícero
1844: Cícero Romão Batista nasce na cidade do Crato (CE).
1870: Cícero é ordenado padre, apesar das reservas do reitor do seminário, que o julgava um aluno "teimoso" e "dono de ideias confusas".
1872: Sem ter recebido nenhuma paróquia, o jovem padre aceita o convite de moradores para rezar a missa de Natal no pequeno povoado de Juazeiro, vizinho ao Crato. Segundo ele, um sonho faz com que continue a morar ali para sempre. Jesus teria pedido a Cícero que "tomasse conta" dos pobres do local.
1889: 1 de março, sexta-feira da Quaresma, o padre Cícero oferece a comunhão à beata Maria de Araújo e a hóstia se transforma em sangue. O fenômeno teria ocorrido por semanas seguidas, até 15 de agosto, dia da Ascensão de Nossa Senhora. Os paninhos manchados de sangue são adorados como relíquias sagradas. O milagre vira notícia na imprensa de todo o país.
1891: O bispo do Ceará, dom Joaquim José Vieira, censura Cícero e o monsenhor Monteiro por proclamarem milagres ainda não investigados pela Santa Sé. Cria uma comissão de inquérito eclesiástico, formada pelos padres Francisco Antero e Clycério da Costa Lobo. A ordem é desmascarar um possível embuste.
1892: O padre Antero viaja ao Vaticano em defesa de Cícero. O Santo Ofício examina o caso. Em agosto, o bispo cearense proíbe Cícero de rezar missas, pregar aos fiéis, confessar e ministrar sacramentos.
1894: o Santo Ofício condena os fatos como "prodígios vãos e supersticiosos. Os padres adeptos do milagre se retratam. Menos Cícero.
1898: Cícero vai ao Vaticano se defender. É interrogado e depois recebido pelo papa Leão XIII. O Santo Ofício absolve Cícero das censuras, desde que ele guarde silêncio sobre o caso. O padre jura submissão, mas segue suspenso das ordens sacerdotais. Os paninhos sujos de sangue são roubados da matriz do Crato e desaparecem por vários anos.
1908: Atraído por notícias da existência de uma valiosa mina de cobre na região, chega a Juazeiro um baiano misterioso: Floro Bartolomeu. Médico, rábula e garimpeiro, ele passa a ser o principal braço político de Cícero.
1909: Começa a circular O Rebate, primeiro jornal de Juazeiro, fundado para defender a tese da emancipação do povoado em relação ao Crato. Floro Bartolomeu é um dos editores.
1910: Morre misteriosamente o professor José Marrocos, um ex-seminarista que exerce grande influência sobre Cícero. Floro é acusado de tê-lo envenenado, mas nunca se prova nada a esse respeito.
1911: Juazeiro se emancipa. Cícero, filiado ao Partido Republicano Conservador, é nomeado primeiro prefeito do novo município. Permanecerá quase duas décadas no cargo, sendo reeleito seguidamente. Na data da posse, sela um pacto de paz com os principais coronéis da região, no qual todos prometem parar as animosidades mútuas.
1913: Em acordo com o governo federal e com o aval de Cícero, Floro viaja ao Rio de Janeiro para tramar a queda do então presidente (cargo igual ao de governador) do Ceará, Franco Rabelo. De volta, Floro depõe as autoridades municipais e instala uma Assembleia estadual paralela para caracterizar a duplicidade de poderes e provocar uma intervenção federal.
1914: O governo estadual reage. Manda tropas para atacar Juazeiro. Cícero segue o conselho de um sobrevivente de Canudos e pede aos moradores que cavem um fosso gigantesco em torno da cidade: o "Círculo da Mãe de Deus". Com isso, o ataque fracassa. Juazeiro parte para a ofensiva. Comandado por Floro, um exército de jagunços e cangaceiros toma o Crato e várias outras cidades cearenses, cercando Fortaleza. O governo federal decreta a intervenção no Ceará. Cícero é nomeado vice-presidente do estado.
1916: A Santa Sé declara que Cícero, aos 72 anos, por ainda alimentar o "fanatismo", está excomungado. Mas ele jamais saberia disso. Temendo pela saúde do velho padre, o bispo do Crato, Quintino Rodrigues, evita aplicar a excomunhão e exige dele uma retratação pública. O Santo Ofício revê a pena, mas mantém suspensas as ordens sacerdotais.
1926: A Coluna Prestes entra no Ceará. Cícero escreve carta aberta a Prestes, conclamando-o à rendição. Floro tem a ideia de convocar Lampião para integrar o chamado "Batalhão Patriótico", organizado para dar combate à Coluna. É quando o cangaceiro recebe a patente de capitão e passa a assinar "Capitão Virgulino". No mesmo ano, Cícero é eleito deputado federal, mas não assume o cargo, por causa da idade avançada.
1930: Vitória da revolução que leva Getúlio Vargas à Presidência da República. Cícero escreve uma carta aberta ao povo, classificando os revolucionários de "mensageiros de Satanás".
1934: Morre Cícero Romão Batista. No testamento, ele deixa a maior parte dos bens para a Igreja. Após o falecimento do padre, os paninhos manchados de sangue reaparecem em poder de uma beata. Por ordens do novo bispo do Crato, de acordo com o que determinara o Santo Ofício, eles são destruídos e queimados.
2001: O cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, reabre o processo que culminou na suspensão de Cícero.
2005: Ratzinger é eleito papa. No ano seguinte, recebe a documentação de uma comissão interdisciplinar de estudos que sugere a anistia, post-mortem, do padre.
2015: O padre Cícero é perdoado das punições impostas e reconciliado com a Igreja Católica. O processo de beatificação passa a ser possível.
Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão, Lira Neto, Companhia das Letras, 2009
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