Há exatos 83 anos, a população de Juazeiro do Norte, no
Ceará, dava último adeus a Cícero Romão
Batista, o Padre Cícero. Nascido em 24 de março de 1844, Crato (CE), Padre Cícero faleceu
em 20 de julho de 1934, em Juazeiro do Norte. Carismático, Padre Cícero ou “Padim
Ciço”, obteve grande prestígio e influência sobre a vida social, política e
religiosa do Ceará e da Região Nordeste do Brasil.
Padre Cícero, foi o primeiro prefeito de Juazeiro do Norte,
em 1911, quando o povoado foi elevado a cidade. Voltou ao poder, em 1914,
quando o governador Marcos Rabelo foi deposto. No final da década de 1920, o
Padre Cícero começou a perder a sua força política, que praticamente acabou
depois da Revolução de 1930. Seu prestígio como santo milagreiro, porém,
aumentaria cada vez mais.
Em 1° de novembro de 1969 no alto do Horto, em Juazeiro do
Norte foi erguido uma estátua (a terceira maior do mundo) em homenagem ao Padre
Cícero Romão Batista. Em 22 de março de 2001 “Padim Ciço” foi eleito o cearense
do século.
A trajetória religiosa e política de Padre Cícero é relatada
na excelente biografia Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão, do
jornalista Lira Neto. A obra é primorosa, resultado trabalho intenso de dez
anos de pesquisa, baseada em documentos raros e inéditos tornam a biografia a
mais completa obra sobre a vida do mais amado e controvertido religioso que o
Brasil já teve, Padre Cícero, para os romeiros e fiéis, o “Padim Ciço”.
Clique aqui e ouça a música Viva meu Padim, composta pelo
Rei do Baião, Luiz Gonzaga e João Silva para homenagear Padre Cícero. A canção
tem a participação especial de Benito di Paula.
Leia mais sobre Padre Cícero
Lira Neto, via Aventuras na História
Um padre que viveu sob o signo da controvérsia e morreu
proscrito, condenado pelo Santo Ofício. Esse foi sacerdote brasileiro Cícero
Romão Batista, acusado no fim do século 19 de proclamar falsos milagres, de
incentivar o fanatismo popular e de se beneficiar financeiramente da devoção
extremada de seus milhões de seguidores.
Em decorrência das acusações de que era um rebelde, um
desobediente à hierarquia católica e um semeador de fanatismos, ele foi alvo de
um inquérito eclesiástico que terminou por proibi-lo de rezar missas, de
confessar fiéis e de ministrar sacramentos como o batismo e o matrimônio.
Tornou-se, então, um pária da fé. Apesar de idolatrado pelos cerca de 2,5
milhões de peregrinos que acorrem todos os anos à cidade cearense de Juazeiro
do Norte para reverenciar sua memória, Cícero foi um padre maldito, renegado
pela Igreja Católica.
Fazedor de milagres
Toda a história pessoal de Cícero Romão Batista está
permeada de mistérios, ambiguidades e contradições. Amado e odiado em igual
medida por seus contemporâneos, depois de morto - e talvez ainda mais a partir
daí - ele continua a provocar sentimentos idênticos de adoração e repulsa.
Nascido na cidade cearense do Crato em 1844, ordenado padre
em 1870, Cícero viveu e cresceu na confluência de dois mundos. De um lado, o
universo mágico do misticismo sertanejo, no qual a crença em lobisomens, almas
penadas e mulas-sem-cabeça convivia com a festiva devoção aos santos padroeiros
e com as advertências apocalípticas dos profetas populares, que pregavam o fim
dos tempos. Do outro lado, o mundo da fé ritualizada, da disciplina clerical e
da submissão cristã com a qual foi educado e doutrinado no seminário. Com um pé
no maravilhoso, outro na ascese, Cícero protagonizou uma biografia acidentada,
recheada de episódios mirabolantes que mais parecem beirar a ficção.
Entretanto, até os 45 anos de idade, sua vida nada teve de
extraordinária. Em 1889, Cícero era um simples padre de aldeia, rezando missa
numa minúscula capelinha do então povoado do Juazeiro, a 600 quilômetros de
Fortaleza, quando um fenômeno misterioso chamou a atenção dos sertanejos, da
Igreja e da imprensa. Ao ministrar a comunhão a uma beata - a humilde
costureira e doceira Maria de Araújo -, a hóstia consagrada teria se
transformado em sangue. "Não posso duvidar, porque vi muitas vezes",
escreveu Cícero a dom Joaquim José Vieira, bispo do Ceará.
Os jornais abriram manchetes para noticiar o fenômeno e os
sertanejos caíram de joelhos diante do proclamado milagre. A Igreja, porém,
acusou Cícero e a beata de fraude. "Se Maria de Araújo recebe realmente
provas do céu, que as vá gozando só, sem perturbar a boa ordem da diocese",
desdenhou o bispo Vieira.
Fato ou embuste, o caso é que o padre e seus adeptos
evocaram em sua defesa uma série de fenômenos mais ou menos semelhantes,
devidamente chancelados pelo Vaticano sob a classificação genérica de
"milagres eucarísticos". Mas uma frase atribuída ao então reitor do
Seminário da Prainha, o padre Pierre-Auguste Chevalier, revelaria a dificuldade
do clero tradicional em aceitar as manifestações da fé popular: "Jesus
Cristo não iria sair da Europa para fazer milagres no sertão do Brasil",
teria tripudiado o francês.
Chefe político
O episódio da hóstia que diziam se transformar em sangue
rendeu a Cícero a admiração dos milhares de peregrinos, que desde então não
nunca pararam de chegar a Juazeiro para testemunhar a suposta maravilha. Mas
também significou para o padre uma longa via-crúcis de indisposições perante as
autoridades eclesiásticas da época.
Banido pelo clero, Cícero passou a ocupar a posição de
mártir no imaginário coletivo, ao mesmo tempo que começou a desfrutar de uma
enorme notoriedade e de um imenso poder junto ao povo mais simples do sertão,
vítimas históricas da seca e do descaso governamental. Aquela gente, sem
perspectivas, sem dinheiro e sem chão, cada vez mais se identificava com o
sacerdote que nunca foi propriamente um grande orador, mas em compensação sabia
falar a mesma língua deles, chamando-os de "amiguinhos", ouvindo-lhes
as queixas, distribuindo prédicas e conselhos.
Moralista severo, Cícero pregava contra os amancebados, os
festejos pagãos e o desregramento das famílias. Numa terra em que imperava a
lei do punhal e do bacamarte, seu lema mais famoso conclamaria os pecadores ao
arrependimento: "Quem bebeu não beba mais, quem roubou não roube mais,
quem matou não mate mais", costumava dizer.
Quando não pôde mais celebrar batismos, ele próprio aceitou
apadrinhar inúmeras crianças, vindo daí o título de "padrinho padre
Cícero", que na corruptela da linguagem popular resultou Padim Pade Ciço.
"Em cada casa um oratório, em cada quintal uma
oficina", pregava ele, atraindo trabalhadores, agricultores e artesãos de
todo o Nordeste, que passaram a se fixar e aos poucos transformaram o arrabalde
em um importante centro manufatureiro. O povoado virou cidade autônoma e, em
1911, Cícero foi nomeado o primeiro prefeito de Juazeiro. Líder religioso,
tornou-se também chefe político, igualmente polêmico e contraditório. Ao mesmo
tempo que pregava aos "náufragos da vida", como se referia aos menos
favorecidos, estabeleceu alianças com as elites poderosas.
A Santa Sé delibera
Entre 2001 e 2006, uma comissão multidisciplinar de estudos
se debruçou sobre a vasta documentação relativa ao padre, em arquivos do Brasil
e do Vaticano. Coordenada pelo bispo do Crato, dom Fernando Panico, tal
comissão foi composta por especialistas de várias áreas do conhecimento:
antropologia, filosofia, história, psicologia, sociologia e teologia. A
finalidade era trazer à luz novos documentos que servissem para tentar
responder a uma questão que sempre acompanhou o nome de Cícero: quem afinal foi
esse homem, acusado de espertalhão por muitos, aclamado como visionário por
outros tantos?
O relatório final da comissão foi entregue em maio de 2006
na Santa Sé. Junto, uma coleção de 11 volumes reunia as transcrições das
centenas de cartas trocadas entre os principais personagens da história do
padre. Um volume à parte levava cerca de 150 mil assinaturas de populares em
prol da reabilitação, às quais se somava um abaixo-assinado no qual se lia o
nome de 253 bispos brasileiros favoráveis à causa. Em complemento à papelada, a
carta de dom Fernando ao papa: "Venho com toda esperança e humildade
suplicar a Vossa Santidade que se digne reabilitar canonicamente o padre Cícero
Romão Batista, libertando-o de qualquer sombra e resquício das acusações por
ele sofridas",
Em setembro de 2008, a igreja de Nossa Senhora das Dores - o
templo que Cícero construiu em Juazeiro e no qual depois se viu impedido de
rezar missa - foi elevado pelo Vaticano à categoria de basílica. Com isso, o
brasão de Bento XVI foi sintomaticamente colocado à porta de entrada, bem à
vista dos romeiros que chegam para louvar o Padim. No templo em que o padre
está enterrado, a capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, também em
Juazeiro, foi autorizada a instalação de um vitral multicolorido em que se
destaca a imagem de Cícero, ao lado de outros santos oficiais.
Em 2015, finalmente, o perdão se tornou 100% oficial. O
bispo Dom Fernando Pânico, declarou sua reabilitação em 13 de dezembro. Esse é
o primeiro passo para uma posterior beatificação, ou seja, o reconhecimento
canônico de que o homem Cícero Romão Batista teria vivido na plenitude das
virtudes cristãs, sendo um "bem-aventurado", resultou na consequente
autorização para o culto público a seu nome. Devido às milhares de graças que
os romeiros dizem ter alcançado por intercessão do padre Cícero - cegos que
teriam voltado a ver, aleijados que andaram novamente, loucos que teriam
recuperado o juízo -, o caso, ainda pode evoluir da simples beatificação para a
efetiva canonização, quando então ele seria elevado à honra dos altares de toda
a Igreja. Esse processo burocrático, como ocorreu com Frei Galvão (1739-1822),
o primeiro santo nascido no Brasil e durou vários anos.
Santo sertanejo
A polêmica trajetória de Padre Cícero
➽1844: Cícero Romão Batista nasce na cidade do Crato (CE).
➽1870: Cícero é ordenado padre, apesar das reservas do
reitor do seminário, que o julgava um aluno "teimoso" e "dono de
ideias confusas".
➽1872: Sem ter recebido nenhuma paróquia, o jovem padre
aceita o convite de moradores para rezar a missa de Natal no pequeno povoado de
Juazeiro, vizinho ao Crato. Segundo ele, um sonho faz com que continue a morar
ali para sempre. Jesus teria pedido a Cícero que "tomasse conta" dos
pobres do local.
➽1889: 1 de março, sexta-feira da Quaresma, o padre Cícero
oferece a comunhão à beata Maria de Araújo e a hóstia se transforma em sangue.
O fenômeno teria ocorrido por semanas seguidas, até 15 de agosto, dia da
Ascensão de Nossa Senhora. Os paninhos manchados de sangue são adorados como relíquias
sagradas. O milagre vira notícia na imprensa de todo o país.
➽ 1891: O bispo do Ceará, dom Joaquim José Vieira, censura
Cícero e o monsenhor Monteiro por proclamarem milagres ainda não investigados
pela Santa Sé. Cria uma comissão de inquérito eclesiástico, formada pelos
padres Francisco Antero e Clycério da Costa Lobo. A ordem é desmascarar um
possível embuste.
➽1892: O padre Antero viaja ao Vaticano em defesa de
Cícero. O Santo Ofício examina o caso. Em agosto, o bispo cearense proíbe
Cícero de rezar missas, pregar aos fiéis, confessar e ministrar sacramentos.
➽ 1894: o Santo Ofício condena os fatos como
"prodígios vãos e supersticiosos. Os padres adeptos do milagre se
retratam. Menos Cícero.
➽1898: Cícero vai ao Vaticano se defender. É interrogado e
depois recebido pelo papa Leão XIII. O Santo Ofício absolve Cícero das
censuras, desde que ele guarde silêncio sobre o caso. O padre jura submissão,
mas segue suspenso das ordens sacerdotais. Os paninhos sujos de sangue são
roubados da matriz do Crato e desaparecem por vários anos.
➽1908: Atraído por notícias da existência de uma valiosa
mina de cobre na região, chega a Juazeiro um baiano misterioso: Floro
Bartolomeu. Médico, rábula e garimpeiro, ele passa a ser o principal braço
político de Cícero.
➽1909: Começa a circular O Rebate, primeiro jornal de
Juazeiro, fundado para defender a tese da emancipação do povoado em relação ao
Crato. Floro Bartolomeu é um dos editores.
➽1910: Morre misteriosamente o professor José Marrocos, um
ex-seminarista que exerce grande influência sobre Cícero. Floro é acusado de
tê-lo envenenado, mas nunca se prova nada a esse respeito.
➽1911: Juazeiro se emancipa. Cícero, filiado ao Partido
Republicano Conservador, é nomeado primeiro prefeito do novo município.
Permanecerá quase duas décadas no cargo, sendo reeleito seguidamente. Na data
da posse, sela um pacto de paz com os principais coronéis da região, no qual
todos prometem parar as animosidades mútuas.
➽1913: Em acordo com o governo federal e com o aval de
Cícero, Floro viaja ao Rio de Janeiro para tramar a queda do então presidente
(cargo igual ao de governador) do Ceará, Franco Rabelo. De volta, Floro depõe
as autoridades municipais e instala uma Assembleia estadual paralela para
caracterizar a duplicidade de poderes e provocar uma intervenção federal.
➽1914: O governo estadual reage. Manda tropas para atacar
Juazeiro. Cícero segue o conselho de um sobrevivente de Canudos e pede aos
moradores que cavem um fosso gigantesco em torno da cidade: o "Círculo da
Mãe de Deus". Com isso, o ataque fracassa. Juazeiro parte para a ofensiva.
Comandado por Floro, um exército de jagunços e cangaceiros toma o Crato e
várias outras cidades cearenses, cercando Fortaleza. O governo federal decreta
a intervenção no Ceará. Cícero é nomeado vice-presidente do estado.
➽1916: A Santa Sé declara que Cícero, aos 72 anos, por
ainda alimentar o "fanatismo", está excomungado. Mas ele jamais
saberia disso. Temendo pela saúde do velho padre, o bispo do Crato, Quintino
Rodrigues, evita aplicar a excomunhão e exige dele uma retratação pública. O
Santo Ofício revê a pena, mas mantém suspensas as ordens sacerdotais.
➽1926: A Coluna Prestes entra no Ceará. Cícero escreve
carta aberta a Prestes, conclamando-o à rendição. Floro tem a ideia de convocar
Lampião para integrar o chamado "Batalhão Patriótico", organizado
para dar combate à Coluna. É quando o cangaceiro recebe a patente de capitão e
passa a assinar "Capitão Virgulino". No mesmo ano, Cícero é eleito
deputado federal, mas não assume o cargo, por causa da idade avançada.
➽1930: Vitória da revolução que leva Getúlio Vargas à
Presidência da República. Cícero escreve uma carta aberta ao povo,
classificando os revolucionários de "mensageiros de Satanás".
➽1934: Morre Cícero Romão Batista. No testamento, ele deixa
a maior parte dos bens para a Igreja. Após o falecimento do padre, os paninhos
manchados de sangue reaparecem em poder de uma beata. Por ordens do novo bispo
do Crato, de acordo com o que determinara o Santo Ofício, eles são destruídos e
queimados.
➽2001: O cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação
para a Doutrina da Fé, reabre o processo que culminou na suspensão de Cícero.
➽2005: Ratzinger é eleito papa. No ano seguinte, recebe a
documentação de uma comissão interdisciplinar de estudos que sugere a anistia,
post-mortem, do padre.
➽2015: O padre Cícero é perdoado das punições impostas e
reconciliado com a Igreja Católica. O processo de beatificação passa a ser
possível.
Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão, Lira Neto,
Companhia das Letras, 2009
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