Da ÉPOCA
“Quem é que fica andando com 500 mil de um lado para o
outro?!”, perguntou, entre nervoso e espantado, o empresário Frederico Pacheco
ao lobista Ricardo Saud, da JBS, na tarde do dia 12 de abril deste ano. Fred,
como é conhecido o primo do senador Aécio Neves, estava no escritório de Saud,
em São Paulo, para apanhar a segunda parcela de R$ 500 mil dos R$ 2 milhões
acertados entre o presidente do PSDB e Joesley Batista dias antes. Fred fora
designado para a tarefa por Aécio, como registrado em áudio pelo próprio
senador: “Um cara que a gente mata antes de fazer delação”. A Polícia Federal
monitorava o encontro – uma ação controlada, autorizada pelo ministro Edson
Fachin, relator do caso no Supremo Tribunal Federal. Fred estava
desconfortável. Não aceitou água nem café. Diante dele, numa mesa da sala de
Saud, havia uma mala preta abarrotada de pacotes com notas de R$ 50, amarrados
com liguinhas de plástico. Fred parecia verbalizar, um atrás do outro, todos os
pensamentos que lhe assaltavam: “Onde eu tô me metendo, cara?”. A mala fora
providenciada por Florisvaldo de Oliveira. Ele sempre auxiliava Saud nas
entregas de dinheiro e mantinha um pequeno estoque delas à disposição. Para
entregas a partir de R$ 500 mil, a mala preta era a mais adequada. Acomodava
bem meio milhão de reais, até quase R$ 1 milhão em notas de R$ 50, se observado
o método correto de organização de maços. Florisvaldo ajudara a recolher o cash
para a propina de Aécio na central da JBS que reunia dinheiro vivo de clientes
da empresa, como supermercados e distribuidores de carnes – clientes que
giravam bastante dinheiro vivo. Essa central era chamada internamente de
“Entrepostos”. Abastecia boa parte dos políticos que, como Aécio, pediam a sua
parte em dinheiro vivo.
ÉPOCA reconstituiu a cena por meio de gravações autorizadas
pela Justiça (ouça um dos áudios) de entrevistas reservadas com participantes
da ação controlada. Reconstituiu, também, as outras quatro entregas de dinheiro
vivo acompanhadas pela PF entre abril e maio deste ano, na Operação Patmos,
resultado das delações dos executivos da JBS. Os cinco pagamentos somaram R$
2,4 milhões. Foram três entregas de R$ 500 mil destinadas a Aécio, uma de R$
400 mil destinada ao doleiro Lúcio Funaro e, por fim, uma de R$ 500 mil. Aquela
mala preta com rodinhas, que cruzou velozmente as calçadas de São Paulo graças
às mãos marotas de Rodrigo Rocha Loures, o “longa manus” de Michel Temer, nas
palavras da denúncia da Procuradoria-Geral da República. A reportagem teve
acesso, com exclusividade, a dezenas de imagens das malas, pastas e bolsas de
dinheiro da JBS sendo estufadas com notas de R$ 50 e de R$ 100. Algumas poucas
já eram públicas e outras estavam reproduzidas, em preto e branco, quase que
como borrões, em processos no Supremo. O restante do conjunto, no entanto,
permanecia inédito. ÉPOCA publica agora as imagens mais pertinentes. A força da
íntegra desse material reside na exposição visceral e abundante do objeto que
mobiliza o desejo e os atos dos corruptos, políticos ou não, no Brasil ou fora
dele: notas, muitas notas, de dinheiro. Amarelas ou azuis. Em malas ou pastas.
Recolhidas por familiares ou assessores. Dois meses após a delação da JBS, após
semanas e semanas de discussões jurídicas e políticas sobre a crise que se
instalou no Brasil, esse elemento tão primário, tão fundamental, ficou
convenientemente esquecido.
De acordo com a reconstituição de ÉPOCA, Fred buscou todas
as parcelas de R$ 500 mil de Aécio. Começou no dia 5 de abril, voltou no dia
12, já sob monitoramento da PF, e manteve o cronograma nas semanas seguintes:
encontrou Saud, no mesmo local, também nos dias 19 de abril e 3 de maio.
Cumpria a tarefa enquanto o Brasil conhecia o teor das delações da Odebrecht;
enquanto o país assistia aos depoimentos dos executivos da empreiteira, que
tanto incriminavam Aécio. “Eu durmo tranquilo”, disse Fred no segundo encontro,
logo após racionalizar os crimes que cometia como um ato isolado, que não o
definia. “Se eu te contar uma coisa, você não vai acreditar: a única pessoa com
quem eu tratei em espécie foi você. A única pessoa que pode falar de mim é
você.” Saud deixou-o à vontade para desabafar. “Como é que eu não faço? Tenho
um compromisso de lealdade com o Aécio”, disse, antes de começar a contar o
dinheiro:
– Um, dois, três, quatro, cinco... Ih, fiz a conta errada.
Peraí. O que tem em cada pacotinho desses?
– Eu te ajudo a fechar aqui [a mala].
– Cem, 200, 300...
Naquele mesmo dia, relatórios do Conselho de Controle das
Atividades Financeiras, o Coaf, registram operações com suspeita de lavagem
envolvendo empresas e um assessor do senador Zeze Perrella, aliado de Aécio.
Mendherson Souza trabalhava no gabinete do senador e tinha procuração para
movimentar contas dele. Já aparecera em outras operações bancárias em cash, com
suspeitas de lavagem. Acompanhava o primo de Aécio, como seu ajudante. No mesmo
dia, também, Fred telefonou para um conhecido doleiro de São Paulo, de modo a
buscar formas de esquentar o dinheiro.
Enquanto conferia os valores e colocava parte dos bolos de
dinheiro numa bolsa que levara a São Paulo, o primo de Aécio não parava de
falar sobre os riscos aos quais estava submetido. “Amanhã eu vou estar com
Aécio na fazenda, em Cláudio, e vou falar que já fiz duas e faltam duas. [Fala
como se estivesse se dirigindo a Aécio] ‘Só para você entender: estamos nos
cercando de cuidados, mas não é uma operação 100% sem riscos.” Ele bolava
maneiras de se proteger. E se fosse parado numa blitz? O que diria? “Pensei em
fazer um contrato de compra e venda de uma sala, só para andar com um documento
na pasta. ‘Não, acabei de vender uma sala. O cara quis pagar em dinheiro’...”
Saud só assentia. Prosseguiu Fred: “O país está num momento esquisito. Se eu
tiver de voltar aqui, eu faço uma promissória para você, uma mise-en-scène. Mas
Deus vai nos proteger”. Antes de sair com a mala, insistiu: “Não tem perigo de
filmar aqui? Vocês fazem varredura?”. “Sim, duas vezes por semana. Tranquilo”,
disse Saud. A PF registrara tudo.
No terceiro encontro, Fred já estava mais à vontade. Pudera.
Apesar do discurso, fora ele, segundo as planilhas de propina da JBS, que
buscara R$ 5,3 milhões em cash para Aécio, durante a campanha de 2014. Desta
vez, as notas eram de R$ 100 – seis pacotões numa mochila cinza. Após repassar
a dinheirama para o assessor de Zeze Perrella, ficou para almoçar com Saud.
Traçou uma picanha importada, enquanto falava de política e negócios. Lá pelas tantas,
Fred perguntou: “Tem alguma chance de Joesley fazer delação? Se fizer, acaba o
Brasil. Tem de inventar outro”. Saud só riu.
No dia seguinte, Florisvaldo teve mais trabalho. Saud
precisava entregar R$ 400 mil a Roberta Funaro, irmã do doleiro. Era o mensalinho
para manter Funaro, parceiro de negociatas do grupo, em silêncio dentro da
prisão. Florisvaldo arrumou uma pasta preta; como as notas eram de R$ 100,
seria possível preencher os R$ 400 mil nela. Saud entregou o dinheiro à irmã de
Funaro num Corolla. Pediu à filha pequena de Roberta, que acompanhava a
empreitada, para esperar num táxi que aguardava as duas: “Deixa o tio conversar
com a mãe um pouquinho”. O lobista se sentiu mal com a situação, mas não havia
jeito. Era preciso liquidar o assunto. Ele abriu a pasta e pediu que ela
contasse o dinheiro. Roberta dispensou. Disse que não era necessário. Agradeceu
e embarcou no táxi – e, minutos depois, num Jaguar que a levou para casa.
Uma semana depois, Florisvaldo pôs-se a trabalhar novamente.
Mais uma mala preta. Mais R$ 500 mil. Daquela vez, em notas de R$ 50. Era a
primeira entrega da semanada acertada entre Saud e Rocha Loures, em troca de um
benefício ilegal no Cade a uma empresa do J&F que detinha contrato com a
Petrobras.
A farra das malas da JBS encerrou-se no dia 3 de maio. Foi a
vez de Fred, o primo de Aécio, apresentar-se para sua derradeira missão.
Florisvaldo cumpriu antes a sua: arranjou uma mala preta semelhante à usada nas
entregas anteriores. Separou seis bolos de notas de R$ 100, perfazendo pela
quarta vez R$ 500 mil. No total, R$ 2 milhões ao presidente do PSDB. Em troca
da promessa de obstruir a Lava Jato e de obter favores ilegais na Vale, onde
detém influência, ao grupo J&F. Usou-se o mesmo método das operações
anteriores. O primo de Aécio já parecia se acostumar com o papel de mula.
Quando a operação foi deflagrada, as mulas que botavam a mão
no dinheiro da JBS foram presas, a pedido da PGR e por autorização de Fachin.
Rocha Loures, Fred, o assessor de Perrella, a irmã de Aécio (que também
organizara os pagamentos) – todos presos. A irmã de Funaro foi levada a depor.
As semanas se passaram, e as solturas, tão criticadas por aqueles que combatem
e estudam crimes de colarinho branco, não tardaram. Fachin concedeu prisão
domiciliar a Rocha Loures – e este conseguiu furar a fila por uma tornozeleira.
A Primeira Turma do Supremo, sob relatoria do ministro Marco Aurélio Mello,
concedeu domiciliar para os demais envolvidos. O primo de Aécio ganhou
domiciliar. A irmã de Aécio ganhou domiciliar. O assessor que ajudou Aécio
ganhou domiciliar.
Aécio foi afastado por Fachin do exercício do mandato de
senador e denunciado pela PGR, mas o Supremo devolveu-o ao cargo – e ainda não
analisou a denúncia. Marco Aurélio Mello disse que Aécio tem uma "carreira
política elogiável". Até agora, o Supremo gastou mais tempo debatendo a
validade das malas de dinheiro da JBS do que os casos daqueles que as
receberam. Temer derrubou a primeira denúncia contra ele, por corrupção
passiva, na Câmara.
Em nota enviada a ÉPOCA, a defesa do senador Aécio Neves
disse que os recursos recebidos da JBS são provenientes de um contrato de
empréstimo, e que Joesley Batista se usou desse empréstimo para “única e
exclusivamente forjar uma situação criminosa que lhe desse o benefício da
delação premiada”. A nota não esclarece se Aécio pagou o empréstimo. A defesa
diz que o senador é vítima de uma farsa. “Não existem provas que fundamentem as
acusações de propina e favorecimentos ilegais. Também inexistem quaisquer atos
do senador que possam ser considerados de obstrução aos trabalhos da Lava
Jato.”
A defesa do ex-deputado Rodrigo Rocha Loures disse que não
vai se manifestar. A defesa de Roberta Funaro afirmou que em momento algum sua
cliente teve ciência de que poderia estar envolvida em objeto ou ação ilícita.
Os advogados de Lúcio Funaro disseram que têm atendido a todas as necessidades
processuais.
Procurado, o Palácio do Planalto não se manifestou.
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