Artigo de Fernando Gabeira
Quando cheguei à Argélia para o exílio, o pernambucano
Maurílio Ferreira Lima já morava lá. Levou-me para um passeio e passou num
açougue para comprar carne. Fez a transação em francês mas, ao sair, disse da
porta: “pendura”. Fiquei surpreso com a naturalidade e o sorriso do açougueiro.
Maurílio revelou que esta era a única palavra em português que ensinou a ele.
Cada vez que o governo vem anunciar uma nota fiscal,
lembro-me de Maurílio. É como se dissessem: “mais R$ 20 bilhões, pendurem”.
Maurílio pagava suas contas em dia. Ao contrário do governo, tratava apenas do
que comprava, e não de projeções para o ano seguinte. O governo pendurou R$ 20
bilhões em 2107 e anunciou que vai pendurar R$ 30 bilhões em 2018.
Quem vai pagar tanto dinheiro? Eles falam em economia nos
gastos públicos. Não acredito. Os dados estão aí: deputados e senadores querem
alguns bilhões para financiar suas campanhas.
Se fossem só os políticos, ainda havia uma esperança. A
Justiça, que tem sido aliada da sociedade na luta contra a corrupção, é muito
reticente quando se discutem os supersalários que excedem o teto legal. Nesta
semana, falando com um procurador que atua no Norte do país, ele me passou um
quadro desolador. Há promotores que chegam a ganhar R$ 125 mil mensais.
As notícias sobre juízes do Mato Grosso que receberam até R$
500 mil frequentaram o noticiário e saíram em paz. Um dos juízes chegou a
declarar: “não estou nem aí para o espanto que a notícia causou”. Ele não está
mesmo. Considera legal receber, e pronto. O próprio Supremo Tribunal Federal
sempre tem se manifestado a favor de quem ganha tanto dinheiro com salário e
penduricalhos.
Nesse sentido, a orfandade dos brasileiros é total. Os
políticos não só desviam dinheiro como inventam fórmulas para receber fortunas
através de suas leis eleitorais. E a Justiça não mostra nenhuma sensibilidade
para o problema. O que fazer nessas circunstâncias?
Dentro do quadro de apatia que se criou no país, parece que
a alternativa é trabalhar e separar o dinheiro do imposto, assim como muitos,
em áreas de risco, saem com o dinheiro exato do assalto. Mas é uma tática que
tem seus limites. A máquina burocrática brasileira é muito pesada para o país.
Ela se comporta como se estivéssemos nadando em dinheiro.
O grande problema da necessária austeridade é o próprio
governo. Se ele tem um projeto de reforma da Previdência que implica em
sacrifícios para alguns, quem vai apoiá-lo sabendo que não há reciprocidade nos
esforços? O resultado disso é a marcha da insensatez que vai nos levando
progressivamente ao caos. No momento, falamos em bilhões com tranquilidade, mas
já há quem calcule em meio trilhão o rombo nos próximos anos.
Mas toda essa conversa sobre números acaba sendo abstrata.
Nas estradas, caiu o policiamento; nas fronteiras, a redução de verbas
dificulta a ação das Forças Armadas. Nos hospitais, então, a escassez mata.
Em 2013, a sociedade intuiu que isso estava errado e se
manifestou nas ruas, queria serviços decentes para os impostos que paga.
Naquele momento, as grandes empresas estavam tranquilas. Se reclamavam dos
impostos, a resposta foi simples: ampliar isenções. O BNDES emprestava dinheiro
a juros reduzidos, e os próprios políticos ofereciam isenções. De tal forma
ofereceram que, no Rio, cabeleireiros, joalherias e até um prostíbulo
tornaram-se isentos. A corrupção mostrou como recursos públicos eram drenados.
A quebradeira agora vai colocar também em cena algo que não era tão discutido em
2013. Pedia-se um serviço decente em troca do imposto.
Agora, num momento em que cogitam a alta dos impostos, o
Brasil merece um grande debate sobre como o bolo dos recursos públicos é
dividido.
Por que há tantas isenções e qual o benefício que trazem
para o país? Por que uma máquina com tanta gente é tão pouco produtiva? Por que
salários tão altos, tantos penduricalhos?
No Congresso participei de inúmeros debates sobre isso,
tentando convencer o governo, na época, a reduzir radicalmente as viagens, que
custavam em torno de R$ 800 milhões por ano. Já havia os meios para isso:
teleconferência, Skype. Hoje foram ampliados com novas alternativas.
O alto custo não é apenas com passagens, mas também com as
diárias pagas aos funcionários. Por isso, quando se fala em reduzir custos e
aumentar a produtividade, há sempre uma resistência. Apesar de haver gente
bem-intencionada entre os funcionários, o ânimo para aumentar a produtividade
de serviços públicos deveria vir do universo político.
Do mundo político não virá nada. Foi o próprio sistema
político-partidário que criou esse monstro dispendioso. Os políticos, nesse
episódio, não são uma solução, e sim uma parte substancial do problema. Se
depender eles, o atraso se eterniza. Sempre que apertar, vão dizer: “pendurem”.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 20/08/2017
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