Artigo de Fernando Gabeira
Os idos de 64 já vão longe, embora existam algumas
semelhanças com o presente. Hoje a situação internacional é favorável à
democracia, o Brasil está mais ligado ao mundo. E a tese fundamental é de que
sociedade tem a capacidade de resolver por si a grande crise em que está
metida.
Essa tese é também a razão da nossa esperança, não há a
mínima condição de abandoná-la. No entanto, ela sofreu um golpe no processo que
envolveu o Supremo e o Senado, culminando com a suspensão das medidas
cautelares aplicadas ao senador Aécio Neves.
Já é grande o número de pessoas que não acreditam em solução
democrática para a crise. Quem observar o discutido discurso do general Mourão,
que admitiu a possibilidade de intervenção militar, verá que ele coloca como um
dos fatores que a justificariam a incapacidade da Justiça de punir a corrupção
no mundo político. E a melhor maneira de negar essa perspectiva sombria é, precisamente,
demonstrar o contrário: que a Justiça cumprirá o seu papel, restando à
sociedade completar a tarefa com mudanças em 2018.
O Supremo ia nesse caminho quando esteve prestes a derrubar
o foro privilegiado. Quem assistiu às discussões teve a impressão de que
venceria a expectativa da sociedade de que a lei vale para todos. Mas o mesmo
Supremo que mostrava tendência a derrubar o foro privilegiado suspendeu a
decisão e, em seguida, deu um passo no sentido oposto: ampliou a blindagem dos
políticos, submetendo medidas cautelares ao crivo do Parlamento.
Quem ouviu o discurso da ministra Cármen Lúcia num primeiro
momento teve a impressão de que sua posição era contrária ao foro privilegiado.
Na votação posterior, porém, recuou. Titubeando, mas recuou.
O Supremo decidiu abrir mão de uma prerrogativa. Afastar do
mandato ou determinar recolhimento noturno não é o mesmo que prisão. É uma
contingência das investigações.
Claro que, ao entregar a decisão ao Senado, as medidas
cautelares seriam derrubadas. Entre todos os discursos, o mais cristalino foi o
do senador Roberto Rocha. Ele citou um poema que dizia mais ou menos isto: se
deixarem levar alguém hoje, amanhã levarão outro e o último estará sozinho
quando vierem buscá-lo. É uma ideia interessante no contexto de países
totalitários, a prisão é ameaça válida para todos os indivíduos. Mas Rocha não
estava falando de um país, e sim do próprio Senado, uma Casa cheia de
investigados pela Lava Jato cavando a última trincheira na areia movediça.
Outro passo atrás está a caminho no Supremo: recuar da
prisão após sentença em segunda instância. Isso significa a possibilidade ser
preso só depois de morto, no caixão!
Não sei como esses recuos serão metabolizados. Certamente,
tornam mais difícil o caminho de uma solução democrática. Provocam indiferença
enojada em muitas pessoas, em outras apenas reforçam o desejo de uma saída
autoritária.
Apesar de tudo, não se pode dizer que todo o Supremo e todo
o Senado tenham cavado mais um fosso de decepção. Tanto num como no outro há
vozes discordantes.
No Supremo deu empate, resolvido com um hesitante voto de
Minerva. No Senado, pouquíssimos entre os que votaram contra Aécio defendem a
tese de que o Supremo deveria ter a decisão final, retomar o poder de definir
medidas cautelares sem consultar o Congresso.
Isso significa que a maioria, incluído o PT, já considera
como uma conquista irreversível o poder de dar a palavra final. Ganharam um
escudo e vão usá-lo quando quiserem.
Imagino que o STF tenha tomado a decisão de abrir mão da palavra
final na expectativa de evitar uma crise entre instituições, num momento de
desemprego, tensões políticas. Mas certas crises têm de ser enfrentadas e
vencidas. O Congresso está de costas para a sociedade. Se a Justiça, no caso de
Aécio, não se impõe e, no caso de Temer, não consegue permissão para
investigá-lo, acaba transmitindo a impressão de que é impossível a lei valer
para todos.
O Supremo, penso eu, poderia voltar a dar um passo adiante,
retomando a votação do foro privilegiado. O ministro Alexandre de Moraes pediu
vista. É estranho que um ministro não tenha ainda posição sobre o tema. Ele tem
concedido entrevistas sobre revisar a prisão em segunda instância, o que
significa caminhar no sentido inverso.
Moraes transmite a impressão de que está pronto para dar um
passo atrás e precisa estudar muito ainda para votar um passo à frente. “Which side are you on?”, pergunta a
canção de Dropkick Murphys.
O caminho que reforça o velho sistema político-partidário e
fortalece a impunidade acaba sendo um grande obstáculo à democracia, embora se
revista de uma retórica democrática, sempre defendendo a Constituição, o
direito dos acusados, a liberdade. Mas algumas belas abstrações se revelam, na
prática, apenas uma forma de proteger um sistema poderoso e sofisticado de
corrupção.
A versão poética do senador Roberto Rocha é mais próxima da
realidade. Se deixarem levar um a um, acabam levando todos. É uma variante
dramática do verso “se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão”. Mas apenas
próxima da realidade: alguns votaram com naturalidade contra a blindagem não só
de Aécio, mas do conjunto dos parlamentares.
Essas batalhas, contudo, não se resolvem apenas dentro das
instituições. Elas dependem da sociedade, ou pelo menos de quem compreende que
e a solução autoritária é um trágico passo atrás. Um passo razoável seria
acionar mais o que resta de apoio nas instituições e travar um amplo diálogo
sobre como evitar o pior. No desespero da autodefesa, o sistema
político-partidário não hesita em pôr em risco a própria democracia.
Gostaria de estar dramatizando. Sei que 64 está distante,
todavia a conjuntura externa favorável e o nível de informação ampliado na era
digital são fatores que não bastam para garantir uma saída democrática. Ela
precisa de uma pequena ajuda dos amigos.
Para se defender, o sistema político não hesita em pôr a
democracia em risco.
Artigo publicado no Estadão em 20/10/2017
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