Artigo de Fernando Gabeira
No século passado, tive a oportunidade de cobrir a chegada
dos refugiados do comunismo às praias de Brindisi, na Itália. Vinham da
Albânia, sedentos de liberdade e de algum conforto material. E agora testemunho
o movimento dos refugiados do socialismo do século 21. Como o drama se
desenrola no Brasil, tive a oportunidade de seguir sua trajetória em três
viagens à fronteira.
Na primeira entrei na Venezuela. Nas duas últimas
concentrei-me em Boa Vista, Pacaraima e no trecho de 200 quilômetros da BR-174
que liga a fronteira à capital de Roraima.
O Brasil ainda não se deu conta desse drama na sua
amplitude. Cerca de 180 crianças venezuelanas entram todos os dias no País, na
maternidade Boa Vista nascem quatro por dia. E há muitas mulheres grávidas.
Toda uma nova geração de brasileiros está surgindo desse drama histórico.
Índios waraos, que desceram da Bacia do Orenoco, vieram em
massa para o Brasil. Estão alojados em Pacaraima e em Boa Vista. No ano passado
estavam na rua. Eram um perigo para eles e também para a pequena cidade
brasileira. Muitos tinham doenças de pele, pelas circunstâncias em que vivam,
amontoados na rodoviária e nas cercanias. Hoje estão em abrigo, ainda em
situação precária. É praticamente toda uma etnia que se mudou para cá. O que
fazer diante disso?
A novidade desta última viagem é que o drama ficou mais
intenso, famílias dormindo no chão, crianças revirando latas de lixo, mulheres
se prostituindo na capital. Há também nesse sofrimento muita iniciativa, muita
gente vendendo picolé, cortando cabelo, desenhando retratos, enfim, buscando
uma forma de atenuar a miséria.
Hoje, são os próprios habitantes de Roraima que alimentam os
venezuelanos. Mas isso não significa a inexistência de rejeição. As pesquisas
indicam um mal-estar crescente, uma xenofobia latente num Estado que já teve os
maranhenses como bode expiatório num momento em que se deslocaram em massa para
Roraima.
O governo lançou um plano de ordenamento da fronteira com a
Venezuela. Assim como a intervenção no Rio, é uma ideia à espera de um plano
concreto. O princípio é correto: cadastrar e distribuir os venezuelanos
racionalmente pelo País.
Pelo menos em teoria, aprendemos com a história dos
haitianos no Acre. Eram em menor número, mas ainda assim foi preciso mandá-los
de ônibus para São Paulo, sem nenhum aviso ou preparação.
No caso dos venezuelanos, no êxodo em massa está embutida
também uma fuga de cérebros. Não há indicações precisas, mas há quem calcule em
20% o índice de profissionais com curso superior.
Desde o ano passado eu estranho o silêncio das forcas políticas
brasileiras. Naquela época, já era possível prever esse desdobramento e, mais
ainda, é possível agora afirmar que não existe nenhuma solução no horizonte.
Os venezuelanos vão continuar saindo em massa do país e as
eleições anunciadas por Nicolás Maduro, boicotadas pela oposição, devem
fortalecer a ditadura bolivariana. Os instrumentos diplomáticos do continente,
Mercosul, Unasul, OEA, parecem incapazes de encontrar saída.
O Brasil hesita em internacionalizar o problema, embora a
ONU já tenha mostrado simpatia pelo plano teórico de Temer. A
internacionalização dificilmente resolverá pela América do Sul um problema que
é muito do próprio continente.
A Europa está sobrecarregada com o êxodo pelo Mediterrâneo.
Os Estados Unidos são governados por Trump, que não tem simpatia pelos
refugiados.
O plano de ordenamento da fronteira, segundo os militares,
depende de segurança jurídica. Ali podem trabalhar contra a entrada de drogas e
armas. Mas não podem legalmente tratar de migração.
A fronteira continua porosa. Existe algo muito difícil de
combater, técnica e politicamente: o contrabando de gasolina. A 174 está cheia
de carcaças de carros queimados, muitos deles tentando escapar da polícia com
uma altamente inflamável carga desse combustível. Documentei como os carros
evitam a aduana e entram por um caminho alternativo trazendo a gasolina, que no
lado da Venezuela é tão barata que dez centavos de real dão para encher um
tanque. No lado brasileiro é vendida por R$ 1,50 o litro.
É politicamente difícil combater o contrabando, pelos
simples fato de que ele faz parte da vida de Pacaraima: a cidade não tem posto
de gasolina. Em termos de coerência, o Brasil só pode combater esse tipo de
contrabando se abrir um posto em Pacaraima. A cidade se organiza como se isso não
fosse necessário.
São 400 quilômetros de ida e volta entre Pacaraima e Boa
Vista. É preciso encher o tanque na capital até transbordar ou, então, fazer o
jogo do contrabando. Qual o sentido de tirar proveito de um país em ruínas?
Jogar no quanto pior, melhor? Essa tese pertence ao outro lado, o de Maduro e
seus apoiadores no mundo.
O êxodo entrou no noticiário talvez enfatizando apenas o
sofrimento, sem atenção para os milhares de estratégias pessoais de
sobrevivência, uma dimensão que é possível sentir nas descrições do escritor
Primo Levi do campo de concentração em Auschwitz.
Mas na política mesmo ainda não descobriram o que se está
passando por lá, exceto pelo voz desgastada de Romero Jucá. Impressionante como
tanto sofrimento some no radar de Brasília. A condição humana escapa à esquerda
quando as pessoas fogem do que ela considera um paraíso ou, como Lula, uma
democracia em excesso. A esquerda não pode encarar essa realidade porque
abalaria sua autoimagem. Entre abrir a cabeça ou se fechar para o mundo, já fez
sua opção.
Felizmente, é um drama que não tem repercussão eleitoral, a
não ser num universo de meio milhão de habitantes de Roraima. Com as paixões em
fogo brando talvez seja possível responder com serenidade a essa tragédia,
mesmo sabendo que o horizonte será mais sombrio.
Artigo publicado no Estadão em 23/02/2018
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