domingo, 25 de março de 2018

CAMBALACHOS DE TOGA

Da ISTOÉ
Há um exatamente um século, muito antes de Lula medir publicamente o real tamanho moral da Suprema Corte do País, ou seja, minúscula, “totalmente acovardada”, Monteiro Lobato jogava luz sobre a nova Justiça que emergia no regime republicano, àquela altura ainda em processo de maturação. “Tinha vontade. Tem medo. Tinha Justiça. Agora, tem cambalachos de toga”, escreveu num primor de artigo. Pois o deplorável destino se cumpriu na noite de quinta-feira 22. Como se de joelhos estivesse diante de quem um dia a enxergou totalmente despida, a Suprema Corte promoveu um cambalacho jurídico e, com uma precisão cirúrgica jamais vista na história do tribunal, ajustou a lei para salvar Lula.
A Páscoa nunca será tão doce para um condenado à cadeia por corrupção. Ao adiar a discussão do mérito do pedido de habeas corpus do petista para o dia 4 de abril e, na sequência, conceder uma liminar pelo placar de seis a cinco para impedir o cumprimento da ordem de prisão pelo TRF-4, a corte dobrou a espinha para a defesa do petista. Se, na próxima sessão, o STF consagrar de vez a impunidade, durante a votação do mérito do HC, não haverá mais como descer na escala da desmoralização institucional. De qualquer forma, pelo que se viu na última semana, o plenário do Supremo representa hoje a maior distância entre o cometimento do crime e o cumprimento da Justiça. Pergunta-se: e os milhares de condenados presos, no País, à espera de um HC? Também terão liminar para aguardar nos recessos de seus respectivos lares a ordem de prisão? Definitivamente, o que aconteceu na noite dos horrores do Supremo não foi o sacrossanto respeito ao Estado de Direito, mas a rendição a um Estado de Arbítrio.
Difícil acreditar que o teatro encenado no STF não estava combinado entre os ministros pró-Lula. A demora dos ministros em discutir o cabimento do HC e em voltar do intervalo, inicialmente previsto para “10 minutos”, mas que durou meio tempo de uma partida de futebol, somada à viagem inadiável de Marco Aurélio Mello, logo ele que guerreou tanto nos bastidores e exerceu marcação cerrada sobre a presidente Cármen Lúcia para que aquela sessão acontecesse, compôs o espetáculo farsesco. A pantomima foi armada no convescote da vergonha. Ao fim, restou cristalino que o STF escancarou o que antes eram apenas brechas jurídicas para evitar a prisão de Lula. O tribunal manipulou a Carta Magna como quis. Como disse o ministro Luís Roberto Barroso, na sabatina de ministro do Supremo em 2013, na Constituição cabe tudo, quando prevalece o obscurantismo, as conveniências de ocasião, os chamados embargos auriculares, a relação promíscua com os políticos e a jurisprudência de carta-marcada. “Só não traz a pessoa amada em três dias”, dizia Barroso. Olha que, dependendo do freguês, até trás. Ao menos esse foi o recado mais eloqüente transmitido pelos ministros na sessão da quinta-feira 22.
Se algum consenso havia entre os partidários do ex-presidente Lula e aqueles contrários a ele era grave e urgente. A urgência, inclusive, era o argumento principal do habeas corpus impetrado pela defesa de Lula, comandada pelo ex-ministro do Supremo Sepúlveda Pertence. Ainda que aguardem julgamento no STF, além do de Lula, outros 54 pedidos de habeas corpus. Em algumas horas, porém, como se fossem vampiros ao contrário, temerosos da ausência de luz, tão logo o sol de pôs alterou-se nos 11 ministros do Supremo todo sentido de urgência. O que antes era motivo de pressão sobre a presidente do STF, Cármen Lúcia, e de bate-bocas constrangedores de ministros como Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso tornou-se adiável e compromissos triviais e quase pueris se tornaram prioridade.
OGO COMBINADO Marco Aurélio fala com advogados de Lula sobre a condução da sessão do STF, que acabou livrando o petista da cadeia até o próximo dia 4
“Peço que a sessão seja suspensa.Vou ter que me ausentar porque tenho voo para o Rio às 19h40” Marco Aurélio Mello, mostrando passagem da viagem ao Rio
O STF levou três horas e meia julgando uma questão preliminar: se deveria ou não considerar o habeas corpus pedido pela defesa de Lula. Concluída essa preliminar, às 18h30, o ministro Marco Aurélio Mello disse que tinha um voo marcado para o Rio de Janeiro às 19h40. Considerava mais importante abandonar o julgamento que definia se Lula, condenado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) a 12 anos de prisão, poderia ou não ir para a cadeia, para participar da posse da nova diretoria da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Certamente uma mensagem para os integrantes da academia explicando a importância do momento e desculpando-se pela ausência teria sido bem compreendida por todos. Mas, para Marco Aurélio, o compromisso era inadiável. De qualquer forma, terminada a posse da Academia, Marco Aurélio poderia pegar na sexta-feira 23 um voo de volta para Brasília e o STF poderia retomar o julgamento. Mas o STF, ao contrário da maioria do povo brasileiro, não trabalha às sextas-feiras. Pena que o abismo entre a sociedade e a mais alta corte do País é mais profundo que a folga do último dia da semana.
Gilmar Mendes:
“É preciso que a gente anteveja esse tipo de manobra. Porque não se pode fazer isso com o Supremo. Ah, agora eu vou dar uma de esperto e vou conseguir a decisão do aborto. De preferência, na Turma com dois, três ministros. Aí a gente faz 2 a 1”
Luis Roberto Barroso:
“Você é uma pessoa horrível. Uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia”
“Qual sua ideia? Nenhuma. É bílis, ódio, mau sentimento. É uma coisa horrível. Vossa excelência nos envergonha”
“É muito penoso para todos conviver com vossa excelência aqui”
“Não tem patriotismo, está sempre atrás de um interesse que não é o da Justiça. Uma coisa horrorosa. Uma vergonha. Um constrangimento. É muito feio”.
Gilmar Mendes:
“Eu vou recomendar ao ministro Barroso que feche seu escritório. Feche seu escritório de advocacia!!”
Incoerências
A decisão do STF é totalmente incoerente com altíssima tensão das últimas semanas. Desde a condenação de Lula pelo TRF4 o Supremo tem sido palco das ações dos advogados e partidários do ex-presidente petista, que fizeram de tudo para livrá-lo da prisão. Primeiro, tentaram que a ministra Cármen Lúcia colocasse novamente em julgamento a questão da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. Cármen Lúcia que, como presidente, tem a competência de definir a pauta, foi firme: essa questão fora decidida, com repercussão geral (ou seja, com determinação para todos os demais tribunais), em 2016, e não havia qualquer razão para ser revista.
PRESSIONADA Cármen Lúcia resistiu até onde pôde, mas não teve como evitar votação do HC de Lula (Crédito:Ailton de Freitas)
A defesa de Lula impetrou, então, um habeas corpus preventivo junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que foi negado, em caráter liminar, pelo vice-presidente do STJ, Humberto Martins. A defesa recorreu ao STF e o processo foi cair nas mãos do ministro Edson Fachin. Começava ali o imbróglio. A súmula 691, do próprio Supremo, veda a concessão de habeas corpus cuja liminar já tenha sido negada por outro tribunal superior. Mas Fachin não quis assumir sozinho o ônus de decidir contra Lula. Resolveu encaminhar a questão para o plenário do Supremo. Iniciou-se a queda de braço contra Cármen, que se negava a colocar o tema em julgamento.
A presidente do STF resistiu à pressão que vinha de seus próprios colegas de Corte até a segunda-feira 19, quando foi emparedada primeiramente por Marco Aurélio Mello. Se ela não colocasse a questão em julgamento, ele faria uma questão de ordem durante a sessão, exigindo um posicionamento. Os demais ministros se posicionariam, podendo até mesmo determinar que fosse feita a revisão do entendimento sobre prisão em segunda instância e Cármen Lúcia ficaria em minoria. Se derrotada, perderia a autoridade para continuar presidente do Supremo. No ápice da pressão, circulou um boato, não confirmado, de que Cármen cogitara renunciar ao cargo.
O decano (ministro mais antigo) Celso de Mello tentou uma solução conciliatória: uma reunião entre os ministros para buscar uma saída consensual. O encontro chegou a ser anunciado, mas Cármen Lúcia não a convocou. Preferiu adiantar-se: ela mesma resolveu, então, pautar o julgamento do habeas corpus. Seria um julgamento da questão específica de Lula, não a revisão da decisão de prisão em segunda instância. Mas a ópera-bufa, àquela altura, já parecia armada. Os protagonistas do escândalo supremo todos conhecem, os cúmplices a história ainda se encarregará de apontar.
Na véspera do julgamento, era tal o grau de tensão no Supremo Tribunal Federal que Gilmar Mendes e José Roberto Barroso quase chegaram às vias de fato. Durante o julgamento da decisão do STF que manteve a proibição de doações ocultas nas campanhas eleitorais, Gilmar Mendes começou a disparar críticas contra seus colegas, reclamando de outra decisão, a que proíbe a doação de empresas nas campanhas. Criticou primeiro Cármen Lúcia e depois Luiz Fux. Quando se dirigiu a Barroso, este reagiu duramente. “Me deixe fora desse mau sentimento. Você é uma pessoa horrível. Uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia”, atacou. Boquiaberta, Cármen Lúcia viu-se obrigada a suspender a sessão.
Na quinta-feira, ânimos abrandados, com as torcidas pró e contra Lula devidamente separadas por um alambrado na Praça dos Três Poderes, o STF reiniciou a pataquada. Ao fim, como se debochassem da maioria da população, hoje favorável à prisão de seu ilustre cliente, os advogados de Lula sorriam de orelha a orelha. “Nas circunstâncias, era o que se podia esperar do tribunal”, avaliou Sepúlveda Pertence. “Diante do fato de o julgamento não ter se concluído, a liminar era algo inegável”, completou. Perguntado se tal decisão projeta um possível julgamento favorável a Lula no dia 4 de abril, Sepúlveda evitou citar os eminentes juristas e catedráticos que fazem geralmente parte dos discursos dos advogados. Preferiu recorrer ao ex-jogador de futebol Dadá Maravilha: “Como diria Dadá, prognóstico só depois do jogo”.
No dia 4 de abril, a Corte se reúne provavelmente sem sua composição integral. Desta vez, estará ausente o ministro Gilmar Mendes. A não ser que mude de ideia, ele se encontrará em Lisboa, participando de um seminário sobre Direito. Com ou sem Gilmar, o que era grave e urgente será afinal decidido, duas semanas depois. Nos últimos tempos, poucos magistrados definiram tão brilhantemente o Supremo como o ex-ministro Ayres Britto. Segundo ele, o Supremo não está a salvo de práticas reveladoras de uma certa pequenez da alma. Não mesmo.
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