O que estava em jogo na quarta-feira era uma questão central
para o País: romper ou não com um sistema de corrupção que se alimenta da
lentidão da Justiça. O Brasil estava se tornando um país bizarro, com um vaivém
de cadeiras de rodas nas cadeias. Era tão difícil prender alguém, no labirinto
de agravos e recursos, que já chegava bem velho.
Como somos sentimentais, depois de algumas semanas todos
acabam em prisão domiciliar. E essa seria a tendência dominante se prevalecesse
a tese de impedimento da prisão após sentença de segunda instância.
A ideia básica da presunção de inocência é muito poderosa,
até por sua beleza filosófica. No entanto, depois de duas condenações é
razoável que sofra um abalo. Além disso, há outra ideia forte em jogo: a
eficácia da Justiça. Se via recursos e caros advogados os réus podem prolongar
sua liberdade, as vítimas não recebem o que merecem: justiça.
A proposta de Gilmar Mendes era obscena, pois previa uma
votação contrária à expectativa popular e, logo em seguida, uma acomodação da
opinião pública. Mas ninguém se vai acomodar. Nem os petistas, agora que Lula
se aproxima da prisão. No meu entender, isso os levará a gastar menos energia
com Lula e a pensar nos caminhos do País. A condenação do Lula e sua grande
capacidade de mobilizar acabaram ofuscando o debate sobre os rumos da
reconstrução.
O PT passou por diversas palavras de ordem, quase todas defensivas:
não ao golpe, eleição sem Lula é fraude, liberdade para Lula… Mas tudo indica
que as eleições serão sem Lula candidato – apesar de sua capacidade de
transferência de votos. Nada impede que um partido boicote as eleições, mas a
experiência mostra que se ganha muito mais participando do que boicotando.
Teremos virado uma página? Não creio. O debate sobre o tema
não envolve apenas Lula. Ele só encarnou um drama que para alguns, como Eduardo
Cunha e outros presos, precisava de um símbolo mais poderoso.
Ao longo destes anos, o sistema político sempre buscou uma
fórmula de neutralizar a Lava Jato. A resistência de Lula é antiga, desde que
definiu a “república de Curitiba”. Ele se colocou na linha de frente e os
grampos mostram isso. Num momento questionava a covardia do Supremo ante o
processo, noutro lamentava a passividade dos políticos, que pareciam ignorar a
tragédia que se abateria sobre eles.
O MDB também se importava com isso. A célebre frase de
Romero Jucá “é preciso estancar a sangria” revela a ansiedade diante do avanço
da Lava Jato. No Congresso foram muitas as tentativas de retaliar as
investigações. Era mesmo impensável que um esquema tão complexo de dominação
fosse render-se sem peripécias.
O último dos combatentes é Temer. Coube-lhe fazer alguma
coisa. Ele tentou. Até escolheu um diretor da Polícia Federal tão fiel que
acabou caindo por excesso de fidelidade.
Temer tem uma tática própria: não bate de frente com a Lava
Jato, como Lula, ele diz publicamente que a apoia. Suas intervenções são mais
no sentido de defender direitos individuais, respeito ao processo legal. Apesar
de tudo, consegue pequenas vitórias. Esse coronel Lima, por exemplo, é apontado
como seu operador, mas nunca depôs na Polícia Federal. Todas as convocações
foram negadas, sob o argumento de que sua saúde não permitia. O coronel foi
preso apenas para depor e, mesmo assim, não falou nada.
Com forte base de apoio no Supremo, a resistência à Lava
Jato e suas consequências não estão esgotadas. A operação mesmo está na fase final.
O que está em jogo é o futuro. De um lado, como montar um esquema de corrupção
tão sólido e durável como esse que se está dissolvendo? De outro, como reduzir
a corrupção a níveis mínimos?
Depois de tantos anos da Lava Jato, tudo parecia ir bem
nesse campo. O papel da política seria interpretar esse sucesso e produzir um
conjunto de leis que a completasse. Mas, de repente, uma discussão sobre o
destino de Lula no STF põe o rumo em xeque. Voltaríamos ao velho poderoso
esquema de corrupção com a impunidade garantida por um sistema judicial?
Tanto um lado como o outro acharam que tudo estaria perdido
caso os juízes apontassem em direção contrária à sua expectativa. A verdade é
que vitória e derrota nesse julgamento não significam um dado absoluto. O processo
continua, deságua nas eleições e está sujeito a recaídas.
O problema central nesse confronto é saber que posição tem
mais viabilidade histórica. Controle maior da corrupção, processos mais rápidos
e eficazes, a ideia de que a lei vale para todos são elementos de uma tendência
mais promissora. É a que aponta para o que existe em países mais avançados, mas
isso não significa garantia de vitória. Depende de muito esforço, mas,
felizmente, esta semana muitos compreenderam isso.
Foi uma semana de muita tensão. Cármen Lúcia pediu
serenidade. Comandantes do Exército e da Aeronáutica se pronunciaram. Houve
quem visse nisso tudo um clima de 1964, que precede a intervenção militar. Na
verdade, houve uma boa discussão, talvez um pouco longa, talvez um pouco
complicada, mas, de qualquer maneira, ficou claro para todos o que estava em
jogo.
Alguns juízes que rejeitam o populismo insistem em que não
votam pela pressão das ruas. Estão certos. Mas à medida que as discussões se
tornam um pouco mais compreensíveis e são transmitidas ao vivo, é inevitável
que maior número de pessoas opine, e com argumentos. Ainda que não sejam
argumentos rebuscados como os dos juízes, são um forte indício de que as
pessoas comuns querem tomar nas suas mãos o destino do País.
Potencialmente, o processo de politização dos últimos anos
pode levar a um interesse maior pelas eleições e a uma demanda mais firme por
projetos de governo. Quem comemora vitórias nesse caso precisa ser discreto,
pois novos e difíceis momentos podem surgir para sustentar o velho esquema de
corrupção.
Da mesma forma, quem amarga a derrota deve levar em conta
que o campo da esquerda segue forte, apesar de seus erros táticos e
estratégicos. Que venha mais uma campanha presidencial. Em outros países, a
esta altura ela já seria o centro do debate.
Artigo publicado no Estadão em 06/04/2018
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