Ando muito pelo Brasil, mas não faço pesquisas. Nem pergunto
em quem o interlocutor vai votar. Apenas converso. E com isso vou formando um
quadro que, às vezes, é confirmado pelas pesquisas que dizem ter estreita
margem de erro.
Faz algum tempo que tento me acostumar com a realidade que
vem pela frente, um confronto polarizado entre dois líderes populares, Lula e
Bolsonaro. Como um está na cadeia e o outro no hospital, a eleição ganha um tom
de realismo fantástico. É preciso abstrair a dimensão romanesca e cair na
realidade: um dos dois será vitorioso, com todas as consequências que isso
implica.
Senti no Nordeste que Lula tem muita força. Na Bahia,
sobretudo, um sentimento de gratidão a Lula e a popularidade do governo local
indicam uma supremacia da esquerda. No Norte, Sudeste e Sul, ouço muito o nome
de Bolsonaro. Se o que vi tem o valor de uma pesquisa espontânea, minha
inclinação é supor que a aspiração de mudança está encarnando nele.
Às vezes tendo a imaginar se essa imensa resistência ao
governo de esquerda não se parece com o susto que os franceses tiveram com o
Maio de 1968, optando pela volta de De Gaulle.
Não vejo o momento que virá pela óptica dos anos 60 no
Brasil, pelo menos não o descreveria como Roberto Campos ao analisar a queda de
Goulart e a tomada do poder pelos militares. Para ele, a alternativa eram anos
de chumbo ou rios de sangue. E também não é, como às vezes dizemos brincando,
um dilema entre Venezuela e Filipinas. O presidente das Filipinas é um
peso-pesado no gênero. E um destino venezuelano é altamente improvável. Maduro
não se aguentaria tanto tempo se não tivesse cooptado as Forças Armadas com
empregos que rendem muito aos generais. No Brasil isso seria diferente.
Ainda assim, descartando modelos mais assustadores,
viveremos uma situação delicada. As duas forças em presença são dificilmente
conciliáveis.
Nos Estados Unidos, apesar da rivalidade, em alguns e
raríssimos momentos democratas e republicanos reconhecem o interesse nacional.
Já a polarização brasileira, de uma certa forma, reduziu as chances de um
esboço de projeto nacional para enfrentar a crise e reconstruir o País.
Certamente cada uma das partes tem o seu. Mas ele dificilmente atravessa os
limites dos seus entusiasmados seguidores.
O estímulo ao equilíbrio deve vir da sociedade, mas isso não
é fácil quando a maioria dos eleitores pende para uma visão mais radical. O
discurso do equilíbrio é sentido como uma das formas de manter o sistema
político-eleitoral. As expectativas são muito maiores.
Num posto de gasolina da estrada, um homem com um longo
chapéu de palha me disse: “Voto no Bolsonaro porque é preciso virar a mesa”.
Nesses momentos sinto a fragilidade dos instrumentos com que deveríamos contar
quando o presidente assumir: Congresso e Supremo Tribunal.
O Congresso, na verdade, é a força sobre a qual a sociedade
ainda pode exercer uma influência maior. Ainda assim, com discretíssimas
mudanças será sentido mais como parte do problema do que como solução.
O Supremo… Bem, o Supremo todos sabemos que está parcialmente
empenhado em neutralizar a Lava Jato. Cada vez que concede um habeas corpus,
liberta um condenado, desmembra um processo para tirá-lo de Curitiba, está
alimentando o desejo de uma renovação pela direita.
Vejo um amplo jogo de grandes forças sociais e, diante dele,
poucas as chances da intervenção individual. Reconheço que vivemos num país com
alto nível de imprevisibilidade. Mas, com os dados que tenho, creio que a
tarefa será cada vez mais pensar os próximos passos, estabelecer um roteiro de
redução de danos. É uma tarefa para todos os que querem sair do atraso,
incluídos os eleitores mais moderados dos dois líderes.
Ultimamente têm surgido alguns livros no Brasil sobre a
decadência da democracia, que não sofre mais golpes de Estado, mas simplesmente
transita para regimes autoritários. Os livros são ótimos, porém o cenário dos
últimos anos no Brasil é um livro aberto. Várias vezes o Congresso votou
projetos absurdos sabendo que estava cavando um abismo maior entre os políticos
e a sociedade. Os escândalos de corrupção, que levaram um grupo para a cadeia e
deixaram seu principal aliado agonizando diante da pressão policial, tudo isso
contribui para um desencanto geral com o sistema político-partidário.
Não se trata de um “bem que avisei” ou de caça aos culpados,
apenas uma constatação importante de como será difícil a nova fase.
Se uma visão mais moderada perder a batalha eleitoral, e
isso me parece provável no momento, não terá perdido com isso a sua
importância. Ela pode ser um fio de esperança para que surja um projeto de
reconstrução mais consensual. E ser uma espécie de algodão entre cristais,
lembrando que a guerra fria acabou e é necessário superar os grandes dilemas
ideológicos para recuperar o tempo perdido.
A polarização entre dois líderes populares de certa forma
simplifica e torna o processo mais caloroso ainda. Mas revela como surgem os
líderes nacionais no Brasil democrático. Eles simbolizam também a força da
comunicação oral. São capazes de transmitir a mensagem que a forma literária
dos intelectuais não consegue.
Claro que seu discurso também é lido, perpassa os jornais e
revistas. No entanto, é a linguagem oral, com seus erros, hesitações e
exageros, que consegue chegar ao coração dos eleitores em escala nacional.
Outros podem usá-la sem êxito. Entra aí um outro fator importante: o papel do
indivíduo, sua trajetória e personalidade.
Poderia divagar muito sobre o dilema brasileiro. Poderia até
desejar que não fosse assim. Mas seria perda de tempo. Se não estou muito
equivocado, essa é a realidade que está aí. E é com ela que teremos de
construir incessantemente nossos sonhos, ainda que modestos.
Artigo publicado no Estadão em 21/09/2018
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