Este ano, a 17ª Festa Literária Internacional de Paraty
(Flip) era para ser uma homenagem ao escritor Euclides da Cunha, o autor de “Os
sertões”, como acontece com os comemorados anuais. Mas não foi. Primeiro porque
nunca vi tanto esforço no desmonte de um brasileiro consagrado. Segundo porque
Euclides foi superado, durante os dias da Flip, pela emersão de uma geração de
excelentes escritoras e escritores negros, suas obras e manifestações em
debates públicos. Esse foi o generoso papel cumprido por essa Flip recente.
O primeiro motivo para o anticlímax de Euclides na Flip foi
a clássica obsessão brasileira de desfazer dos heróis nacionais, em qualquer
ramo. Tom Jobim costumava dizer que, no Brasil, o sucesso é uma ofensa pessoal.
Euclides da Cunha foi um militante das causas abolicionista e republicana,
autor de um livro extraordinário sobre as circunstâncias culturais, sociais e
humanas da miséria no Nordeste brasileiro. A miséria do sertão, talvez a
principal vítima de nosso feudalismo de “coronéis”, os seus barões.
Desta vez, a curadora da Flip foi a competente Fernanda
Diamant. Para se ter uma ideia do que foi o evento, basta dar uma olhada na
lista dos livros mais vendidos na festa. Nos cinco primeiros lugares, estão
quatro obras sobre experiências de pessoas de origem africana; e uma quinta
dedicada à comunidade indígena, “Ideias para adiar o fim do mundo”, escrita por
Ailton Krenak, membro daquela comunidade.
O livro mais vendido, o único que já li de cabo a rabo, foi
“Memórias da plantação”, editado pela Cobogó e escrito por Grada Kilomba.
Nascida e criada em Lisboa, Grada Kilomba é uma artista interdisciplinar,
descendente de angolanos e são-tomenses, vivendo hoje em Berlim, onde lecionou
em universidades locais. Seu livro é uma compilação de episódios do racismo
cotidiano, no qual elabora uma nova forma de tratar a questão racial na
diáspora africana, do saber à escrita. Os outros livros recordistas foram
“Fique comigo”, de Ayobami Adebayo (Nigéria), “Também os brancos sabem dançar”,
de Kalaf Epalanga (músico de Angola), e “Meu pequeno país”, de Gaël Faye
(Burundi), o mais jovem do grupo, com 36 anos de idade.
Uma maioria de mulheres fez da Flip palco privilegiado do
feminismo negro. Como na mesa formada por Grada Kilomba e as brasileiras Flávia
Oliveira e Ana Paula Lisboa, onde se afirmava, com inteligência e imaginação, o
déficit teórico sobre o racismo. “Sempre que estou no Brasil, eu choro”, dizia
Grada Kilomba, “é um colonialismo normalizado, como se o presente quase se
tornasse o passado”.
Apesar da barbárie produzida por terroristas que tentavam
acabar com a palestra do jornalista Glenn Greenwald, com hinos em altíssimo
volume e foguetes espoucando por perto, a raiva acabou se transformando em
celebração. A 17ª Flip foi um sucesso diferente dos sucessos anteriores.
A Flip também nos surpreendeu com a incompreensão sobre
Euclides da Cunha, que viveu na passagem do século XIX para o XX. Os
conhecimentos eram outros, e o escritor não podia deixar de ser influenciado
pela época e suas pressões relativas. Sobretudo num mundo fascinado pelas
recentes teorias e descobertas biológicas, como as de Charles Darwin e
Jean-Baptiste de Lamarck, eventualmente confundidas, pela ignorância, com
racismo. Seria o mesmo que rirmos do positivismo de políticos e militares
ligados à Proclamação da República, o que se estava vivendo e o que estava
valendo naquele momento. Ou, no extremo, condenarmos Alexandre, o Grande, por
admirar Aquiles e a destruição de Troia.
Para quem deseja conhecer Euclides da Cunha de fato e num
espaço mais curto de tempo, sugiro a leitura de sua palestra feita em 1907, no
Centro Acadêmico XI de Agosto, em São Paulo, sobre Castro Alves e seu tempo.
Ali, Euclides nos explica o poeta baiano sem idealismo e sem demagogia, sabendo
tratá-lo no espaço em que a arte se mistura à urgência da compreensão do que
vivemos na realidade.
Na semana posterior à Flip, o presidente Bolsonaro renovou
sua disposição em relação à cultura, anunciando o que pretende fazer com a
Ancine e o cinema brasileiro. Declarou, por exemplo, não admitir filmes como
alguns que citou.
Alguém precisa lembrar ao presidente que o cinema brasileiro
não é produzido com dinheiro do Estado, mas com recursos do Condecine, taxa
produzida pela própria atividade. Além disso, nenhum presidente, de país algum,
tem o direito de se arvorar em proprietário daquilo que o Estado produz ou
ajuda a produzir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário