Jair Bolsonaro é
um perverso. Não um louco, nomeação injusta (e preconceituosa) com os
efetivamente loucos, grande parte deles incapaz de produzir mal a um outro. O
presidente do Brasil é perverso, um tipo de gente que só mantém os dentes
(temporariamente, pelo menos) longe de quem é do seu sangue ou de quem abana o
rabo para as suas ideias. Enquanto estiver abanando o rabo – se parar, será
também mastigado. Um tipo de gente sem limites, que não se preocupa em colocar
outras pessoas em risco de morte, mesmo que sejam funcionários públicos a
serviço do Estado, como
os fiscais do IBAMA, nem se importa em mentir descaradamente sobre os
números produzidos pelas próprias instituições governamentais desde que isso
lhe convenha, como tem feito com as estatísticas alarmantes do desmatamento
da Amazônia. O Brasil está nas mãos deste perverso, que reúne ao
seu redor outros perversos e alguns oportunistas. Submetidos a um cotidiano
dominado pela autoverdade, fenômeno que converte a verdade numa escolha
pessoal, e portanto destrói a possibilidade da verdade, os brasileiros têm
adoecido. Adoecimento mental, que resulta também em queda de imunidade e
sintomas físicos, já que o corpo é um só.
É desta ordem os relatos que tenho recolhido nos últimos
meses junto a psicanalistas e psiquiatras, e também a
médicos da clínica geral, medicina interna e cardiologia, onde as pessoas
desembarcam queixando-se de taquicardia, tontura e falta de ar. Um destes médicos,
cardiologista, confessou-se exausto, porque mais da metade da sua clínica,
atualmente, corresponde a queixas sem relação com problemas do coração, o
órgão, e, sim, com ansiedade
extrema e/ou depressão. Está trabalhando mais, em consultas mais longas, e
inseguro sobre como lidar com algo para o qual não se sente preparado.
O fenômeno começou a ser notado nos consultórios nos
últimos anos de polarização política, que dividiu famílias, destruiu
amizades e corroeu as relações em todos os espaços da vida, ao mesmo tempo em
que a crise econômica se agravava, o desemprego aumentava e
as condições de trabalho se deterioravam. Acirrou-se enormemente a partir da
campanha eleitoral baseada
no incitamento à violência produzida por Jair Bolsonaro em 2018. Com
um presidente que, desde janeiro, governa a partir da administração do ódio,
não dá sinais de arrefecer. Pelo contrário. A percepção é de crescimento do
número de pessoas que se dizem “doentes”, sem saber como buscar a cura.
Vou insistir, mais uma vez, neste espaço, que precisamos
chamar as coisas pelo nome. Não apenas porque é o mais correto a fazer, mas
porque essa é uma forma de resistir ao adoecimento. Não é do “jogo democrático”
ter um homem como Jair Bolsonaro na presidência. Tanto como não havia
“normalidade” alguma em ter Adolf Hitler no
comando da Alemanha. Não dá para tratar o que vivemos como algo que pode ser
apenas gerido, porque não há como gerir a perversão. Ou o que mais precisa ser
feito ou dito por Bolsonaro para perceber que não há gestão possível de um
perverso no poder? Bolsonaro não é “autêntico”. Bolsonaro é um mentiroso.
Podemos – e devemos – discutir como chegamos a ter um
presidente que usa, como estratégia, a guerra contra todos que não são ele
mesmo e o seu clã. Como chegamos a ter um presidente que
mente sistematicamente sobre tudo. Podemos – e devemos discutir – como
chegamos a ter um antipresidente. Assim como podemos – e devemos – perceber que
a experiência brasileira está inserida num fenômeno global, que se reproduz,
com particularidades próprias, em diferentes países.
Esse esforço de entendimento do processo, de interpretação
dos fatos e de produção de memória é insubstituível. Mas é necessário também
responder ao que está nos adoecendo agora, antes que nos mate.
Em 10 de julho, o psiquiatra Fernando Tenório escreveu um
post no Facebook que viralizou e foi replicado em vários grupos de Whatsapp. Aqui, um trecho:
“Acabei de atender a um homem de 45 anos, negro, sem escolaridade. Nos últimos
cinco anos, viu seus colegas de setor serem demitidos um a um e ele passou a
acumular as funções de todos. Disse-me que nem reclamou por medo de ser o
próximo da fila. Tem sintomas de esgotamento que descambam para ansiedade. Qual
o diagnóstico para isso? Brasil. Adoeceu
de Brasil. Se eu tivesse algum poder iria sugerir ao DSM (o manual de
transtornos mentais da psiquiatria) esse novo diagnóstico. Adoecer de Brasil é
a mais prevalente das doenças. Entrei agora na Internet e vi que a reforma da
previdência corre para ser aprovada sem sustos. O povo, adoecido de
Brasil, permanece inerte. Vai trabalhar sem direito a aposentadoria até morrer
de Brasil”.
Não há normalidade nem jogo
democrático quando um perverso governa a partir da administração do ódio e da
mentira
Alagoano da pequena Maribondo, Fernando Tenório fez
residência e atuou na rede pública de saúde mental do Rio de Janeiro.
Atualmente, mantém consultório na capital fluminense e atende trabalhadores de
um sindicato do setor hoteleiro. O psiquiatra me conta, por telefone, que
cresceu muito o número de pessoas que chegavam ao seu consultório com sintomas
como taquicardia, desmaios na rua, sinais de esgotamento corporal, dores de
cabeça frequentes, sentimentos depressivos. Eram pessoas que estavam objetiva e
subjetivamente esgotadas pela precarização das condições de trabalho, como
jornada excessiva, acúmulo de funções, metas impossíveis de cumprir, falta de
perspectivas de mudança, insegurança extrema. Tinham um “trabalho de merda” e,
ao mesmo tempo, medo de perder o “trabalho de merda”, como testemunharam
acontecer com vários colegas.
O psiquiatra diz que ele mesmo se descobriu adoecido meses
atrás. “Fiquei muito mal, porque me senti quase um traficante
de drogas legais. Estava tratando uma crise, que é social, no indivíduo. E,
de certo modo, ao dar medicamentos, estava tornando essa pessoa apta a sofrer
mais, porque a jogava de volta ao trabalho.” Na sua avaliação, o adoecimento
está relacionado à precarização do mundo do trabalho nos últimos anos,
acentuada pela reforma
trabalhista aprovada em 2017, e foi agravado com a ascensão de um governo
“que declarou guerra ao seu povo”. “O Brasil hoje é tóxico”, afirma.
Após a publicação do post, Tenório sentiu ainda mais o nível
da toxicidade cotidiana do país: recebeu xingamentos e ameaças. Um dos
agressores lembrou que sua filha, cuja foto viu em uma rede social, um dia
poderia ser estuprada. A menina é um bebê de menos de 2 anos.
“Tóxico” é palavra de uso frequente de brasileiros ao
relatarem o sentimento de viver em um país onde já não conseguem respirar. Na
constatação de que o governo Bolsonaro já
aprovou 290 agrotóxicos em apenas sete meses, o envenenamento ganha
uma outra camada. É como se os corpos fossem um objeto atacado por todos os
lados. País que ultrapassou a possibilidade das metáforas, a toxicidade do
Brasil abrange todas as acepções.
Cresce nos consultórios os casos
de depressão provocados e alimentados pelo contexto político e social
Mas que adoecimento é este que Tenório chama de “doente de
Brasil”? Um psicanalista que prefere não se identificar por temer represálias
explica que aumentou muito nos consultórios os quadros depressivos provocados
pelo momento vivido pelo Brasil, em que especialmente pessoas ligadas à
esquerda, mas não necessariamente ao PT,
sentem uma total perda de sentido e horizonte. “Para a psiquiatria, a depressão é a tristeza
sem contexto. Ou seja, ela é relacionada à estrutura psíquica de cada pessoa,
às fundações e alicerces construídos na infância”, explica. “O que temos vivido
hoje nos consultórios é o aumento da depressão com contexto, esta que não tem a
ver com a estrutura do indivíduo e que nem vai melhorar no divã. Esta em que o
uso de medicamentos só vai servir para obscurecer o esclarecimento das
questões. Esta que só pode ser sanada por mudanças sociais.”
O rompimento dos laços, como a divisão das famílias
provocada pela polarização política, tornou as pessoas ainda mais sujeitas ao
adoecimento mental e com menos ferramentas para lidar com ele. Como disse um
filósofo, ninguém deixa de dormir porque está tendo uma guerra no outro lado do
mundo, com exceção daqueles que vivem a guerra. Com isso, ele queria dizer que
as pessoas perdiam o sono muito mais por pequenas
dores e preocupações comezinhas com as quais se identificavam, como as
relacionadas à família e ao mundo dos afetos, do que por enormes barbáries que
ocorriam no outro lado do mundo.
O que os brasileiros testemunharam foi uma inversão: a
política, que sempre foi algo do campo público, invadiu o campo privado,
passando a ser um fator íntimo, um fator primeiro de identificação. Dias atrás
uma amiga presenciou uma conversa em que duas garotas decidiam quais os
critérios para dividir apartamento com uma outra. “Não suportaria dividir com
uma petista”, disse uma delas. Essa conversa, exceto no caso de militantes mais
radicais, dificilmente aconteceria anos atrás: ninguém costumava perguntar qual
era a orientação política antes de dividir a casa com alguém.
A eleição, que costumava ser um acontecimento pontual, da
esfera pública, tornou-se algo crucial na esfera privada. Do mesmo modo, o
inverso também aconteceu. Questões íntimas, como a orientação sexual de
cada um, como o que acontece na cama de cada um, passaram a ser discutidas
publicamente. Esse fenômeno atingiu fortemente laços que cada um considerava
incondicionais, como os familiares, laços com os quais se contava para
enfrentar a dureza da vida. E acentuou ainda mais os quadros depressivos e
persecutórios, aumentando ansiedade e angústia, corroendo a saúde.
O sofrimento é agravado pela
constatação de que as instituições não barram a violência do governo e do
governante
Uma psicanalista de São Paulo, que também prefere não se
identificar, acredita que o adoecimento do Brasil de 2019 expressa a
radicalização da impotência. As pessoas, hoje, não sabem como reagir à quebra
do pacto civilizatório representada pela eleição de uma figura violenta como
Bolsonaro, que não só prega a violência como violenta a população todos os
dias, seja por atos, seja por aliar-se a grupos criminosos, como
faz com desmatadores e grileiros na Amazônia, seja por mentir
compulsivamente. Não sabem, também, como parar essa força que as atropela e
esmaga. Sentem como se aquilo que as está atacando fosse “imparável”, porque
percebem que já não podem contar com as instituições – constatação gravíssima
para a vida em sociedade. E então passam a sentir-se como reféns – e,
seguidamente, a atuar como reféns.
“Como reagimos à violência de alguém como Bolsonaro, que faz
e diz o que quer, sem que seja impedido pelas instituições?”, questiona. “Toda
a nossa experiência dá conta de que a vida em sociedade é regulada por
instâncias que vão determinar o que pode e o que não pode, que têm o poder de
impedir a quebra do pacto civilizatório, este pacto que permite que a gente
possa conviver. Nesta experiência de que há um regulador, se uma pessoa é racista,
ela vai ser processada – e não virar presidente do país. O que vivemos
agora, com Bolsonaro, é a quebra de qualquer regulação. E isso tem um enorme
impacto sobre a vida subjetiva. Ninguém sabe como reagir a isso, como viver
numa realidade em que o presidente pode mentir e pode até mesmo inventar uma
realidade que não corresponde aos fatos.”
A documentação das experiências de autoritarismo em
diferentes épocas e países costuma relatar o sofrimento físico e psíquico das
vítimas, mas geralmente em condições explícitas. Como, por exemplo, um judeu
num campo
de concentração nazista. Ou uma das mulheres torturadas no Doi-Codi, em São
Paulo, durante a ditadura militar do
Brasil (1964-1985). Perceber essa violência explícita como violência é
imediato. O que a experiência autoritária do bolsonarismo tem demonstrado é o
quanto pode ser difícil resistir (também) à violência do cotidiano, aquela que
se infiltra nos dias, nos pequenos gestos, na paralisia que vira um modo de
ser, nas covardias que deixamos de questionar.
O cotidiano de exceção tem se
infiltrado e realizado em milhões de pequenos gestos de autocensura, silêncio e
ausência no Brasil
Há milhares, talvez milhões de pequenos gestos de
conformação acontecendo neste exato momento no Brasil. Em silêncio. Pequenos
movimentos de autocensura, ausências nem sempre percebidas. Uma autora me conta
que conseguiu manter seu livro no catálogo da editora sem usar a palavra
gênero…. para falar de gênero e sexualidade. Uma diretora me diz que vestiu os
corpos de suas atrizes, até então nuas, numa peça de teatro. A professora de
uma das mais importantes universidades públicas do país me relata que muitos
colegas já deixaram de analisar determinados temas em salas de aula por
medo do “poder de polícia” dos alunos, que têm gravado as aulas e se
comportado de forma ainda mais violenta que a polícia formal. Um curador de
eventos preferiu não fazer o evento. Mudou de assunto. Outro deixou de convidar
uma pensadora que certamente levaria bolsocrentes para a sua porta. Nunca
saberemos o que poderia acontecer, porque o acontecimento foi impedido para não
sofrer o risco de ser impedido.
Há tantos que já preferem “não comentar”. Ou que dizem,
simpaticamente: “me deixa fora dessa”. É também assim que o autoritarismo se
infiltra, ou é principalmente assim que o autoritarismo se infiltra. E é também
assim que se adoece uma população por aquilo que ela já tem medo de fazer,
porque antecipa o gesto do opressor e se cala antes de ser calada. E em breve
talvez tenha medo também de sussurrar dentro de casa, num mundo em que os
aparelhos tecnológicos podem ser usados para a vigilância. Chega o dia em que o
próprio pensamento se torna uma doença autoimune. É assim também que o
autoritarismo vence antes mesmo de vencer.
Um dos sintomas do cotidiano de exceção que vivemos é a
colonização de nossas mentes. Mesmo pessoas que viveram a ditadura militar não
têm recordação de algum momento da sua vida em que tenham pensado todos os dias
no presidente da República. Bolsonaro administra o horror dos dias, com suas
violências e mentiras, de um modo que o torna onipresente. Faça o teste:
quantas horas você consegue ficar sem pensar em Bolsonaro, sem citar uma
bestialidade de Bolsonaro? É isso o autoritarismo. Mas sobre isso poucos falam.
Se Bolsonaro encarna a vanguarda messiânica-apocalítica do
mundo, é preciso sublinhar que os brasileiros não estão sós. Um amigo
estrangeiro me conta que, desde que Donald Trump assumiu,
a primeira coisa que ele faz ao acordar é conferir qual é a barbaridade
que o presidente americano escreveu no Twitter, porque sente que isso afeta
diretamente a vida dele. E afeta.
Mario Corso, psicanalista e escritor gaúcho, aponta que não
é possível pensar no que ele chama de “ethos depressivo” deste momento fora do
contexto do Ocidente. “Veja o Reino Unido. O novo primeiro-ministro
(referindo-se ao pró-Brexit Boris Johnson) é um
palhaço. E eles já tiveram Churchill!”, exemplifica. “O problema, no Brasil, é
que além de toda a crise global, elegemos um cretino para presidente”, diz o
psicanalista. “O que assusta é que não há freios para impedi-lo. E, assim, ele
segue atacando os mais frágeis. Como Bolsonaro é covarde, ele não engrossa com
os maiores que ele.”
Boris Johnson não chega a ser um Donald Trump. E nem Donald
Trump chega a ser um Jair Bolsonaro. Mas a diferença maior está na qualidade da
democracia. Tanto nos Estados Unidos quanto
no Reino Unido, as instituições têm conseguido exercer o seu papel. No Brasil,
não chega a ser perda total – ou não bastou (ainda) “um cabo e um soldado” para
fechar o STF, como sugeriu o futuro
possível embaixador do país nos Estados Unidos, Eduardo Bolsonaro, o garoto
zerotrês. Mas a precariedade – e com frequência a omissão – das instituições –
quando não conivência – são evidentes. “Enquanto Bolsonaro não consegue uma
ditadura total, porque isso ele quer, mas ainda não conseguiu, ele antecipa a
ditadura pelas palavras”, diz Corso. “Bolsonaro usa aquilo que você definiu
como autoverdade para antecipar a ditadura. Os fatos não importam, o que ‘eu’
digo é o que é.”
Para Rinaldo Voltolini, professor de psicanálise da
Universidade de São Paulo, a autoverdade é a
amputação da palavra no sentido pleno. “Este é um grande disparador do
sofrimento das pessoas, ao constatarem que estão fora no nível mais importante.
Não é que você está fora porque não tem uma casa ou um carro, hoje você está
fora das possibilidades de leitura do mundo. O que você diz não tem valor, não
tem sentido, não tem significado. É como se, de repente, você já não tivesse
lugar na gramática”, diz o psicanalista. “O que é a guerra? A guerra acontece
quando a palavra, como mediadora, se extinguiu. Isso acontece entre duas
pessoas, entre países. Sem a mediação da palavra, se passa diretamente ao ato
violento”.
A autoverdade, como
escrevi neste espaço, determinou a eleição de Bolsonaro. E seguiu moldando
sua forma de governar pela guerra, o que implica a
destruição da palavra. Assim, desde o início do governo, Bolsonaro tem
chamado os órgãos oficiais de mentirosos sempre que não gosta do resultado das
pesquisas. Como quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
mostrou que o número de desempregados tinha aumentado no seu governo.
Nos últimos dias, porém, o antipresidente levou a perversão
da verdade, esta que torna a verdade uma escolha pessoal, à radicalidade. Decidiu
que a jornalista Míriam Leitão não foi torturada – e ela foi. Insinuou
que o pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil teria sido executado
pela esquerda, quando ele desapareceu por obra de agentes do Estado na ditadura
militar. Decidiu
que ninguém mais passa fome no Brasil – o que é desmentido não só
pelas estatísticas como pela experiência cotidiana dos brasileiros. Decidiu que
os dados que apontaram a explosão do desmatamento na Amazônia, produzidos pelo
conceituado Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, eram mentirosos. Isso
porque apenas no mês de julho de 2019 foi destruída uma área de floresta maior
do que a cidade de São Paulo, e o índice de desmatamento foi três vezes maiores
do que em julho do ano passado. E Bolsonaro decidiu ainda que “só os veganos
que comem vegetais” se importam com o meio ambiente.
Bolsonaro controla o cotidiano porque fora de controle.
Bolsonaro domina o noticiário porque criou um discurso que não precisa estar
ancorado nos fatos. A verdade, para Bolsonaro, é a que ele quer que seja. Assim,
além da palavra, Bolsonaro destrói a democracia ao usar o poder que conquistou
pelo voto para destruir não só direitos conquistados em décadas e todo o
sistema de proteção do meio ambiente, mas também para destruir a possibilidade
da verdade.
“Narrar a história é sempre o primeiro ato de dominação. Não
é por acaso que Bolsonaro quer adulterar a história. A história da ditadura é
construída por muitos documentos, é uma produção coletiva. Mas ele decide que
aconteceu outra coisa e não apresenta nenhum documento para comprovar o que
diz”, analisa Voltolini. “Não é que estamos vivendo o mal-estar na civilização.
Isso sempre houve. A questão é que, para ter mal-estar é preciso civilização. E
hoje, o que está em jogo, é a própria civilização. Isso não é da ordem do
mal-estar, mas da ordem do horror.”
Como enfrentar o horror? Como barrar o adoecimento provocado
pela destruição da palavra como mediadora? Como resistir a um cotidiano em que
a verdade é destruída dia após dia pela figura máxima do poder republicano?
Rinaldo Voltolini lembra um diálogo entre Albert Einstein e
Sigmund Freud. Quando Einstein pergunta a Freud como seria possível deter o
processo que leva à guerra, Freud responde que tudo o que favorece a cultura
combate a guerra.
Os bolsonaristas sabem disso e por isso estão atacando a
cultura e a educação. A cultura não é algo distante nem algo que pertence às
elites, mas sim aquilo que nos faz humanos. Cultura é a palavra que nos
apalavra. Precisamos recuperar a palavra como mediadora em todos os cantos onde
houver gente. E fazer isso coletivamente, conjugando o nós, reamarrando os
laços para fazer comunidade. O único jeito de lutar pelo comum é criando o
comum – em comum.
É preciso dizer: não vai ficar mais fácil. Não estamos mais
lutando pela democracia. Estamos lutando pela civilização.
*Eliane Brum é escritora, repórter e
documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes – o
Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus
Desacontecimentos, e do romance Uma Duas.
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