Os ataques do presidente da República a reportagens que
apontam suspeitas de conduta indevida em trocas de mensagens entre membros do
Ministério Público Federal e representantes do Judiciário por ocasião do
julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva mostram um sinal – mais
um – da mentalidade antidemocrática no poder. No sábado, o chefe de Estado afirmou
que o jornalista Glenn Greenwald – o principal repórter na série de revelações
que flagram os protagonistas da condenação do presidente Lula, no bojo da
Operação Lava Jato, em conversas, no mínimo, impróprias – poderia “pegara uma
cana aqui, no Brasil”. A frase é um despautério. É também esdrúxula,
estapafúrdia e extravagante, pois o presidente, que não exerce cargo em
chefatura de polícia nem enverga toga, não tem incumbência nem atribuição para
tomar decisões judiciais.
Está em marcha mais uma saraivada de ataques – infundados –
à imprensa, à liberdade de expressão e ao direito à informação, de que todo
cidadão é titular. Os fundamentos da democracia correm perigo. Fiquemos
atentos.
As reportagens que enfureceram o Planalto – pois o então
juiz da Lava Jato, Sergio Moro, é hoje ministro da Justiça, representando o
papel de lastro moral do Planalto – começaram a ser publicadas pelo Intercept,
site jornalístico de Greenwald. Os diálogos reproduzidos apontaram indícios de
direcionamento indevido do Ministério Público pelo Poder Judiciário e falta de
imparcialidade do juiz. Em seguida, em parcerias com a redação do Intercept,
outros órgãos de imprensa, como a revista Veja e o jornal Folha de S.Paulo,
entraram na história e veicularam novas notícias. Todas bombásticas e péssimas
para o ministro da Justiça.
A reação inicial dos que tiveram seus diálogos vazados
reforçou a impressão geral de que o material é autêntico. As autoridades
flagradas não disseram que os registros são falsos, apenas levantaram a
hipótese de que alguns trechos poderiam ter sido “editados”. Enquanto isso,
repórteres de outras redações confirmavam que reconheciam nas transcrições
mensagens que eles, repórteres, efetivamente trocaram com as autoridades
implicadas no escândalo. Mais provas se somaram para atestar a veracidade das
reportagens.
O governo, acuado, contra-atacou com uma operação policial
espetaculosa – na linha de muitas daquelas que marcaram a Operação Lava Jato –
para prender os hackers que teriam abastecido as reportagens. A intenção é
jogar no descrédito as revelações feitas até aqui pelos repórteres e que, se
confirmadas, apontam vícios de partidarismo na sentença que condenou o
ex-presidente Lula.
Ao alardear que haveria um hacker no meio do caminho do
Intercept, o governo pretende desacreditar o trabalho jornalístico realizado
até agora. Cabem aqui duas perguntas. A primeira: se ficar provado que o
material em que se baseiam as reportagens foi obtido de modo ilegal, as
revelações das reportagens deverão ser descartadas pela opinião pública? A
segunda, de escopo mais geral: a origem ilícita de uma informação invalida o
conteúdo de uma apuração jornalística?
A resposta é não. Não para a primeira pergunta e não para a
segunda. O jornalismo se abastece das fissuras que se abrem no poder. Recolhe
as notícias das inconfidências, dos lapsos, dos atos falhos, das traições e de
falhas de segurança nos sistemas que guardam sigilos de operações
confidenciais. Uma notícia é, sempre, a publicação de um dado que deveria ter
ficado escondido em algum lugar (do poder). E é só assim que a imprensa
funciona como um serviço público de fiscalização do poder na democracia.
Funciona porque alguém no poder erra ou se trai – e porque a democracia garante
aos jornalistas o direito publicar o que obtêm de boa-fé e que seja de
interesse público. Portanto, uma informação de origem suspeita pode ter valor
jornalístico.
Jornalistas, por evidente, não dispõem de autorização para
praticar crimes: não podem contratar arapongas para ouvir telefonemas alheios,
nem podem violar as fronteiras da privacidade de quem quer que seja. Mas
jornalistas têm, sim, licença para receber informações que, lá atrás, podem ter
sido obtidas ilegalmente. Não é só. Depois de avaliar que essas são de
interesse público e depois de checar a veracidade dos relatos, jornalistas têm,
mais que o direito, o dever de publicá-las – para o bem do Estado de Direito. A
cultura política no Brasil tem enorme dificuldade de entender essa questão, mas
é assim que é.
Em 2009 este jornal deu um furo de reportagem noticiando que
as provas do Enem daquele ano tinham vazado. A revelação só foi possível porque
a repórter Renata Cafardo viu as questões roubadas. Em 1974 o então presidente
americano Richard Nixon teve de renunciar em consequência do escândalo de
Watergate, o qual só se tornou conhecido porque dois jovens repórteres do
jornal The Washington Post, Bob Woodward e Carl Bernstein, investigaram a
história. A fonte primordial de Woodward, identificada algumas décadas depois,
era William Mark Felt, o número dois do FBI na época, que estava falando o que
não podia nem devia. Em 1971 documentos do Pentágono (Pentagon papers) dando
conta da irresponsabilidade do governo americano de seguir com a Guerra do
Vietnã foram entregues à imprensa por Daniel Ellsberg, que tinha trabalhado
para o governo e não poderia contar o que contou.
O fato de Felt e Ellsberg terem traído seus chefes não
invalidou o que as reportagens mostraram. O fato de haver, talvez, um hacker no
meio do caminho das reportagens sobre os diálogos impróprios da Lava Jato não
torna o escândalo menos escandaloso. Se houve invasão ilegal dos celulares dos
procuradores, isso, claro, deve ser investigado pela polícia, mas as conversas
suspeitíssimas agora noticiadas continuam sendo de interesse público. As
autoridades ainda devem explicação. Querer calar a imprensa ou intimidar
jornalistas – que têm direito constitucional ao sigilo da fonte – são condutas
inaceitáveis que traem tentações autoritárias.
*Jornalista, é professor da Eca-USP
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