Viajei
pelo sul da França e fiz uma romaria por lugares emblemáticos
para meus pensamentos atuais.
Nos últimos tempos, leio muito sobre a história do
cristianismo. Tento recuperar o tempo perdido, pois acabo de descobrir que a
versão na qual acreditava até ontem era falsa.
Cresci convencido de que o cristianismo fora
uma religião perseguida —ou seja, os cristãos, embora todos
generosos como Cristo, teriam sido caçados e massacrados pelos pagãos, que não gostavam dessa nova religião porque ela dava dignidade e importância aos humildes.
generosos como Cristo, teriam sido caçados e massacrados pelos pagãos, que não gostavam dessa nova religião porque ela dava dignidade e importância aos humildes.
A história que descubro é outra: o paganismo era tolerante e
aberto à convivência dos deuses de todos. Roma, como se sabe, nunca impunha
seus deuses aos povos conquistados —por sabedoria prática (venerem quem
quiserem, contanto que paguem os impostos) e, mais ainda, porque o paganismo é
por essência plural: se meu vizinho venera um deus que cura rinite, vou
incluí-lo em minhas preces, sobretudo no inverno.
Ao contrário disso, o Deus cristão era exclusivista (você
não terá outro deus fora de mim) e missionário (“amar” o próximo significava
convertê-lo, afastá-lo de seus deuses).
Missionarismo com exclusivismo é uma receita que leva
qualquer um para intolerância e violência extremas. Foi o caso do cristianismo,
do islã e do comunismo.
Nas últimas horas da tarde, Toulouse, rosa escuro
por causa dos tijolos com os quais todo o centro foi construído, pega fogo.
A própria beleza da cidade parece lembrar assim, ao fim de cada dia de sol,
o
suplício dos que lá foram queimados na fogueira, vítimas da intolerância religiosa.
suplício dos que lá foram queimados na fogueira, vítimas da intolerância religiosa.
Visitei Toulouse pela primeira vez 30 anos atrás, com meu
amigo Jean Bergès, tolosano. Foi ele quem me mostrou a praça du Salin, onde, em
1616, foi torturado e queimado Giulio Cesare Vanini, um filósofo, nascido na
Puglia (hoje Itália), de quem é difícil dizer se foi supliciado por suas ideias
(que contêm pitadas de panteísmo e materialismo) ou pela liberdade de seus
costumes sexuais.
Em 2007, até que enfim, foi colocada uma placa na praça du
Salin, em memória de Vanini e dos “pensadores precursores das Luzes, vítimas do
obscurantismo, que estudaram ou ensinaram em Toulouse” (a lista inclui Giordano
Bruno).
Bem antes de Vanini, Toulouse foi a capital dos cátaros,
contra os quais, no século 13, o papa Inocêncio 3° desencadeou uma cruzada
genocida.
Ficou famosa a frase de seu delegado quando, a entrar
em Béziers, os soldados lhe perguntaram como eles reconheceriam os cátaros
(visto que na cidade também havia cristãos papistas): “Matem a todos”, ele
disse. “Deus reconhecerá os seus.” É difícil dizer melhor a indiferença pela
vida concreta (dos outros) que é produzida pela crença num além.
Como os gnósticos dos primeiros séculos, os cátaros
acreditavam que se chega a Deus pela razão e pelo conhecimento, não pela fé.
Também, embora cristãos, acreditavam na existência de dois deuses, um mau,
o “demiurgo” (responsável pelo mundo material), e um bom, o deus das almas.
Mas a vida concreta dos cátaros era bem comportada. Eles
viviam ansiosos por se reencarnar cada vez mais longe da carne e perto do
espírito.
Esse não era o caso de Vanini em 1600 —ele era,
ao mesmo tempo, um espírito livre e um libertino.
Sentei na praça do Capitólio com amigos que não via há anos.
Eles davam notícias do movimento e do pensamento libertinos na França de hoje.
Evocaram Vanini, justamente, para explicar algo que lhes parecia óbvio: para
eles, sem a libertinagem sexual dos séculos 17 e 18, as Luzes sequer
apareceriam na história do Ocidente —ou seja, a liberdade nos costumes sexuais
teria sido (e ainda seria) a condição da liberdade do pensamento.
Me lembrei de que Diderot, no começo de “O Sobrinho de
Rameau”, escreveu que ele gostava de deixar sua mente vaguear, entregue à
sua própria “libertinagem”, e acrescentou que seus pensamentos eram suas
“rameiras”.
Nessa altura da conversa, do outro lado da praça, um pequeno
grupo de jovens começou uma pregação por megafone que nos prometia que
seríamos salvos se só deixarmos Jesus nos amar.
Se a comunidade libertina tolosana começasse uma orgia na
praça do Capitólio, isso ofenderia algum maluco, que logo poderia chamar a
polícia. Entendo e respeito.
Agora, eu me senti ofendido ao ser objeto de proselitismo
missionário —bem no centro de Toulouse, onde a religião já mostrou toda a
boçalidade da qual é capaz.
Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de “Hello, Brasil!” e criador da série
PSI (HBO).
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