Minha intenção, aqui, é colocar o tal do lugar de fala no
seu devido lugar. Mas, antes disso, me sinto na obrigação de fazer umas
observações preliminares.
De uns tempos para cá, temos visto uma onda de violência se
encorpando assustadoramente em todo o país. São calúnias, linchamentos verbais,
agressões físicas. Partindo tanto do segmento atualmente mais barulhento da
esquerda, cristalizado nos movimentos identitários e suas milícias
(eufemisticamente tratadas como “coletivos”), quanto da extrema direita, com
sua ponta de lança na boçalidade bolsonarista.
Recentemente, intelectuais de esquerda, a exemplo de Renato
Janine Ribeiro, vêm falando sobre o assunto. Denunciando, por exemplo, ações
para impedir que críticos do atual governo se manifestem em festas ou feiras
literárias que, como a de Paraty, se converteram em arraiais juninos do
identitarismo. Mas a crítica esquerdista a uma ascensão do fascismo entre nós
tem sido feita de maneira estranha e sintomaticamente seletiva.
O que vemos são ataques ao fascismo de direita —e silêncio
sobre o fascismo de esquerda. Como no dito popular, os macacos se negam a olhar
o próprio rabo. E isso embora, em nossa conjuntura recente, o fascismo de
esquerda tenha saltado na frente, como vimos em 2013, numa feira literária em
Cachoeira do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, quando extremistas identitários
impediram o geógrafo Demétrio Magnoli de falar e praticamente o expulsaram da
cidade.
Antes que algum esquerdista proteste, aviso que uso a
palavra “fascismo” a propósito de qualquer iniciativa que vise a exercer
controle ditatorial sobre postura e pensamento dos outros, a fim de impedir que
estes questionem dogmas de determinado grupo que se considera portador da
verdade e do destino histórico da coletividade.
Digo isso porque, muito curiosamente, ainda existe quem
pense que a esquerda —apesar das atrocidades protagonizadas por Stálin, Mao
Tsé-tung, Pol Pot, Fidel Castro etc.— é imune ao fascismo.
Bem, o fascismo identitário corre solto, com sua pitoresca
mescla de revolucionarismo fraseológico e conservadorismo ideológico (afinal,
ninguém mais fala em transformação global da sociedade e instauração de um novo
mundo; antes, luta-se por maior participação e mais oportunidades no interior
da sociedade que aí está— batalha por empregos, salários etc., com todos
ansiando fazer parte do “mainstream”, o que não tem nada de errado, mas também
nada tem a ver com subversão e muito menos com socialismo) e seu típico
pessimismo programático com relação às sociedades ocidentais modernas, mas com
o neofeminismo fechando os olhos para a opressão masculina entre muçulmanos e o
racialismo neonegro fingindo não ver a exploração do negro pelo negro em Angola
ou na Nigéria, por exemplo.
E aqui, finalmente, chego ao ponto que anunciei. É o tal do
lugar de fala, que defino como expediente fascista típico do identitarismo, em
sua ânsia de calar a diferença, silenciar a outridade. Mas, como tem gente que
acha que esse lugar de fala é fundamental, avanço então para dar a minha visão
(mesmo resumida) de tal procedimento supostamente democrático, mas, na
realidade, perversamente ditatorial e excludente.
Sim: “lugar de fala” é uma perversão ideológica doentia de um
antigo truísmo sociológico. No caso, a banalidade sociológica foi distorcida em
guilhotina ideológica, destinada a cortar cabeças genital ou cromaticamente
diferentes ou política e ideologicamente discordantes. Um instrumento ou
mecanismo fascista feito sob medida para eliminar dissidências.
Aprendemos há muito, com a sociologia, a fazer a leitura de
qualquer discurso em conexão com a “posição de classe”, com o lugar do
discursante na estrutura da sociedade e em sua hierarquia sociocultural. É o
beabá da sociologia, embora sua aplicação nem sempre seja fácil e imediata
(pode ser altamente complexa, se tomarmos como objeto de análise, por exemplo,
o discurso de Karl Marx ou o do nosso Joaquim Nabuco), a menos que cedamos à
tentação emburrecedora do chamado marxismo vulgar, que acaba não dizendo nada
sobre nada.
Mas vejamos em plano geral. O que a filosofia e a sociologia
ensinam, pelo menos da passagem do século 18 para o 19 e até aos dias de hoje,
é que as ideias (os discursos, na gíria mais moderna) têm sua origem em alguma
base fundamental, ou em algum espaço basilar, que é exterior ao mundo das
próprias ideias. Vale dizer: as ideias se configuram num espaço, base ou
recanto extraideacional.
Já se pensava assim quando Destutt de Tracy publicou seus
“Eléments d’Idéologie” em 1801. O sociólogo berlinense Reinhard Bendix
sintetiza: “As ideias derivam exclusivamente de percepções sensoriais,
acreditava ele. A inteligência humana é um aspecto da vida animal e ‘ideologia’
[na acepção de ciência das ideias] é, portanto, parte da zoologia. Tracy e seus
colegas achavam que, através dessa análise reducionista, no sentido de
atividades mentais serem atribuídas a causas fisiológicas subjacentes, haviam
chegado à verdade científica”.
Já o marxismo clássico reza que cada classe social gera uma
certa consciência da vida e do mundo. De Destutt de Tracy a Marx, no entanto, o
pressuposto é o mesmo: o significado último das ideias deve ser buscado não
nelas mesmas, mas no que está por trás delas, sejam constrangimentos físicos,
sejam condicionamentos sociais.
Aí estão balizamentos teóricos do lugar de fala, na tradição
do conhecimento filosófico e social. O que diferencia esse lugar de fala do
lugar de fala do identitarismo? Simples. Mas antes façamos uma observação
necessária. O lugar de fala identitário não deixa de ser um retrocesso a
Destutt de Tracy, no sentido de que volta a tomar a realidade ou a situação
física da pessoa (não se pensa mais em classe social, claro) como base e
explicação de tudo.
O identitarismo representa assim um retorno epistemológico à
configuração física do indivíduo. Especificamente, à organização genital da
pessoa (não no sentido complexo da “Teoria Psicanalítica da Libido” de Karl
Abraham, é claro, mas no do simplismo neofeminista, corpo marcado pela presença
do célebre “penis erectus”, ou com a fenda subclitoridiana e seus lábios se
abrindo sob pelos pubianos) ou à pigmentação da pele (a melanina da bioquímica)
ou mesmo à negação metafísica da bipartição sexual objetiva da espécie humana
(e não me lembro quem escreveu que toda negação se contém no espaço daquilo que
nega). Ou seja: estamos nos reinos da vagina e da melanina.
Mas há uma diferença imensa, escandalosa mesmo, entre a
disposição sociológica e a predisposição identitária. Para a sociologia, o que
está em tela é uma constrição relativa à “posição de classe” do indivíduo. Um
condicionamento (e não um determinante, por sinal) desenhado pelo lugar do
indivíduo, do grupo ou da classe na estruturação hierárquica da sociedade.
Para a perversão identitária, a conversa é outra: essa
posição na estrutura da sociedade, antes que ser tomada como realidade a ser
imparcialmente reconhecida e examinada, assume um significado moral: é razão de
condenação inapelável (se o sujeito se achar na posição de “opressor”) ou de
celebração irrestrita, de canonização como fonte de legitimidade discursiva (se
o sujeito se achar na posição de “oprimido”).
Vale dizer: para a sociologia, trata-se de compreender o
fenômeno —para o identitarismo, trata-se de julgar. E quem por acaso se
encontrar no lugar do “opressor” deve ter a voz cassada, deve ser calado, mesmo
que à força, na base do grito e da porrada. Daí que, regra geral mesmo, tudo
que o identitarismo define como “inclusivo”, a exemplo do seu “lugar de fala”,
é coisa que circunscreve um agrupamento e implica a exclusão dos demais. E
assim o que vemos, à nossa frente, é o paradoxo da inclusividade excludente.
Mas vamos finalizar. Não me lembro agora quem fez a
distinção política precisa. Nestes últimos anos, a liberdade de expressão e o
pensamento independente sofrem pressões e ameaças vindas de duas direções
poderosas. No espaço geral da sociedade, elas vêm basicamente da extrema
direita. No espaço mais restrito do campo universitário e do mundo
artístico-intelectual, vêm basicamente da esquerda identitária.
Plantado com clareza no campo da esquerda democrática, penso
que temos de combater esses dois fascismos, na base do vigor, do rigor, da
criatividade e da coragem. Combater “ambos os dois” —como diria o velho Luiz de
Camões. Hoje, a liberdade, juntamente com a necessidade de redução das
distâncias sociais, é questão essencial da vida brasileira.
*Antonio Risério, poeta, romancista e antropólogo, autor de
“A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros” (ed. 34) e “Sobre o Relativismo
Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária” (Topbooks)
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