O Brasil é um dos países mais complexos do mundo. A
variedade de seus problemas torna muito difícil escolher um único caminho
ideológico como remédio a todos os males. Só que a disputa política geralmente
produz a contraposição de visões de mundo. No momento, predominam duas delas
que resumem bem as soluções colocadas à mesa. De um lado, um grupo que vai da
esquerda até parte do centro defende que a agenda básica deve ser o combate à
desigualdade. De outro, um agrupamento que capta parte da centro-direita e
chega até à extrema-direita propõe que a questão central deve ser a reordenação
moral da sociedade e do Estado brasileiros.
Obviamente que nenhuma liderança política vai dizer que é a
favor da corrupção ou defender que não haja políticas públicas para os mais
pobres. Posições tão extremas não estão em questão. Mas o embate político pode
ser sintetizado pela luta entre a visão centrada no combate à desigualdade
versus uma concepção mais orientada por questões morais, tanto públicas como
privadas.
Somada à luta contra o autoritarismo, a redemocratização
teve como slogan o resgate da dívida social. O país havia tido uma enorme
transformação econômica desde o varguismo, porém, mantivera uma enorme
desigualdade. Para mudar essa realidade, a sociedade levou uma série de
demandas represadas aos constituintes e as lideranças políticas criaram aquilo
que Ulysses Guimarães acertadamente chamou de Constituição cidadã. Assim, um
cardápio amplo de direitos foi criado, buscando aumentar o acesso aos serviços
públicos, principalmente aos mais pobres.
Construiu-se um consenso social democrata, que vigorou por
mais de 20 anos, capaz de produzir várias medidas contra a desigualdade. A
maioria no campo social, mas também se constituiu um olhar econômico preocupado
não só com o crescimento, mas também com a redistribuição. O Plano Real seguiu
esta trilha, bem como as políticas de salário mínimo.
Políticas como Fundef/Fundeb, ações do SUS (sobretudo na
atenção básica), o Bolsa Família, as cotas sociais nas universidades, entre
outras, foram medidas muito bem-sucedidas. Os indicadores sociais melhoraram
bastante quando comparados à realidade da ditadura. O combate à desigualdade,
no entanto, ainda tem muitos problemas. A qualidade da escola pública deixa a
desejar, os mais pobres têm enorme dificuldade de marcar exames na rede de
saúde e a população da periferia ainda sofre com as más condições
habitacionais, de locomoção, acesso à cultura e, o mais importante, segurança.
Vale ressaltar que a violência é um dos retratos mais fortes da desigualdade no
Brasil: são os jovens negros os que mais sofrem com essa situação.
A luta contra a desigualdade não se resumiu às políticas
sociais. Foram ampliados os direitos civis em medidas como o Estatuto da
Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso e o Código de Defesa do
Consumidor. Aumentou-se a igualdade também no campo dos direitos políticos,
algo que começou ainda no governo Sarney com a permissão do voto ao analfabeto.
Todas essas legislações, ademais, abriram as portas para que diversos grupos
historicamente desfavorecidos buscassem seus direitos, incluindo aí demandas
comos a da população indígena, das organizações LGBT e dos movimentos negro e
feminista.
Mesmo com tais avanços, permaneceram regras e lógicas que
garantiam privilégios a determinados grupos. Isso vale para o corporativismo do
setor público, para benesses tributárias ou de crédito a empresas e, ainda,
para forma como a população negra e pobre é tratada por parte do Estado
brasileiro. De todo modo, a agenda da desigualdade foi predominante e teve bons
resultados se levarmos em conta a profunda tradição escravocrata do país.
É inegável que a desigualdade ainda se constitui no maior
problema do país quando analisamos os dados do IBGE e de outras pesquisas sobre
as condições de vida dos brasileiros. Mas a partir de 2013, exatamente num
ponto em que o Brasil tinha avanços de duas décadas em prol da igualdade, houve
uma mudança na visão de boa parte da sociedade. O tema da moralidade ganhou
terreno, com a ideia, primeiro, de que se deveria tornar o combate à corrupção
o tema número um da agenda pública, e, num segundo momento, num questionamento
sobre políticas sociais e a intervenção do Estado em assuntos privados, que
devem ser resolvidos pelos indivíduos, suas famílias e suas associações
religiosas.
O moralismo como guia da ação política não é algo novo na
política brasileira. A UDN fez isso por quase duas décadas e sua ação teve como
desaguadouro um golpe civil-militar. O PT das décadas de 1980 e 1990 também
cresceu por ter se colocado como o paladino da ética e a eleição de Lula em
2002 estava tão ligado a esse discurso quanto ao combate à desigualdade. O
jacobinismo que se desenvolveu nas últimas três décadas em parcelas do
Ministério Público tem nítido DNA petista.
As sucessivas crises de corrupção durante o período do PT no
poder foram um dos estopins das jornadas de junho de 2013. Decerto que as
demandas eram mais amplas e difusas, mas o mote vencedor foi o da luta contra
um sistema político que estaria carcomido e que precisava de uma reforma moral.
Neste contexto, a Operação Lava-Jato tornou-se o espírito de uma época. Suas
ações atingiram fortemente o petismo e outros políticos que a ele se aliaram. A
prisão de importantes membros da elite brasileira e a revelação de alguns
episódios de corrupção convenceram uma boa parte da população que estaria nesta
visão de mundo a solução para os problemas brasileiros.
O lavajatismo ainda é o espírito de nossa época, todavia,
outros elementos de moralidade foram colocados nesta agenda. Primeiro, a defesa
de uma visão mais conservadora em relação aos costumes. Neste sentido, é
interessante como o MBL, que fora criado para levar adiante a bandeira do
liberalismo, abraçou muito rapidamente a censura a uma exposição num museu
paulistano. Foram menos liberais do que pensavam ser, mas conseguiram maior
apoio social porque havia uma onda conservadora crescente.
A defesa desses valores mais conservadores veio junto com o
ataque a políticas públicas que, em tese, favoreceriam visões contrárias à
moralidade do brasileiro, enfraquecendo as famílias. Dessa perspectiva vem a
Escola sem Partido, a proposta de abstinência sexual como instrumento de
combate à gravidez precoce, o ataque às agendas identitárias e a proposta de
reduzir a separação entre Igreja – no caso, as evangélicas – e o Estado. Se o
ministro Moro é o líder do lavajatismo, Damares é a representante mais orgânica
da agenda moral no campo dos costumes.
O bolsonarismo soube se apropriar dessas duas vertentes da
moralidade na eleição de 2018, embora esteja bem mais próximo do damarismo do
que do morismo – até porque, muitos bolsonaristas participaram do
patrimonialismo corrupto que dizem combater. Vários fatores explicam a vitória
de Bolsonaro, mas com certeza no topo está a capacidade de abraçar e
representar essa nova agenda moralizante, que em boa medida está guiando o governo
contra o antigo predomínio da visão de combate à desigualdade.
Vale ressaltar outro ponto que o bolsonarismo acrescentou à
essa nova agenda. Trata-se de uma defesa de uma ampla liberdade individual
contra o “discurso vitimista” que, para os bolsonaristas, orientava a agenda de
combate à desigualdade. Por esta lógica, Bolsonaro defende o uso amplo das
armas, uma forte desregulamentação do trânsito, uma visão cultural contra o
politicamente correto e o apoio às forças de segurança contra a bandidagem – voltamos
aqui à Primeira República, quando a questão social era antes de tudo uma
questão de polícia.
Bolsonaro acredita estar do lado do cidadão comum, que nas
últimas décadas viu seu modelo tradicional de vida ser questionado. Neste
sentido, seria preciso restituir a antiga moralidade, com a família, a religião
e os papéis sociais de gênero bem definidos. É essa agenda, e não o
liberalismo, o carro-chefe do governo.
A redução da relevância da agenda da desigualdade já está
muito clara. O desastre da política educacional, o péssimo tratamento dos que
buscaram seus direitos previdenciários ou o Bolsa Família nos últimos meses, o
incentivo à visão de que talvez os mais pobres tenham de morrer para se
combater a violência e mesmo o liberalismo de Guedes – que já disse não ter a
desigualdade no centro de suas preocupações – são sinais evidentes da vitória
da concepção moralista ao estilo Bolsonaro, por ora com o apoio silencioso do
lavajatismo.
Tão ruim quanto o enfraquecimento das políticas de combate à
desigualdade, o que piorará a vida da maioria da população brasileira, é a
polarização entre o discurso pelo social e a proposta de moralização da vida
pública brasileira. A republicanização do Estado é peça-chave para qualquer
projeto de modernização, do mesmo modo que é preciso entender a lógica das
famílias pobres da periferia que optaram em 2018 pelo conservadorismo. Por
isso, se um amplo arco que vai do centro à esquerda quer mesmo lutar contra os
retrocessos crescentes, ele terá de mostrar como o combate à desigualdade pode
não só se casar, mas ser o alicerce de uma nova ética pública.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e
chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
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