Na sua segunda passagem por Davos, Paulo Guedes demonstrou
mais uma vez que as teorias antiglobalistas passam longe do Ministério da
Economia. Depois de ter costurado um acordo sem precedentes entre o Mercosul e
a União Europeia, o governo brasileiro anunciou a intenção de aderir ao Acordo
de Compras Governamentais da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Na cabeça de Guedes não há espaço para teses obscurantistas
que influenciam outros setores importantes do governo, como o Itamaraty e até
mesmo o Palácio do Planalto. Para o todo-poderoso da Economia, a aceitação dos
parâmetros e normas ditados por organismos multilaterais como a OMC e a
Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) é o
passaporte para o Brasil alcançar “a primeira divisão” da economia
internacional.
Na prática, liberar gradativamente o multibilionário mercado
das licitações federais, estaduais e municipais para empresas estrangeiras
significa abrir mão de um poderoso instrumento de estímulo à produção nacional.
Não é à toa que apenas um grupo limitado de países desenvolvidos faz parte
desse acordo da OMC, como os membros da União Europeia, EUA, Japão, Canadá,
Austrália e Coreia, além de poderosos entrepostos comerciais como Singapura,
Hong Kong e Taiwan.
Estimativas indicam que as compras e contratações do setor
público movimentam entre 10% e 13% do nosso PIB. As firmas brasileiras,
obviamente, sempre buscaram reservar para si a exclusividade desse mercado, e
na última década ainda ampliaram sua vantagem com a introdução de regras de
conteúdo nacional e margens de preferência.
Mas Paulo Guedes acredita que, para o país atrair mais
investimentos externos e se integrar às cadeias globais de negócios, o preço a
ser pago é a exposição do empresariado local a uma maior concorrência
estrangeira. No seu estilo direto de dizer, afirmou que o Brasil não pode ser
uma “fábrica de bilionários à custa da exploração dos consumidores”.
Guedes sabe que não será fácil vencer o lobby da indústria
brasileira contra seu plano de ser o primeiro grande país em desenvolvimento a
liberalizar seu mercado de licitações a firmas provenientes das mais avançadas
economias globais. E é por isso que embalou o anúncio de suas intenções num
discurso caro ao eleitor bolsonarista: o combate à corrupção. Nas suas
palavras, a medida será “um ataque frontal à corrupção”, num país de “200
milhões de trouxas servindo a seis empreiteiras e seis bancos”.
De fato, denúncias de fraudes em licitações – de merenda
escolar às grandes obras da Petrobrás – fazem parte do noticiário cotidiano no
Brasil há décadas. Nem mesmo a adoção de sistemas mais eficientes de seleção de
fornecedores, como o pregão eletrônico, foi capaz de reduzir de forma drástica
o desvio de recursos públicos em licitações públicas. Editais direcionados,
julgamentos enviesados de propostas e cartéis de licitantes continuam a fazer
com que o setor público contrate produtos e serviços piores por preços muito
mais altos. Na visão do Ministério da Economia, permitir que empresas
estrangeiras compitam em pé de igualdade nas licitações brasileiras pode romper
esse círculo vicioso.
Mais concorrência e abertura sem dúvida podem contribuir em
muito para reduzir a corrupção nas compras e contratações do setor público
brasileiro, em seus três níveis. Porém, como quase tudo em economia, trata-se
de uma condição necessária, mas não suficiente.
Não custa lembrar que empresas estrangeiras protagonizaram
um dos maiores escândalos de desvio de recursos públicos nos últimos anos.
Investigações conduzidas pelo Cade, com o apoio do Ministério Público e da
Polícia Federal, comprovaram que um cartel internacional liderado pelas
multinacionais Siemens (Alemanha), Alstom (França), Bombardier (Canadá), CAF
(Espanha) e Mitsui (Japão) superfaturou ao longo de décadas contratos de
construção de linhas e o fornecimento de trens e vagões para o metrô de São
Paulo e outras capitais brasileiras. O chamado “trensalão tucano” está aí para
comprovar que não existe bala de prata quando se trata de corrupção.
A propósito, na última sexta-feira a Transparência
Internacional publicou a nova edição do seu relatório anual, que divulga o
Índice de Percepção da Corrupção – um levantamento que conjuga dados
quantitativos e avaliação de especialistas para classificar os países quanto ao
combate à corrupção. Em 2019 o Brasil manteve a pontuação do ano passado (35
pontos, numa escala de 0 a 100), alcançando a 106ª posição, num total de 180
países – bem atrás de nossos vizinho Uruguai (21º) e Chile (26º). Esse resultado
indica que, a despeito dos méritos da Operação Lava Jato, não conseguimos
avançar de modo sistemático na prevenção e repressão de desvios de dinheiro
público.
A leitura do relatório deste ano da Transparência
Internacional deixa claro que, quando se trata de corrupção, não existem anjos.
O documento destaca como até mesmo empresas provenientes de nações que figuram
no topo do ranking – os sempre invejados países nórdicos – deixam-se envolver
em grandes esquemas de pagamentos de propinas e lavagem de dinheiro no
estrangeiro. Casos como o da sueca Ericsson, do conglomerado de pesca islandês
Samherji e do banco estatal norueguês DNB revelam que, por mais íntegra que
seja a sua origem, a corrupção ocorre quando a oportunidade surge, e isso deve
servir de alerta para o governo brasileiro.
O Brasil só dará um salto significativo para figurar entre
os países que melhor combatem a corrupção se houver medidas consistentes nessa
direção tomadas no âmbito dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário ao
longo de sucessivos governos. Permitir que empresas estrangeiras participem das
licitações no Brasil sem dúvida alguma deve fazer parte dessa agenda. No
entanto, a experiência internacional e nosso passado recente revelam que não
podemos parar por aí.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e
autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político
brasileiro”.
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