Uma suprema corte tem função indispensável na democracia.
Impor contrapeso a eventuais arroubos de maiorias eleitorais e legislativas,
preservar a institucionalidade e proteger valores constitucionais acima do
conflito político cotidiano são papéis delicados. Para que sobreviva como
instituição que se respeita e se obedece, precisa investir na fina construção e
manutenção de sua autoridade.
O STF se autoliberou desse penoso exercício.
Prefere um tribunal libertino, leve e solto. Presume que sua
autoridade brota da natureza, ou das palavras da Constituição, pouco importa o
que ministros fazem ou deixam de fazer dentro ou fora da corte. A libertinagem
procedimental põe em risco a liberdade de todos nós, à esquerda e à direita.
Não descobrimos isso em janeiro de 2020, mas o mês inovou.
A figura do “juiz das garantias”, aprovada pelo Congresso um
mês atrás, determina divisão de trabalho entre o juiz que conduz produção de
provas e o juiz que toma a decisão final. Inspirada em outras cortes do mundo,
o modelo tenta potencializar as condições não só para uma decisão imparcial,
mas para a imagem de imparcialidade. Gerou gritaria pública, sobretudo em
entusiastas do selo Lava Jato de combate à corrupção.
Você pode ser contra ou a favor do juiz das garantias. Há
argumentos dignos do nome dos dois lados, ainda que uns sejam mais convincentes
que outros (debate que fica para outra coluna). Mas você não pode apoiar a
arbitrariedade judicial só porque ela atende sua opinião hoje. Amanhã o afetado
por manobra monocrática poderá ser você. Atenção aos métodos, não só aos
resultados.
Liminar de Toffoli durante o recesso judicial ampliou prazo
legal para implementação do juiz das garantias de 30 para 180 dias. Fux, outro
plantonista do recesso, revogou a decisão de Toffoli e suspendeu, sem prazo
definido, esta e diversas outras disposições do “pacote anticrime”. Ressaltou
que tomava essa decisão com “todas as vênias possíveis” a Toffoli.
É provável que esse caso não volte mais à pauta do tribunal
nessa geração. Afinal, desde 2012 esperamos que a gaveta de Fux solte para
plenário o julgamento dos penduricalhos de juízes fluminenses (que a lei chamou
de “fatos funcionais”); desde 2014, sua gaveta sonega do plenário o caso do
auxílio-moradia. Para ficar em dois exemplos. A história não tem registro de
voto de Fux que contrarie a magistocracia.
Foi um “descalabro” que “desgasta barbaramente a imagem do STF”,
nas palavras do ministro Marco Aurélio. Para Gilmar Mendes, Fux “deveria
entregar a chave do Parlamento” à equipe da Lava Jato. Soa bem, mas sabemos o
que Marco Aurélio e Gilmar Mendes fizeram em verões passados.
Liminar é decisão de urgência. Justifica-se à luz do risco
de a demora judicial causar prejuízo irreversível.
Num tribunal, liminar deve ser concedida pelo colegiado.
Apenas por razão excepcional, pode ser tomada de forma monocrática.
Em controle de constitucionalidade, nem por razão excepcional
(a lei 9.868 não autoriza, mas o STF a ignora). Apenas por razão
excepcionalíssima, pode ser tomada dentro do recesso judicial.
Liminar monocrática em recesso, portanto, é decisão triplamente qualificada.
Liminar monocrática em recesso, portanto, é decisão triplamente qualificada.
Fux rompeu a barreira. No glossário dos abusos judiciais,
falta palavra para classificar liminar monocrática que passa por cima de outra
liminar monocrática, ambas dentro do recesso.
O pensamento constitucional emprestou o mito de Ulisses para
simbolizar a tarefa de cortes. Democracia que se sujeita a limites agiria como
Ulisses. No mito, Ulisses se amarrou ao mastro para resistir ao canto das
sereias. Na política moderna, democracias se amarraram às barreiras
constitucionais. No STF, Fux não resistiu e se amarrou às sereias. “O mastro às
favas”, poderia ter dito.
Uma suprema corte também se diz “contramajoritária” porque
busca represar impulsos de maiorias. O STF inventou o ministro
contramajoritário: aquele que joga contra a maioria do STF. Isso só se conhece
no STF. Não é jabuticaba, pois a saborosa fruta não merece ser metáfora de
nossos vícios e patologias. É aberração mesmo.
*Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional
da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da
Fundação Alexander von Humboldt.
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