O coronavírus ainda é dominante no noticiário internacional.
Agora não apenas pelas mortes e transtornos, mas também pelo impacto econômico.
Empresas brasileiras que exportam para a China, por exemplo, tiveram redução
brutal no seu valor. É algo que pode ser recuperado adiante, mas de qualquer
forma a inevitável queda do ritmo chinês tem consequências planetárias.
De modo geral, o mundo não está ainda preparado para uma
pandemia. Quem afirma isso é Bill Gates, um homem muito rico que usa bem tempo
e dinheiro para se informar. Gates mencionou a hipótese de uma pandemia com
potencial de matar 30 milhões. Esses números são discutíveis. Mas ele previu
que algo poderia surgir dos úmidos mercados chineses onde se vendem e comem os
mais estranhos animais. O raciocínio de Gates aponta para um erro de análise.
Enquanto se gastam trilhões em defesa e preparação para as guerras, deixa-se de
lado algo que pode ser decisivo para evitar mortes em grande escala, incluído o
investimento em vacinas.
Se menciono Bill Gates, é porque cheguei à conclusão de que
suas ideias são muito inspiradoras para os políticos brasileiros. Ele foi capaz
de focar no saneamento básico e compreender que esse tema envolve não só a vida
de milhares de crianças, como também a saúde e a disposição dos povos. Em
defesa dos políticos brasileiros é possível dizer que Gates, com sua fortuna
imensa, pode focar num tema dessa natureza e até aumentar seu prestígio
internacional, cooperando com governos, ONGs e todos os que de alguma forma se
interessam pelo saneamento básico.
Governos têm de lidar com um espectro muito amplo de
problemas. Isso não diminui o acerto de Gates ao definir prioridades. São duas
coisas distintas: ampliar o saneamento no mundo e prepará-lo para enfrentar
pandemias.
Esses temas, porém, se encontram, pois ambos tratam da
segurança biológica. A ausência de saneamento talvez não produza por si as
grandes epidemias anunciadas por Gates, embora em certos momentos, como no
Haiti, a cólera tenha sido devastadora. Mas é evidente que a vulnerabilidade
nacional é tanto maior quanto menor for seu índice de saneamento.
Estar ou não preparado para os eventos extremos ou mesmo
para potenciais pandemias como a do coronavírus é outro tema que ainda não se
esgotou para mim. Ele transcende a existência de alguns laboratórios e
equipamentos. Os relatos de Wuhan mostram como é complexa a situação. Centenas
de pessoas não chegaram ao hospital, por falta de lugar ou de capacidade de
diagnóstico em grande escala. E ainda há, depois de ser atendido, uma
burocracia a ser cumprida no comitê do partido no bairro.
A construção de um hospital em dez dias foi uma grande
conquista, pois certamente vai resolver essa grande demanda. Muitos analistas
no Brasil atribuíram a celeridade da resposta chinesa ao seu regime
autoritário, que dispensa formalidades democráticas. É verdade, em parte, no
entanto a burocracia partidária é um entrave em muitos momentos. Países como o
Japão, sem regime autoritário, conseguem muita rapidez e eficácia nas
respostas. No meu entender, ela depende não só da solidez das instituições
públicas, mas do nível de preparo da população.
O Brasil tem dado a resposta de acordo com as normas
internacionais, até repatriando seus cidadãos de Wuhan, como fizeram outros
países. Mas, estruturalmente, nossas defesas são fracas. As reportagens sobre a
Anvisa mostram que no maior aeroporto do Brasil, o de Guarulhos, há apenas um
fiscal sanitário. Os investimentos nessa área caíram e isso tem importância não
só para a saúde das pessoas, como da economia, sobretudo do agronegócio.
O surgimento do coronavírus em meio às chuvas de verão e os
graves problemas do abastecimento de água no Rio de Janeiro são alguns temas
que nos revelam não só os tempos presentes, mas também como a energia política
está longe deles, a quilômetros da visão de Bill Gates.
Quando vejo o marco legal do saneamento perdido entre outras
grandes prioridades, temo por ele. Não há nada mais urgente entre os grandes
temas. Estamos em estado de emergência por causa do coronavírus. Mas, ao ver
uma cidade como Belo Horizonte se desmanchar nas chuvas, derrotada por seus
rios canalizados, e a crise da água no Rio, sinto que a emergência é muito mais
ampla.
Tudo isso num quadro já nada animador. Tínhamos a dengue,
vieram a zika e a chikungunya. Testemunhei o nascimento de crianças deformadas
pela zika em Pernambuco, a dor crônica dos contaminados por chikungunya em
Sergipe. Para mim não há dúvidas. A própria volta da febre amarela e o surto de
sarampo também revelam que a caixa de surpresas assustadoras ainda está por aí.
O saneamento não resolverá todos esses problemas, mas
reduzirá a mortalidade infantil, as doenças, enfim. Além disso, levantaria o
ânimo das pessoas. Tantos deputados e senadores por aí e a realidade enviando
mensagens inequívocas, por que não decidir logo: vamos dar um empurrão no
saneamento e começar por aí uma longa adaptação do Brasil aos novos tempos.
Artigo publicado no Estadão em 07/02/2020
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