sábado, 30 de maio de 2020

MILITARES DE PIJAMA

Marcos Strecker, ISTOÉ

Várias razões explicam a adesão dos militares ao governo Bolsonaro, como a falta de quadros do grupo bolsonarista, em grande parte formado por radicais ideológicos despreparados. A grande dúvida, que se renova diariamente à medida que Bolsonaro radicaliza seu projeto autoritário, é se os militares abandonarão a doutrina de respeito à Constituição construída a duras penas após a redemocratização e poderão ser cooptados para uma aventura golpista. Os sinais recentes mostram que eles estão deixando o papel de tutela sobre os excessos presidenciais. Paulatinamente, mostram fidelidade cega aos planos irresponsáveis do mandatário e sobem o tom contra os outros Poderes. Como disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o poder “é pegajoso” e os militares “talvez nem percebam, mas pouco a pouco chegam lá e vão gostando”.

O episódio mais grave aconteceu na sexta-feira, 22, com a nota divulgada pelo general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), contra uma decisão do ministro Celso de Mello, do STF. Seguindo o que determina a lei, o decano da corte pediu à Procuradoria-Geral da República que se manifestasse sobre o eventual confisco e periciamento dos celulares do presidente e de seu filho Carlos, em resposta a três notícias-crimes protocoladas por parlamentares da oposição. Heleno retrucou: “O GSI alerta as autoridades constituídas que tal atitude é uma evidente tentativa de comprometer a harmonia entre os poderes e poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. Foi a mais explícita ameaça a outro Poder feita por um militar do governo. Pelo seu tom, o chefe do GSI recebeu várias críticas. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, tuitou: “As instituições democráticas rechaçam o anacronismo de sua nota. Saia de 64 e tente contribuir com 2020, se puder. Se não puder, #ficaemcasa”. Vários deputados reagiram indignados. “Ameaça é muito ruim, não é esse o caminho”, declarou em tom mais moderado o presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia. Na quinta-feira, 28, o procurador-general manifestou-se contra a apreensão do celular — Bolsonaro já havia afirmado que “tinha certeza” de que Aras daria parecer contrário ao pedido. O mal-estar permaneceu, à espera da decisão de Celso de Mello.

Defesa apoia Bolsonaro

Para sua investida, Heleno teve o apoio prévio do ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva, que seguidamente tem sido obrigado a divulgar notas de respeito à normalidade democrática. “A simples ilação de o presidente da República ter de entregar o seu celular é uma afronta à segurança nacional”, disse Silva. Não está sozinho. Luiz Eduardo Ramos, amigo pessoal do presidente e único militar da ativa entre os palacianos, defende Bolsonaro para os seus pares e precisou justificar a aproximação com o Centrão. Em mensagem enviada aos colegas da turma de 1979 da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), argumentou que o presidente precisa de base no Congresso e que não há corrupção no governo. “Não passa nada que não seja republicano, legal e ético”, escreveu. O novo homem-forte do governo, o general Braga Netto (Casa Civil), também mostra alinhamento com o radicalismo em alta do governo. Afirmou que ficou espantado ao ser indagado sobre uma possibilidade de intervenção militar em audiência recente no Congresso. “Quando fui perguntado de golpe, aquilo para mim é absurdo, não sei de onde saiu essa pergunta…”

Mas a imagem da instituição fica cada vez mais associada aos desvarios bolsonaristas. Os exemplos se multiplicam. Oficiais se mobilizaram em apoio a Augusto Heleno. O presidente do Clube Naval, almirante Eduardo Monteiro Lopes, divulgou uma carta classificando as decisões do STF como “intromissões inaceitáveis que podem tumultuar o País”. Um grupo de colegas da turma de 1971 na Aman divulgou uma nota intitulada “Alto lá, ‘ministros’ do stf!”. Os 94 generais e oficiais superiores criticaram as “sucessivas arbitrariedades, que beiram a ilegalidade e a desonestidade, praticadas por este bando de apadrinhados que foram alçados à condição de ministros do STF”. Também afirmaram ter aprendido “desde cedo, que ordens absurdas e ilegais não devem ser cumpridas”. Apesar das manifestações, não há unanimidade. Também colega de turma de Heleno, o general Paulo Chagas não assinou o manifesto e criticou a declaração de Bolsonaro de que tem um sistema particular de arapongagem, feita na reunião ministerial de 22 de abril.

Augusto Heleno, Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos, que foram citados no inquérito aberto após a demissão de Sergio Moro, estão sentindo a pressão da crise. Eles se irritaram com a forma como foram chamados a depor na condição de testemunhas, por Celso de Mello, relator do inquérito. Estariam sujeitos à condução coercitiva ou “debaixo de vara”. São termos duros, mas de rotina dentro do léxico jurídico. Nesse episódio, receberam ainda o apoio do general Eduardo José Barbosa, presidente do Clube Militar. A associação divulgou nota de repúdio e classificou o despacho de Mello como “páginas e mais páginas de ilações e comentários completamente desnecessários”. Afirmou ainda que o decano teria “ódio pelo governo federal e pelos militares”.

Com a atual investida contra o STF, Bolsonaro está conseguindo mexer com o clima na caserna, unindo a seu favor oficiais da ativa e da reserva. Começa a atrair grupos mais moderados. O vice, general Hamilton Mourão, tem mantido uma atitude dúbia. Guarda distância dos arroubos do chefe, mas também critica o STF. Porém, mantém o discurso de respeito à Constituição. “Quem é que vai dar golpe? As Forças Armadas? Que que é isso, estamos no século 19? O que existe hoje é um estresse permanente entre os Poderes”, disse na quinta-feira, 28. No mesmo dia, Heleno minimizou a crise. “Intervenção militar não resolve nada. Não houve esse pensamento nem da parte do presidente, nem da parte de nenhum dos ministros. A imprensa está contaminada com isso, não sei por quê.” Tantas justificativas apenas reforçam as dúvidas. Ao participar do vale-tudo político, com um presidente que apoia manifestações golpistas e tem a popularidade em queda-livre, os militares entraram em um terreno pantanoso. Não deveriam, portanto, se melindrar. A menos que considerem que os militares, da ativa ou não, têm um papel que exceda as prerrogativas constitucionais das Forças Armadas. Até quando vão apoiar a tática “morde a assopra” de Bolsonaro contra as instituições?

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