Publicado em 1947, A Peste, do escritor franco-argelino
Albert Camus (1913-1960), é uma alegoria da ocupação nazista. Por isso, fez
tanto sucesso não só na França como na Europa do pós-guerra e também na América
Latina, inclusive no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970. Camus foi um militante
da Resistência, mas teve uma posição muito moderada em relação aos que
colaboraram com os invasores alemães durante a II Grande Guerra, condenando os
“justiçamentos”. Já era um escritor consagrado, com duas obras elogiadíssimas
pela crítica: O estrangeiro e O mito de Sísifo.
Albert Camus nasceu em 7 de novembro de 1913 na Argélia, à
época uma colônia francesa, cenário de seu romance, que conta a história de uma
epidemia na cidade de Oran, no norte daquele país. Em 1940, um médico encontrou
um rato morto ao deixar seu consultório. Comunicou o fato ao responsável pela
limpeza do prédio. No dia seguinte, outro rato foi encontrado morto no mesmo
lugar. A esposa do médico tinha tuberculose e foi levada para um sanatório. A
quantidade de ratos aumentou exponencialmente. Em um único dia, oito mil ratos
foram coletados e encaminhados para cremação.
Em pânico, a cidade declarou estado de calamidade, as
pessoas tinham febre e morriam em massa. Os muros foram fechados, em
quarentena, ninguém entrava ou saía; os doentes foram isolados, as famílias,
separadas. Enquanto o padre apregoava que tudo aquilo era um castigo divino,
prisioneiros eram mobilizados para enterrar os cadáveres, que empilhavam nas
ruas: velhos, mulheres e crianças morriam. O livro é uma alegoria da condição
de vida regulada pela morte, fez muito sucesso porque era uma crítica ao
fascismo e relatava as diferenças de comportamento diante de situações-limite.
Fora escrito durante a ocupação militar alemã. Camus foi editor do jornal
clandestino Combat, porta-voz dos partisans.
Em 1951, Camus lançou o livro O homem revoltado, no qual
condenava a pena de morte e criticava duramente o comunismo e o marxismo, o que
provocou uma ruptura com seu amigo e filósofo Jean-Paul Sartre, que liderou seu
linchamento moral por parte da intelectualidade francesa. Mesmo depois do
Prêmio Nobel de Literatura, em 1957, continuou sendo um renegado para a
esquerda. Seu discurso na premiação foi profético. Permanece atual nestes
tempos de epidemia de coronavírus.
“Cada geração se sente, sem dúvida, condenada a reformar o
mundo. No entanto, a minha sabe que não o reformará. Mas a sua tarefa é talvez
ainda maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma
história corrupta onde se mesclam revoluções decaídas, tecnologias
enlouquecidas, deuses mortos e ideologias esgotadas, onde poderes medíocres
podem hoje a tudo destruir, mas não sabem mais convencer, onde a inteligência
se rebaixou para servir ao ódio e à opressão, esta geração tem o débito, com
ela mesma e com as gerações próximas, de restabelecer, a partir de suas
próprias negações, um pouco daquilo que faz a dignidade de viver e de morrer”,
disse Camus.
Epidemia
Em comemoração aos 60 anos de sua morte, divulgou-se na França um de seus
textos da época da resistência, cujo original foi encontrado nos arquivos do
general De Gaulle, o presidente francês que liderara a Resistência do exílio. O
documento era destinado às forças que combatiam o marechal Pétain e trata de
dois sentimentos presentes no contexto da ocupação: ansiedade e incerteza. A
ansiedade “em uma luta contra o relógio” para reconstruir o país; a incerteza,
em razão do fato de que, “se a guerra mata homens, também pode matar suas
ideias”.
A alegoria de A Peste também serve de advertência diante de
certas manifestações de apoio ao regime militar implantado após o golpe de
1964, cujo aniversário foi comemorado ontem. Em 1974, o Brasil enfrentou a pior
epidemia contra a meningite de sua história. Para evitar o contágio, o governo
decretou a suspensão das aulas e cancelou os Jogos Pan-Americanos de 1975, que
foram transferidos de São Paulo para o México. A epidemia começou em 1971, no
distrito de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Com dor de cabeça, febre
alta e rigidez na nuca, muitos morreram sem diagnóstico ou tratamento.
Em setembro de 1974, a epidemia atingiu seu ápice. A proporção era de 200 casos por 100 mil habitantes, como no “Cinturão Africano da Meningite”, que hoje compreende 26 países e se estende do Senegal até a Etiópia. O Instituto de Infectologia Emílio Ribas, com apenas 300 leitos disponíveis, chegou a internar 1,2 mil pacientes. Na época, eu era um jovem repórter do jornal O Fluminense, de Niterói (RJ). Com a cumplicidade de um acadêmico de medicina, conseguimos fotografar pela janela uma enfermaria lotada de crianças com meningite, no Hospital Universitário Antônio Pedro (UFF). A foto foi publicada com a matéria, mas gerou a maior crise política para a direção do jornal, porque a meningite era um assunto censurado pelos militares. A epidemia só acabou no ano seguinte, após a vacinação de 80 milhões de pessoas, que seria impossível com a manutenção da censura sobre a meningite pelo governo do general Ernesto Geisel.
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