Hoje poderia ser dia de celebração de direitos indígenas no
STF. O tribunal teria a chance de se corrigir e dizer que o direito indígena à
terra não supõe presença física, nas respectivas áreas, em 5 de outubro de
1988, dia da promulgação da Constituição. A tese do “marco
temporal” foi inventada pelo STF anos atrás e passou a integrar a
jurisprudência constitucional da vergonha alheia.
A decisão infame inspirou parecer da AGU, que generalizou o
critério do marco temporal para demarcação de terras. A partir daí, a omissão
do Executivo, somada a decisões judiciais desencontradas, produziu notável
prejuízo ao projeto constitucional. Recentes decisões monocráticas do STF já
interromperam demarcações que tramitavam há mais de três décadas.
Luiz
Fux, porém, resolveu tirar o caso da agenda e deixá-lo para outra hora,
para a hora que lhe der na telha. Numa frívola canetada, dias antes da sessão
de julgamento, e sem qualquer explicação, limitou-se a registro burocrático:
“excluído da sessão de 28/10”. A vida institucional segue como se nada de
extraordinariamente errado tivesse passado.
A falta de decisão do STF, enquanto isso, só faz acirrar
conflitos fundiários e violência.
Foi um gesto rotineiro de descaso, deslealdade e desrespeito
a todos que levam o tribunal a sério e se mobilizam, na data marcada, para cada
julgamento. Incorrem em custos para ir até Brasília, publicam artigos,
reaquecem argumentos, promovem reuniões e debates. Os juristas Oscar
Vilhena Vieira e Fábio
Comparato, por exemplo, aproveitaram a ocasião para publicar neste jornal
textos sobre o tema. Foram deixados no vácuo, como tantos outros.
Presidentes do STF tratam pauta do tribunal como rascunho de
seus caprichos, não como roteiro dramático das urgências constitucionais do
país. Mais do que agredir a democracia e a esfera pública, viola regra
constitucional que obriga motivação de atos judiciais, tanto processuais quanto
administrativos (art. 93, inciso X, da Constituição). Não há poder de decidir
sem fundamentar. Essa vacina contra o autoritarismo vale até para presidente do
STF.
A maior semelhança entre o STF e o Congresso Nacional não é
o hábito de o STF “legislar”. O exercício da interpretação constitucional, ao
contrário do que se pensa, supõe o poder de colegislar. O STF não usurpa função
de ninguém quando o faz. É da sua própria natureza. Pode cometer erros
grotescos, claro, mas não porque “legislou”, foi “ativista” ou “usurpador”.
Se quiser traçar a linha entre “aplicar” a Constituição e
“legislar”, e daí definir se o STF é ativista, boa sorte, o caminho não tem
volta. Quem imagina uma fronteira fixa reservada à função judicial na separação
de Poderes está mal informado na teoria, na prática e na história.
Mais produtivo perguntar como, quando, quanto e por que um
tribunal constitucional pode colegislar. A análise fica mais afiada, ganha
contexto, presta atenção no procedimento e na qualidade dos argumentos. Escapa,
enfim, do slogan impressionista, preguiçoso e sumário.
Mas o STF perigosamente se assemelha, sim, ao Congresso
Nacional quando rompe com a obrigação de decidir, premissa exclusiva da função
judicial. O STF não tem poder de não decidir ou de manipular sua própria pauta
com o objetivo de evitar casos incômodos. Não tem o poder de escolher, entre os
milhares de casos em suas gavetas, quais levar adiante e quais deixar
apodrecer. Luiz Fux não é Rodrigo
Maia no contrato constitucional.
O poder de julgar o que quiser, quando quiser, foi
construído pelo STF à margem da Constituição e da lei. E assim nos obrigou a
conviver com uma incerteza jurídica de segunda ordem: em cada caso, não
perguntamos apenas “qual” será a decisão do STF (se vai respeitar precedente,
se vai inovar etc.), mas “se” haverá decisão.
A próxima vez que vir um ministro do STF se reunir com
executivos para uma palestra fechada sobre segurança jurídica, saiba do que
estão falando. Tanto a “palestra” quanto a ideia de “segurança jurídica” são
eufemismos para outra coisa.
Conrado Hübner Mendes
Professor de direito constitucional da USP, é doutor em
direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von
Humboldt.
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