O maior risco na política é o delírio. Quando fomentado por
um líder, pode arrastar grande contingente de pessoas a adotar comportamentos
destrutivos para si e/ou para os outros. Quando mobiliza o poder do Estado, as
consequências podem ser catastróficas.
Na semana que passou tivemos um pequeno exemplo dos graves
problemas que o delírio pode provocar quando passa a condicionar decisões de
política pública. Não merece outro nome a recusa presidencial de adquirir a
vacina contra a covid-19 ora em produção na China, em fase final de testes para
comprovar a sua eficácia.
Por trás da recusa está uma teoria conspiratória com duas
versões: a mais amalucada sustenta que a vacina altera o material genético das
pessoas e pode servir de veículo para a inoculação de chips capazes de
controlar o pensamento dos indivíduos vacinados; a menos endoidecida, mas ainda
assim disparatada, vê na vacina produzida pela Sinovac, em parceria com
cientistas e governos de distintos países do mundo, um instrumento a serviço da
projeção global do poder da China. Num caso ou no outro, é incitada a fantasia
paranoica de que nos estaríamos submetendo ao comando do Partido Comunista
daquele país.
A versão tosca do delírio é disseminada nas mídias sociais
pela rede de apoiadores do presidente Bolsonaro. A versão supostamente
sofisticada da maluquice é articulada pelo chanceler Ernesto Araújo, o mesmo
que enxerga em Donald Trump a salvação da cultura judaico-cristã e na China, o
motor do globalismo e do marxismo cultural.
Não é preciso gastar muita tinta para demonstrar a insânia
da referida teoria conspiratória, tampouco para mostrar as consequências
desastrosas da eventual recusa, se definitiva, de se adquirir uma vacina, venha
ela de onde vier, desde que comprovadas sua segurança e sua eficácia, em meio à
maior pandemia dos últimos cem anos. A rigor, as consequências, neste caso, vêm
antes do fato, uma vez que as declarações presidenciais atiçam o irracionalismo
antivacina que ganha fôlego no Brasil e no mundo.
Basta observar a queda na cobertura vacinal da população
brasileira nos anos mais recentes para se dar conta da tempestade que pode
estar se formando. Sem imunização em massa, corremos o risco de que o novo
coronavírus persista entre nós, junto com o ressurgimento de doenças já
erradicadas, das quais o sarampo é apenas um exemplo. Vale a analogia com o que
vem acontecendo no meio ambiente, visto que os sinais emitidos pelo candidato e
pelo presidente Bolsonaro tiveram inegável papel no aumento dos incêndios na
Amazônia e no Pantanal.
Diante desse quadro me pergunto o que significa a “normalização”
do governo Bolsonaro. Outro exemplo: seria “normal” a aliança que selamos, sob
a liderança dos Estados Unidos, com outros 30 países que não apenas
criminalizam o aborto, como também as relações homoafetivas?
A cegueira ideológica, beirando o fanatismo, é um grande
mal, em particular quando passa a condicionar decisões sobre questões
essenciais à vida, como são a proteção contra doenças contagiosas e o controle
sobre a mudança climática.
Não fosse trágica, a cegueira ideológica do governo nessas
matérias seria patética. Mimetizam-se, como bichinho amestrado, as ações e os
gestos da política externa de Trump. Nem sempre o que é bom para os Estados
Unidos é bom para o Brasil, muito menos quando o governo americano se move
exclusivamente em função de seus interesses unilaterais de curto prazo. Menos
ainda quando se está em meio a uma eleição que, tudo leva a crer, provocará
importante mudança política naquele país.
Países não têm amigos, têm interesses, disse originalmente
lorde Palmerston, ministro da Guerra do Reino Unido no início do século 19.
Certo, mas os países têm interesse em cooperar entre si quando se veem diante
de desafios que não podem resolver sozinhos. Em nenhuma época da História houve
competição tão acirrada quanto na guerra fria, entre Estados Unidos e União
Soviética. Confrontavam-se duas ideologias distintas que buscavam arregimentar
os demais países em blocos antagônicos. Ainda assim, americanos e soviéticos
cooperaram em questões vitais.
Na área nuclear, a construção de acordos e mecanismos
formais e informais de consulta e verificação impediram que a guerra fria
evoluísse para uma guerra quente de consequências devastadoras. Em momentos
decisivos, como na crise dos mísseis, em outubro de 1962, a racionalidade
pragmática prevaleceu na Casa Branca e no Kremlin e o mundo se salvou da mútua
destruição nuclear entre as duas grandes potências.
Menos conhecida é a cooperação entre Estados Unidos e Rússia
na erradicação da varíola, doença que na década de 1960 ainda matava cerca de 2
milhões de pessoas nos países do então chamado Terceiro Mundo. Os soviéticos
contribuíram com centenas de milhões de doses da vacina, os americanos com
outras tantas e com a logística de distribuição.
Não se tem notícia de que o comunismo se tenha espalhado nos
países que receberam as vacinas soviéticas. Em tempos de delírio, cabe
esclarecer: isso é uma ironia.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
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