Os padrões de decência do presidente Jair Bolsonaro, mais do
que sua flagrante incompetência, marcam indelevelmente a sua condução do País
em meio à maior emergência sanitária de que se tem notícia em mais de um
século. Quis o destino que, além da pandemia de covid-19, mal concomitante se
abatesse sobre a Nação: o infortúnio de ser governada por alguém sem a mínima
noção do bem comum num dos momentos mais dramáticos de sua história.
Não é o ideal, mas, nas horas graves, um presidente
incompetente sempre pode se acercar de auxiliares capazes antes de tomar
decisões quando, a despeito de lhe faltar técnica, lhe sobram humildade,
espírito público e genuína compaixão por seus concidadãos. Mas este não é o
caso de Bolsonaro, a quem faltam esses atributos tão elementares para qualquer
presidente da República digno do cargo.
Em mais uma demonstração cabal de seu absoluto desprezo pela
vida e pelo bem-estar dos brasileiros, Bolsonaro não escondeu o júbilo pela
interrupção dos testes da Coronavac, vacina desenvolvida pelo laboratório
chinês Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, por determinação da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no dia 9 passado. A agência
informou a ocorrência de um “evento adverso grave” como justificativa para interromper
os testes da fase 3, que têm se revelado bastante promissores.
Antes de estar claro em que circunstâncias se deu o “evento
adverso grave”, o presidente Jair Bolsonaro usou o Facebook para inflamar sua
rinha particular com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB). Sem qualquer
evidência que corroborasse suas alegações, bem a seu feitio, Bolsonaro escreveu
que a Coronavac provocaria “morte, invalidez, anomalia”. Trata-se de uma
mentira, uma desabrida irresponsabilidade que mostra que não há limites para
Bolsonaro quando o que está em jogo são seus interesses particulares. Dane-se o
interesse público.
Escrevendo em terceira pessoa e naquele seu idioma que se
assemelha ao português, o presidente prosseguiu afirmando que “esta é a vacina
que o Dória queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la. O Presidente disse
que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro
ganha”. Ganha o que, senhor presidente? Tanto o teor como a forma da mensagem
abjeta indicam que ali também ia um comando de Bolsonaro, diligentemente
obedecido, para que seus camisas pardas disseminassem o discurso por meio das
redes sociais.
Depois se soube que o “evento adverso grave” foi a morte
trágica de um voluntário que participava dos testes com a Coronavac em São
Paulo. A Secretaria de Estado da Saúde considera “impossível” que o fato esteja
relacionado com a vacina. Mais indigna, portanto, foi a manifestação inoportuna
do presidente Bolsonaro. Primeiro, por se jactar de um fato que envolve a morte
de uma pessoa. Segundo, por comemorar a interrupção dos testes de uma vacina
contra o novo coronavírus enquanto a esmagadora maioria do País anseia por ela
e lamenta o ocorrido.
A interrupção dos testes de uma vacina quando há um desvio
dos resultados esperados é procedimento comezinho na comunidade científica.
Recentemente, os testes com a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e
o laboratório AstraZeneca também foram suspensos pela Anvisa, após ter sido
constatado um efeito colateral em um voluntário. Tão logo ficou esclarecido que
seria seguro prosseguir com o estudo, os testes foram retomados. Portanto, a
interrupção dos testes é algo que diz mais sobre a segurança do processo de
desenvolvimento de uma vacina do que sobre sua possível ineficácia.
Ainda é cedo para que se faça um juízo dos critérios que
levaram a Anvisa a determinar a suspensão dos testes com a Coronavac. O
secretário de Saúde de São Paulo, Jean Gorinchteyn, e o presidente do Instituto
Butantan, Dimas Covas, disseram-se surpresos com a decisão da agência, que não
teria se pautado pelo rigor científico. A agência reguladora, obviamente,
afirma o contrário. Fica no ar a questão: se o presidente Jair Bolsonaro não
tivesse transformado a pesquisa e a produção de vacinas contra a covid-19 numa
mesquinha disputa eleitoreira, teria ele descido aos porões da indecência?
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