domingo, 1 de novembro de 2020

TEMPESTADE E BONANÇA

Fernando Henrique Cardoso, O GLOBO

A crer no que se sente e se lê nos jornais, pouco a pouco, a situação econômica do país está piorando. Será? Não tenho certeza, mas assim parece. Os sinais pipocam por todos os lados. Quase no final da semana passada os índices da Bolsa, para usar o jargão, “desabaram”, e o dólar foi a quase R$ 6.

No geral os críticos se queixam da morosidade das reformas no Congresso — a administrativa e, principalmente, a tributária — e da falta de compromissos do governo com a lei do “teto dos gastos”. Faltaria um claro compromisso com a austeridade.

De tanto baterem na mesma tecla os críticos que assim procedem, em geral jornalistas, empresários ou os que os seguem, parecem ser pessimistas. Mas é certo: sem compromissos claros do Executivo com o frear gastos e sem ação congressual mirando o futuro, a marcha da economia desanda. E isso parece estar acontecendo: a queda do valor do real e dos índices das Bolsas são indícios de que algo vai mal no reino da Dinamarca…

Além do mais, o Banco Central mantém os juros baixos. A taxa Selic foi definida pelo Copom em 2% para o ano, enquanto as próprias previsões “do mercado” (que nem sempre acerta…) para a inflação já passam de 3%.

É certo que em parte é graças aos juros baixos que muita gente se dispõe a comprar casas e apartamentos ou a fazer reformas. Assim, o mercado imobiliário e o de materiais de construção se mantêm ativos. E estes não são os únicos setores que prosperam: basta olhar as exportações para ver que os produtores agrícolas vão bem, obrigado.

Mas cuidado. Tal bonança provém, sobretudo, do mercado chinês, que compra sem parar nossos produtos do campo. E, ainda assim, há quem tema ver a pandemia nos levar a tratativas para importar e usar vacinas chinesas…. Tomara que os chineses (e não só eles) continuem consumindo nossos produtos e que produzam boas matérias-primas para as nossas vacinas.

Não escrevo isso para diminuir as preocupações com os sinais negativos que a economia apresenta, mas para, ao matizá-los com perspectivas menos sombrias, tentar entender o que ocorre.

Cabe repetir que estamos vivendo um mau momento: além dos sinais não alvissareiros emitidos por alguns setores da economia, existe um clima de pessimismo que deriva de preocupações com a saúde das pessoas. Desde a epidemia da “gripe espanhola”, que assustou a geração de meus pais logo depois da Primeira Grande Guerra, não se via uma crise sanitária de proporções tão amplas como a criada pela periculosidade do coronavírus: ele parece ser mais contagioso do que letal. Mesmo assim, barbas de molho: principalmente, mas sem exclusividade, os velhos (como eu) que se cuidem. As moléstias de que algumas pessoas são portadoras se agravam com o coronavírus e as pode levar à morte. Além do mais, parece que o vírus pode deixar sequelas em quem sobrevive.

As notícias que nos chegam da Europa e dos Estados Unidos sobre o crescimento da doença são alarmantes. Os próximos meses se afiguram sombrios. Quanto mais inerte o governo, mais necessária é a responsabilidade de cada um pelos gestos que nos protegem e protegem os outros. Ninguém pode fazer isso em nosso lugar. Seguir a orientação dos médicos, conversar com as pessoas em quem confiamos, manter a distância, usar as máscaras e lavar as mãos estão a alcance de todos. Não menos imperativo será assegurar o acesso de toda a população a vacinas seguras e eficientes, sem politizações mesquinhas. Se Trump perder a eleição como apontam as pesquisas, o fator determinante terá sido sua gestão desastrosa da pandemia.

Também do ponto de vista da economia, o que mais me preocupa é a relativa omissão do governo. Juros muito baixos e descontrole fiscal podem levar rapidamente à inflação. Só quem cuidou dela no passado sabe o quanto tal “vírus” é danoso: arrasa tudo e liquida em pouco tempo o salário dos pobres, mais do que a capacidade ou o “apetite” para investir, dos mais afortunados.

E é isso o que mais me preocupa. De intriga em intriga, o governo parece ser displicente diante de sinais que não deixam dormir os mais obcecados. Os responsáveis no governo pela economia não entendem o Congresso. Este funciona no ritmo das eleições que se aproximam. E governar implica em apontar caminhos que muitos se obstinam em não aceitar.

É difícil conciliar popularidade com sucesso econômico; a conciliação dos dois fatores nem sempre está nas mãos de quem governa. Mas a História cobrará dos governos o terem sido cúmplices se houver desvios de rumo. É por isso que governar não é fácil e depende tanto da sorte quanto da competência.

No fundo, vivemos e, pior, mansamente, o início de uma crise política. Com o que se preocupa quem tem nas mãos as rédeas do poder? Ao que parece, mais com o que lhe toca diretamente, como a reeleição, ou com os familiares, do que com os sinais de alarme que já estão soando fortes… Deus queira que as minhas sejam preocupações vãs.

*Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, ex-presidente da República

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