sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

BOLSONARO, O SABOTADOR DA ELEIÇÃO

Itamar Garcez, OS DIVERGENTES

Os cidadãos brasilianos têm dez meses para decidir quem será o presidente da República a partir de 2023. Doravante, os postulantes ao cargo mais importante do País serão perscrutados pelos eleitores, os quais ampliarão seus interesses à medida que a eleição se aproxima.

Donde se depreende, na mais elementar regra eleitoral, que os pré-candidatos precisam chamar a atenção e, em seguida, cativar o eleitor. Os dois principais, o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), levam vantagem, pois despertam o interesse dos meios de comunicação com enorme facilidade.

Resta a ambos, assim, cativar os votantes.

Nenhum deles é neófito, sabem vencer eleições. Portanto, surpreende que, enquanto Lula parece aprumar o passo para ampliar os apoios à sua candidatura, Bolsonaro age no sentido contrário.

Ditaduras, pra que vos quero?

O petista rateou quando declarou apoio a ditaduras, como as da China e da Nicarágua, e quando voltou a cogitar a censura à imprensa, obsessão do PT. Imprensa livre, em que pesem suas parcialidades, é uma contenção necessária a qualquer governo, à destra e à sinistra.

Parte deste discurso raiz é voltado à base de apoio para mantê-la motivada; parte é estratégia ideológica. Porém, esta parcela do eleitorado não garante os 50% mais 1 voto necessários para vencer o pleito.

Lula avança devagar e com a tranquilidade de quem lidera as pesquisas de intenção de voto. A aliança com o ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB), cogitado como candidato à vice-presidente, pode ser insuficiente, mas é uma tentativa nítida de exibir moderação e despertar confiança para além de seu público cativo.

Lula sabe disto tão bem que, como presidente da República, desde o começo do primeiro mandato (2003) procurou outros partidos para assegurar a governabilidade. Como fez o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) – junto com o petista, os únicos mandatários brasilianos que se reelegeram e completaram seus mandatos.

Tirar vacina de criancinha

Bolsonaro joga como sabotador de sua reeleição – antes, ele tentara sabotar a urna eletrônica, mas esta é outra história. Apesar dos três anos de seu mandato desastroso em aspectos econômicos, sociais e sanitários, a regra em democracias é a recondução do mandatário – mesmo em regimes parlamentaristas, onde o primeiro-ministro não é eleito diretamente pelos eleitores. Um governo mediano, mas conhecido, é menos surpreendente do que um opositor demagogo e/ou desconhecido. Além disto, quem pleiteia a reeleição tem a chave do cofre, ativo sempre relevante na disputa eleitoral.

Ao tentar agradar sua base policialesca, o hodierno mandatário desagradou todo o restante do funcionalismo e, provavelmente, não levou um voto a mais para a urna. Entre outras estratégias disponíveis, o presidente poderia ter negado o aumento dos vencimentos da tropa (com emprego estável e muito bem remunerada vis-à-vis os trabalhadores) argumentando que os dinheiros do Erário estão escassos. E, em momentos de crise, com desemprego alto, seu dever era garantir renda para quem não tem renda.

Contrariando seus ídolos, os generais-ditadores, Bolsonaro persiste investindo contra a vacina do coronavírus, desta vez sabotando o imunizante que pode salvar a vida de crianças e dos adultos que com elas convivem. Caso se espelhasse na ditadura militar do Brasil em vez de informar-se pelas redes antissociais, o presidente perceberia que, diferente de cidadãos de países desenvolvidos, os brasilianos confiam em vacinas. Ao negar vacina para crianças, Bolsonaro perde tempo e votos.

Num outro desatino, perdeu a oportunidade de mostrar aos nordestinos, gravemente afetados pelas chuvas de verão, que eles também são brasileiros e poderão contar com o Governo Federal para reconstruir suas vidas destruídas pelas enchentes. Preferiu produzir uma imagem de autosabotagem ao ser visto dançando funk e conduzindo um jet ski, ironicamente sobre águas tranquilas distantes dos aluviões que assolam o Nordeste.

Oposicionista amigo

Não é do feitio de Bolsonaro ouvir os que o contrariam ou quem não seja seu filho, tampouco estudar a história de líderes bem-sucedidos. Se fosse, recordaria como seu principal adversário venceu duas eleições, elegeu outras duas vezes uma política desajeitada e comandou, da cadeia, uma chapa encabeçada por um sujeito sem carisma.

Em 2010, de viagem marcada para o Canadá, onde participaria de reunião do G-20, o presidente Lula cancelou a agenda internacional para acompanhar in loco as enchentes que inundavam estados nordestinos. Entre os governadores que mereceram sua atenção, Teotônio Vilela Filho (PSDB), de Alagoas, originalmente oposicionista. Dois anos depois, quando Lula estava acossado pelo escândalo do Mensalão, Téo Vilela viajou até São Paulo para solidarizar-se com o então ex-presidente da República. O tucano era “grato à postura republicana, solidária e parceira” do ex-mandatário.

Se prosseguir sabotando sua própria reeleição, Bolsonaro facilita o caminho da volta de Lula ao Palácio do Planalto. Pode ser coisa de apedeuta, incapaz de aprender com erros e acertos, seus e de outrem. Ou, numa hipótese sombria, diante da proximidade da derrota eleitoral, prepara-se para sabotar não a eleição, mas a democracia brasiliana.

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PERDE E GANHA

Mariana Muniz e Patrik Camporez, O GLOBO

PSL foi o partido que mais perdeu filiados em 2021; PT, o que mais ganhou

BRASÍLIA — Os partidos brasileiros perderam, juntos, mais de meio milhão de filiados no último ano. Entre dezembro de 2020 e novembro de 2021, o número de cidadãos formalmente vinculados a alguma das 36 legendas registradas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) caiu de 16.654.826 para 16.090.180.

A sigla que mais sofreu com a debandada de adeptos, de acordo com os dados oficiais da Justiça Eleitoral, foi o PSL, que até 2019 abrigava o presidente Jair Bolsonaro. Nesse período, seu contingente de filiados caiu de 462.861 para 76.776. Já o PT, do ex-presidente Lula, foi o partido que mais ganhou membros: 62.693 mil ao longo de um ano.

Leia: Chapa Lula-Alckmin reaviva debate sobre candidatura do PSOL à Presidência

O MDB, agremiação com maior número de correligionários do Brasil, também amargou um encolhimento de seus quadros. Os registros oficiais apontam uma redução de 2.166.048 filiados em 2020 para 2.128.305 em 2021 — uma queda de 37.743 inscritos. Ainda assim, a legenda contabiliza 13,227% do total de eleitores filiados hoje.

Leia: Aras dá sinais de que nem derrota por vaga no STF levará a postura mais ativa sobre Bolsonaro

As siglas que integram o chamado centrão — consideradas menos ideológicas e que formam a base de apoio do governo — também contabilizaram saídas, à exceção do Republicanos, que ganhou filiados. O PL, por exemplo, partido presidido pelo ex-deputado Valdemar da Costa Neto e que neste ano passou a abrigar Bolsonaro, viu seu contingente cair de 761.640 para 774.205 pessoas. O PP, liderado pelo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, perdeu 26.450 nomes, assim como o PTB, do ex-deputado federal Roberto Jefferson, que tem menos 26.558 inscritos em comparação aos dados do ano passado.

Falha nossa

Na direção contrária, o PT saltou de 1.544.532 eleitores filiados em 2020 para 1.607.225 no ano seguinte. A presidente da sigla, a deputada federal Gleisi Hoffmann (PT-PR), atribui o crescimento de 4,059% a um esforço para aumentar o número de inscritos e ao momento político pelo qual passa o país, a pouco menos de um ano da eleição presidencial, marcada para outubro de 2022.

— Lançamos este ano uma campanha de filiações ao PT que tem sido bem-sucedida, principalmente pelo resgate dos direitos políticos do presidente Lula. A expectativa em torno de sua candidatura está estimulando a participação política, especialmente da juventude e do povo mais pobre, que vê nele a esperança de mudar o país — afirmou ao GLOBO.

Leia: Divergências entre partidos travam criação de federação das esquerdas

A marca alcançada pelos petistas, segundo divulgou o próprio partido, representa um recorde no número de filiados. Hoje, de acordo com os números do TSE, a legenda detém 9,989% de todos os brasileiros vinculados a alguma sigla do país.

Outra legendas que nesse período registraram crescimentos — porém mais tímidos — foram o Psol, PTC e Avante, além do Republicanos.

Ao analisar o movimento de perda de filiados nos partidos como um todo, o vice-presidente do PSL, Antonio Rueda, disse entender que essas reduções fazem parte do fluxo de migração de políticos entre as legendas.

— Acho que é natural, seguindo um movimento dos próprios candidatos: quando os deputados saem levam seus filiados — observou.

Leia: Rui Costa critica ausência de Bolsonaro na Bahia: ‘governar é cuidar de gente’

No caso específico do partido que ele comanda, Rueda alega que não houve uma debandada, mas um equívoco. Ele atribui a queda drástica a um erro no preenchimento dos dados por parte da própria legenda.

— Em 2019, houve uma filiação em massa na ocasião da eleição de Bolsonaro. Mas a atual queda não significa que houve uma desfiliação em massa. Trata-se de um erro material, que será corrigido em abril — disse Rueda, argumentando que a queda é menor do que disponível na base de dados da Justiça Eleitoral.

O GLOBO aguardou por dois dias que o PSL enviasse o número de desfiliados que considera correto, mas não os recebeu até o fechamento desta reportagem.

O TSE afirma que o preenchimento desses dados é de responsabilidade de cada legenda. De acordo com a lei dos partidos políticos, as siglas devem informar a lista com os dados dos filiados sempre na segunda semana dos meses de abril e outubro. De fato, por vezes, os partidos apresentam dificuldades para fazer a atualização da relação de filiados, mas sobretudo para retirar nomes de pessoas que morreram ou se desligaram da legenda naquele período. O GLOBO apurou que, embora algumas imprecisões sejam frequentes, dificilmente há grandes discrepâncias entre as informações reais e as disponíveis no TSE.

Descrédito na política

Para a ex-desembargadora eleitoral e integrante da Associação Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) Jamile Coelho, a perda de filiados e o esvaziamento dos partidos são um termômetro preciso do crescente descrédito que atinge a classe política há tempos.

— As siglas têm sido cada vez mais vistas como desnecessárias no cenário político e nas ações que atingem diretamente o cidadão. A flexibilização da fidelidade partidária, por exemplo, corrobora essa situação, assim como a crescente onda para se tentar legalizar a candidatura avulsa, o que hoje não é permitido — apontou.

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GOLPISMO DERROTADO

Editorial Folha de S.Paulo

Encerra-se um ano particularmente tumultuoso na política nacional, sobretudo pelo comportamento anômalo do presidente da República. Apesar dos percalços e da dissipação de energia cívica, a arquitetura da democracia brasileira resistiu ao golpismo aloprado.

O apogeu da cavalgada autoritária aconteceu nas manifestações do Dia da Independência, mas ela foi desmoralizada em menos de 48 horas por ausência de materialidade.

Jair Bolsonaro ameaçou o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, com algo que nem soube enunciar —porque não há nada que o chefe de Estado possa fazer contra a autonomia de um Poder sob a Constituição de 1988.

Atiçou a massa de fanáticos com mentiras sobre a urna eletrônica e com bravatas sobre sair morto do Palácio do Planalto. As eleições de 2022 ocorrerão normalmente sob a égide das urnas eletrônicas, e Bolsonaro sairá da sede do governo derrotado, não martirizado, caso falhe a tentativa de reeleger-se, como hoje apontam as pesquisas.

Ao final da epifania restou uma chusma de caminhoneiros dispostos a sabotar os canais de abastecimento de 214 milhões de brasileiros. Até Bolsonaro percebeu que deixá-los agir seria abrir caminho para a anarquia e o impeachment.

Assim terminou o devaneio autocrático que só a lunáticos pareceu fazer sentido. Restou a face real de Bolsonaro, a de um presidente que não sabe e não quer governar.

A súbita elevação de um deputado patrono de corporativismos, insolente e inepto ao posto de dirigente político máximo dá-se bem a ver nas imagens finais de 2021. Enquanto uma catástrofe humanitária ocorria no sul da Bahia, castigado por inundações e deslizamentos em decorrência de fortíssimas tempestades, o presidente passeava de jet ski em Santa Catarina.

Se gasta seu tempo com assuntos de interesse geral, é para obstruir, com alegações de profunda ignorância científica, a urgentíssima vacinação de crianças contra a Covid, num quadro de nova escalada mundial das infecções.

A aventura de Jair Bolsonaro, que felizmente parece encaminhar-se para seu ocaso, deixa evidenciada a fortaleza dos pilares da democracia brasileira diante do teste mais desafiador sob esta Constituição.

Esse trauma político também deveria incentivar iniciativas reformistas para evitar que áreas cruciais da política pública, como saúde, educação, proteção aos vulneráveis e ao ambiente, fiquem à mercê de piromaníacos eventuais.

Do mesmo modo que o país soube proteger a gestão da moeda de apetites imediatistas de governantes, há de conseguir blindar o futuro de suas crianças e o bem-estar de sua população dos saqueadores e dos que bailam com a morte.

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AS REDES SOCIAIS E O FUTURO DA DEMOCRACIA

Editorial O Estado de S.Paulo

Boa parte das angústias das pessoas que se preocupam com o futuro da democracia advém do impacto dos espaços digitais sobre o tecido social e a capacidade de deliberação dos cidadãos. A invasão do Capitólio nos Estados Unidos tornou-se um ícone dos efeitos deletérios da desinformação e dos discursos tóxicos, intensificando a apreensão sobre o papel das redes sociais.

Neste contexto, o Pew Research Center inquiriu mais de 800 inovadores, executivos, gestores e pesquisadores do campo da tecnologia a propósito do futuro dos espaços digitais e seu papel na democracia. A grande maioria (70%) acredita que a revolução digital tem em igual medida aspectos positivos e negativos; 18% veem uma predominância dos negativos; e 10% dos positivos. Perguntados se, num arco de 15 anos, os espaços digitais serão ou não utilizados de maneira que servirão significativamente ao bem comum, 61% afirmaram que sim e 39%, que não.

Os pessimistas apontam que as fragilidades e perversidades humanas tendem a se amplificar com as novas tecnologias. Humanos são autocentrados e têm a visão curta; logo, são fáceis de manipular. Muitos temem que as instituições humanas não sejam capazes de acompanhar o ritmo e a complexidade das comunicações digitais. Alguns preveem mesmo uma espiral distópica com os avanços na Inteligência Artificial, hipervigilância, a “dataficação” de cada aspecto da vida ou engenharias comportamentais abastecidas pelo autoritarismo e magnificadas pela desinformação.

É um dado que, para maximizar os lucros, os atuais algoritmos das mídias sociais são programados para acelerar o engajamento dos usuários. O problema é que, mais ou menos deliberadamente, eles acabam favorecendo meios de engajamento eficazes, mas socialmente destrutivos, como o extremismo, o ódio e a mentira.

Diante disso, os otimistas ancoram suas melhores esperanças no redesenho dos algoritmos a fim de qualificar a interação dos indivíduos e robustecer o debate democrático. Há um anseio difuso por uma regulação que promova o discurso cívico e reprima a desinformação. Mas ele se depara com a questão crucial: quem seria responsável pelos critérios e sua execução: os governos? As próprias mídias? Os usuários?

Para muitos, o Estado, por meio de uma combinação de regulação e pressões brandas, teria o papel de induzir as empresas de tecnologia a adotar comportamentos mais éticos. Alguns apontam que, como em todos os avanços anteriores na comunicação humana, após um primeiro momento disruptivo, o letramento digital e a familiaridade com os aspectos mais tenebrosos da tecnologia trarão naturalmente melhoras.

Entre as propostas que têm sido aventadas para redesenhar o ambiente digital estão a introdução de mais competição no ecossistema de informações por meio de softwares que permitam às pessoas escolher algoritmos que priorizem conteúdos conforme seus padrões editoriais; sistemas eletivos online que favoreçam consensos ao invés da polarização entre grupos partidários; uma Declaração dos Direitos da Internet que permita uma soberania individual, garantindo o anonimato a cada pessoa, mas erradicando robôs; ou sistemas de comunicação construtivos que reduzam a voltagem do ódio e concilie divisões.

É possível apontar fragilidades e riscos em cada uma dessas estratégias. Possivelmente, o melhor caminho será uma combinação de todas – de maneira que as virtudes de umas compensem os vícios de outras –, orientada pelo princípio da subsidiariedade, ou seja, a primazia da regulação sobre o conteúdo caberia ao usuário e, subsidiariamente, às outras autoridades, das menos às mais centralizadas: as próprias mídias, os governos nacionais e, por fim, uma governança global.

O que parece incontroverso é que, tal como o espaço público físico, o virtual precisa de alguma regulação. É a única alternativa à anarquia. E se essa regulação não for implementada pela coletividade conforme os princípios e métodos democráticos, a história sugere que inevitavelmente o será conforme as ambições autocráticas ou plutocráticas de uns poucos.

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LAVA JATO, 2014-2021

Editorial Folha de S.Paulo

A frase do ex-senador Romero Jucá (MDB-RR) sobre fazer um pacto para "estancar a sangria" da Operação Lava Jato, de 2016, rende até hoje má fama ao Legislativo.

Jucá, afinal, era o protótipo do parlamentar bem instalado nos esquemas de poder em governos de qualquer matiz ideológico. A sangria foi efetivamente estancada, e a Lava Jato, se não está morta, encontra-se em coma profundo.

O Legislativo, entretanto, não é o principal responsável por isso, ainda que parlamentares possam ter participado de articulações contra a operação, iniciada em 2014.

No plano objetivo dos projetos aprovados e rejeitados, a atuação do Congresso nessa seara pode ser descrita como bastante adequada. Os parlamentares modernizaram a legislação sobre abuso de autoridade, o que era uma necessidade real e antiga, e derrubaram os excessos da proposta anticrime do ex-ministro e ex-juiz Sergio Moro.

O principal responsável pela cauterização generalizada, por bons e maus motivos, é o Supremo Tribunal Federal —com a contribuição espúria de Jair Bolsonaro, que tratou de proteger os seus e nomeou um procurador-geral amigável.

Não há como afirmar que a reação do STF tenha sido imotivada. As conversas vazadas entre Moro e procuradores mostraram abusos que necessitavam de respostas jurídicas. Exposta a parcialidade do magistrado, justificou-se a anulação das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A corte, porém, procedeu a essa correção de forma atabalhoada. Curiosamente, ministros que apoiavam com veemência a Lava Jato acabaram contribuindo para seu enfraquecimento.

Foi o caso de Edson Fachin, que, na tentativa de evitar que a 2ª Turma declarasse a suspeição de Moro, decretou que os processos de Lula não deveriam ter corrido na 13ª Vara Federal de Curitiba. No entanto a discussão sobre a parcialidade não foi deixada de lado.

A suspeição atingiria apenas os processos de Lula e talvez de mais alguns poucos réus. Já a incompetência da 13ª Vara abriu uma avenida para anulações, que advogados souberam aproveitar. Hoje, réus que se mantiveram em silêncio estão em situação melhor do que a dos que optaram por colaborar com a Justiça.

A Lava Jato, em que pese ter cometido seu quinhão de abusos, desbaratou grandes esquemas de corrupção, recuperando bilhões de reais para os cofres públicos e condenando políticos e empresários que sempre operaram sob o manto da impunidade. Seu legado merecia tratamento melhor.

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GEOPOLÍTICA INSTITUCIONAL

Ricardo Lewandowski, Folha de S.Paulo

Ricardo Lewandowski  -  Ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

A partir do Congresso de Viena (1814-15), presidido pelo habilidoso estadista austríaco Klemens von Metternich, no qual foram redesenhadas as fronteiras da Europa após a derrota de Napoleão Bonaparte, bem como lançadas as bases do direito internacional moderno, firmou-se o entendimento de que as relações diplomáticas entre as nações devem constituir uma política de Estado, não de governo, dado o seu impacto intergeracional.

Nesse contexto, surgiu uma nova disciplina acadêmica voltada ao estudo do potencial estratégico dos distintos países, tendo em conta os respectivos atributos físicos e demográficos. Um de seus primeiros cultores foi o geógrafo alemão Friedrich Ratzel (1844-1904), que formulou a teoria do Lebensraum, segundo a qual a cada povo corresponderia um "espaço vital", indispensável para a satisfação de suas necessidades básicas, mais tarde empregada para justificar a expansão territorial da Alemanha nazista.

Mas foi o cientista político sueco Rudolf Kjellén (1864-1922), seguidor das ideias de Ratzel, quem batizou essa disciplina de geopolítica, com a qual pretendeu estabelecer uma relação entre o poder estatal e suas condicionantes geográficas.

Tal abordagem foi retomada durante a Guerra Fria, deflagrada depois do término da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), inspirando o planejamento estratégico das duas potências então dominantes, os Estados Unidos e a União Soviética, que acabou resultando na divisão do mundo em dois blocos antagônicos, permanentemente preparados para um enfrentamento bélico, convencional ou nuclear.

O Brasil, não obstante integrasse o bloco antissoviético, procurou cultivar um pensamento geopolítico próprio, cujos principais expoentes foram os militares Mário Travassos, Golbery do Couto e Silva e Carlos de Meira Mattos. A sua sistematização, contudo, somente ocorreu com a criação da Escola Superior de Guerra (1949), responsável pela elaboração de uma doutrina de segurança nacional, supostamente autóctone, mas fortemente atrelada aos interesses estadunidenses, que serviu de respaldo ideológico às ações governamentais durante o regime militar (1964-1985).

O fim da União Soviética, marcado pela queda do Muro de Berlim (1989), e o surgimento de novos atores no plano internacional, inclusive não estatais, deram origem a um mundo multipolar, suscitando outras preocupações estratégicas —além daquelas de cunho estritamente castrense, com destaque para a preservação dos recursos naturais, o combate às emergências sanitárias, a defesa contra catástrofes climáticas, a prevenção de crises econômicas e a proteção do ambiente cibernético.

Os elaboradores da nossa atual Constituição, quiçá antevendo o surgimento desses e de outros desafios igualmente complexos, decidiram perenizar, logo no início de seu texto, os princípios regentes da política externa brasileira, a saber: independência nacional, prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não intervenção, igualdade entre os Estados, defesa da paz, solução pacífica dos conflitos, repúdio ao racismo e ao terrorismo e concessão de asilo político. Explicitaram, ainda, que ela deverá "buscar a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina".

Como se vê, os constituintes não deixaram nenhuma margem para que os chefes de governo, eleitos a cada quatro anos, entretenham idiossincrasias pessoais ou defendam pautas extravagantes na condução das relações exteriores do país, sob pena de incorrerem em flagrante inconstitucionalidade.

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NO ANO QUE VEM A GENTE NÃO MORRE MAIS

Luiz Carlos Azedo, Nas Entrelinhas, Correio Braziliense

A música Sujeito de sorte, de Belchior, foi um dos hits de 2021, na voz de Emicida, Maju e Pablo Vittar, desde que a velha canção do álbum Alucinação foi sampleada pelo rapper paulista no álbum AmarElo, ganhador do Grammy Latino. A gravação ao vivo, no Teatro Municipal de São Paulo, lotado de moradores da periferia de São Paulo, deu origem a um excelente documentário, uma boa pedida para quem ainda não viu e não quer “olhar pra cima” (ou já olhou) nessa virada de ano. Emicida se destaca não apenas por sua atuação artística, mas também por suas ideias generosas, que trazem para o centro do debate a realidade das periferias urbanas e puxam os fios de história que ligam o hip hop brasileiro ao nosso samba tradicional.

O sucesso da regravação de Sujeito de sorte tem a ver com os tempos de cólera política e de pandemia que estamos vivendo: “Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte/ Porque apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte/ E tenho comigo pensado/ Deus é brasileiro e anda do meu lado/ E assim já não posso sofrer no ano passado/ Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro/ Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro/Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro”.

Esses versos da canção de Belchior são atribuídos ao mitológico cantador Zé Limeira (1886-1954), um repentista analfabeto, nascido em Teixeira, na Paraíba, imbatível nos seus improvisos surrealistas, segundo o jornalista Orlando Tejo, seu conterrâneo, autor do livro “Zé Limeira – O Poeta do Absurdo”, publicado em 1973. O repentista dominava a rima e a métrica, mas não dava a mínima para a oração, o que era considerado um insulto pelos cantadores de sua época. Entretanto, fazia muito sucesso de público, perambulando pelos sertões nordestinos, em jornadas de até 60 quilômetros a pé, num dia, para participar de desafios com outros cantadores famosos, como o Cego Aderaldo.

Após o sucesso de Belchior, Tejo pleiteou a autoria dos versos, o que gera grandes controvérsias. Não havia documentação sobre a obra de Zé Limeira, cuja vida foi romanceada por Tejo, um defensor da métrica, com suposto propósito de provocar os poetas concretistas. Não importa, a distopia sertaneja de Zé Limeira influenciou outros artistas, como Belchior e Zé Ramalho, e tem tudo a ver com o momento que o país está vivendo, inclusive nessa passagem de ano, na qual uma epidemia de Influenza (H3N2) tomou de assalto as nossas cidades, lotando as emergências do SUS, e a nova variante da Covid-19, a sul-africana Ômicro está chegando com tudo, sem que o país esteja devidamente preparado para ela.

Pensamento positivo

Três doses no braço da maioria dos velhinhos e outros grupos de risco e uma variante aparentemente menos letal, embora altamente transmissível, não justificam as medidas adotadas por Marcelo Queiroga, o falso ministro da Saúde, e Milton Ribeiro, o da (des)Educação, contra a vacinação de crianças e a obrigatoriedade de apresentação do certificado de vacinação nas escolas, respectivamente. São dois negacionistas alinhados com o presidente Jair Bolsonaro, que novamente erra no diagnóstico da pandemia (talvez pense: agora sim, a Ômicron é uma “gripezinha), e aposta outra vez na “imunização de rebanho” para não atrapalhar a economia.

Essa política nos levou a 618 mil mortos até agora. A nova onda da pandemia precisa ser tratada sem alarmismo, mas com responsabilidade, ou seja, com medidas adequadas: vacinação em massa, uso generalizado de máscaras, asseio permanente das mãos e distanciamento social. Não é fácil, numa época de confraternizações, como foi Natal e será o ano-novo, puxar o freio de mão nas comemorações coletivas. Mas a realidade já está mostrando que é preciso cuidado redobrado, ainda mais quando o próprio governo federal sabota a saúde pública e expõe a população aos seus desatinos.

Entretanto, eis a outra face do Brasil, aquela que vai à luta por dias melhores, que adota os devidos cuidados e resiste nos pequenos negócios, nas atividades agrícolas, industriais e de serviços, na cultura e nas atividades essenciais, entre as quais as da saúde, da limpeza urbana, da segurança pública e tantas outras, sem as quais seria impossível os encontros familiares na passagem de ano. Esqueçam o presidente Jair Bolsonaro e seus passeios de jet sky, oremos por milhares de pessoas que chapinham na lama para tentar salvar o que lhes restam de bens, após as enchentes na Bahia, ou buscam socorro médico nas emergências do SUS em todo o país. Como o sertanejo Zé Limeira, vamos pensar positivamente em 2021: ano que vem a gente não morre mais.

Feliz ano-novo!

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BRASIL, PAÍS QUE PULA AS 7 ONDINHAS EM HOMENAGEM A IEMANJÁ E ODEIA AS RELIGIÕES AFRO

Pedro Borges, Alma Preta

Quem passa a virada de ano no litoral e escolhe a praia para celebrar a passagem com amigos e familiares costuma ter um ritual: ir para a beira do mar pular 7 ondas e pedir um desejo para cada uma delas.

O ato, uma homenagem à orixá do mar e das águas, Iemanjá, trata-se de uma cerimônia mais próxima ao culto da Umbanda, uma das religiões afro-brasileiras. O ritual é uma forma de desejar melhores momentos para o ano que se aproxima e deixar para o passado os problemas do ciclo que se encerra.

Felipe Brito, Ebomi do Ilê Maroketu Axé Oxum (SP) e diretor geral da Ocupação Cultural Jeholu, recorda que o número 7 também tem uma relação direta com diversas tradições das religiões afro.

“Pensando na simbologia do número 7, que na Umbanda tem muito a ver com o universo das entidades chamadas de Exu, os guardiões, como 7 Encruzilhadas, 7 Pombagiras, 7 Saias, 7 Caldeiras, entre outras entidades, que cuidam dos caminhos e apresentam novas possibilidades e renovação”, explica.

O nome Iemanjá tem origem Iorubá, que é a soma das palavras yèyé, omo e ejá, que juntas significam a mãe cujos filhos são peixes. Iemanjá, a senhora das águas, dos rios e dos mares, é uma figura religiosa consagrada no Brasil, em especial por conta da devoção dos pescadores com essa divindade, que pediam para ela uma boa pesca. 

A orixá é também responsável por trazer calma e tranquilidade ao Ori, que nas religiões de matriz africana é o nome utilizado para se referir à cabeça de cada sujeito. 

“Iemanjá é aquela que cuida do Ori, aquela que acalma as cabeças que estão com alguma perturbação, que estão sofrendo de algum mal mental, emocional. Ela é sempre vista como a mãe de todos os orixás, como a grande mãe”, conta Felipe Brito.

Racismo Religioso

Questionado sobre o atual momento do país, de fortalecimento do fundamentalismo religioso evangélico e de ódio às religiões de matriz africana, Felipe Brito fez uma ressalva. “A questão do racismo em relação às comunidades de terreiro é um processo histórico e contínuo, que toma formas diferentes em cada época”. 

Ele aponta, contudo, a existência de um momento conturbado no país, em especial no Rio de Janeiro, onde há um cenário de invasão dos terreiros.

“São muitas as violações de direito às comunidades de terreiro no Brasil. Com essa nova categoria que foi criada, se é que assim pode ser chamado, dos traficantes de jesus, os traficantes evangélicos. é um fenômeno brasileiro, que usa de um discurso de ódio e da força do crime organizado para expulsar os terreiros e as comunidades de matriz africana das comunidades fluminenses”.

De acordo com dados do Disque 100 apurados pelo Gênero e Número e pelo DataLabe, 59% de todos os casos de violência religiosa registrados entre 2011 e junho de 2018 eram destinadas às religiões de matriz africana, caso da umbanda e do candomblé. O Disque 100 é um canal, criado em 2011 pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, para receber denúncias de violação de direitos humanos no país.

Diante de números expressivos de ódio contra as religiões de matriz africana, Felipe Brito acredita que as pessoas aceitam pular as 7 ondas, uma tradição ligada à Umbanda, por entenderem figuras como Iemanjá como uma pessoa branca. Para ele, símbolos religiosos da comunidade negra foram “embranquecidos” pela cultura nacional.

“Quando procuramos entender como que em um país extremamente racista como o Brasil, essas pessoas conseguem ao final do ano pular 7 ondas, sendo que grande parcela da população repudia qualquer manifestação religiosa que não seja cristã, precisamos entender a partir um único aspecto: Iemanjá é branca na cabeça das pessoas”, afirma. 

Para ele, em um cenário de ódio contra as religiões afro, o ritual de pular as 7 ondas não é uma referência à ancestralidade negra. “O pular 7 ondas não é um ato para a Iemanjá do povo Iorubá, africana, nigeriana, negra. Você está pulando para aquela Iemanjá idealizada branca do cabelo preto, escorrido, liso até a cintura, com o corpo fitness. Uma Iemanjá extremamente padronizada e eurocêntrica”, completa.

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FELIZ 2022 !

Caros leitores, amigos, mais um ano termina. 2021 foi um ano de muitas conquistas e recordes para o blog Sou Chocolate e Não Desisto, resultado de muito trabalho nestes 16 anos de existência. 

A cada ano, ganhamos mais repercussão na internet, entre blogs e sites que reproduzem nossas postagens. Nas redes sociais como Facebook, Twitter e Instagram, o blog tem se destacado.

A todos leitores, amigos, muito obrigado! Desejo um Ano Novo de realizações, saúde, muito amor, paz e esperança. Feliz 2022!. Abraço, Valerio Sobral.

Em 2022 vem novidades aí nos 17 anos do Sou Chocolate e Não Desisto.

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quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

UM CASO PARA NÃO ESQUECER

Cesar Asfor Rocha, Revista Consultor Jurídico

A investigação contra Luiz Carlos Cancellier: um caso para não esquecer

O caso do então reitor de Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, investigado e preso antes mesmo de se iniciar qualquer julgamento pela Justiça, foi recentemente revisitado com lucidez e precisão por Fernando Schuler, em sua coluna na revista Veja. As atrocidades cometidas restaram ainda mais destacadas quando postas em contraste com a ambiência de fraternidade e harmonia que os espíritos desarmados vivenciam no período natalino.

Acusado de participar de um cogitado e infundado desvio de R$ 80 milhões na instituição que dirigia, o reitor sofreu severas humilhações, foi acorrentado, submetido a revista íntima, ficou preso por 30 dias em cela de segurança máxima e foi proibido de botar os pés na universidade. Vítima do Estado que o devia proteger, Cancellier, em extremado desespero, acabou se jogando do sétimo andar de um shopping, em 2017.

Toda essa tragédia precisa ser permanentemente relembrada por oferecer uma valiosa e triste oportunidade de refletirmos sobre o desespero de um inocente que veio a pôr cobro à sua própria vida, depois de sofrer a desgraça de ter a sua honra aguda e injustamente destroçada, revelando o que pode acontecer a uma pessoa quando a democracia e seus freios deixam de existir para ela.

A espetacularização da investigação, nesses alienados tempos do devido processo legal midiático, enseja o surgimento desses juristas de arrebiques que, movidos por uma loucura furiosa, expõem o investigado à mídia e à execração pública, transformando-o em réu antes da abertura do devido processo, antecipando o julgamento e punindo e condenando com frieza e crueldade típicas dos regimes de exceção. Sob o pretexto de fazer justiça, fazem justiçamento, ou justiça com as próprias mãos. Desconstroem um dos principais pilares da democracia, que é a garantia dos direitos individuais. Como a observância das fases do processo legal foi desrespeitada, prevaleceu uma equivocada visão particular e subjetiva de um grupo de agentes públicos.

É possível dizer que recaiu sobre o reitor — sendo ele uma autoridade em um país onde é grande a percepção de impunidade — um tipo de vingança não declarada, não assumida, travestida de "rigorosa defesa da lei, doa a quem doer", como se o cumprimento da lei fosse um gesto de heroísmo. O público — entre aturdido, uns, e anestesiados, outros — postado e prostrado diante da TV, é incapaz de perceber que a tragédia da morte é capaz de mostrar o tamanho do equívoco que acontece, inevitavelmente, quando a democracia é trocada por uma covarde valentia, quando o processo legal é substituído por uma cega paixão.

A justiça tardou e falhou para Cancellier, que perdeu seus bens mais valiosos, a reputação em vida e a própria vida, por ele mesmo desfeita, carregando ademais, para os que acreditam, um carma acrescido a ser purgado em vidas que estão por vir. Essa terrível injustiça pesa ainda hoje sobre a família do reitor: o dano é irreparável e, como bem frisou Schuler, o Estado deve aos familiares do reitor o reconhecimento público do erro e a conclusão do caso para que a dúvida — outra punição despótica, de imensa crueldade — deixe de existir e eles possam acomodar a dor da perda na normalidade dos dias.

Ao contrário do justiçamento, o remédio para a impunidade só pode ser ministrado pelos poderes da República. Cabe a eles e somente a eles debaterem em seus plenários e com a sociedade um conjunto de medidas que deem à justiça mais celeridade e efetividade. É o que exige a democracia! Quanto mais o assunto for procrastinado, mais brasileiros entrarão no corredor polonês dos justiceiros de plantão enquanto outros continuarão escapando sorrateiramente pela porta dos fundos.

É preciso estar atento para sempre perceber que o mal que tirou a vida do reitor não foi debelado e ainda circula entre nós como um vírus letal em um ambiente tenebroso.

Cesar Asfor Rocha é advogado, jurista, escritor e compositor. Foi ministro (1992/2010) e presidente (2008/2010) do Superior Tribunal de Justiça, ministro e corregedor do Tribunal Superior Eleitoral (2005/2007) e corregedor do Conselho Nacional de Justiça (2007/2008). É membro vitalício da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

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"BOLSONARO DEMONSTRA DESPREZO À VIDA HUMANA"

Ana Luiza Albuquerque e João Pedro Pitombo, Folha de S. Paulo

Completando sete anos à frente do governo da Bahia, o governador Rui Costa (PT) diz que o enfrentamento às chuvas que assolam o estado e já causaram ao menos 24 mortes é o maior desafio de sua gestão. As enchentes destruíram estradas, inutilizaram estoques de medicamentos e vacinas e deixaram mais de 90 mil pessoas desabrigadas ou desalojadas.

Quatro ministros do governo federal foram enviados à região, mas Jair Bolsonaro (PL), de férias em Santa Catarina, não esteve por lá. Questionado pela Folha se aguardava a visita do presidente, Costa respondeu que não tinha essa expectativa.

“O presidente durante toda a sua gestão demonstrava desprezo em relação à vida humana (…) Ele não demonstra nenhum sentimento em relação à dor do próximo”, afirmou o governador.

Em permanente trânsito na última semana para avaliar os estragos das chuvas, Costa atendeu chamada da reportagem na tarde desta quarta-feira (29), quando estava prestes a embarcar em um helicóptero de volta a Salvador. Ele estima que os recursos necessários para recuperar o estado cheguem a R$ 1,5 bilhão e espera que o governo federal possa ajudar com valores significativos.

Havia algo que o governo pudesse ter feito para mitigar as consequências dos temporais? Como o sr. avalia a gestão estadual nesse desastre? Nós temos uma estrutura e respondemos… Lógico que com o apoio de outros estados. Nenhum estado sozinho tem a capacidade de responder a uma demanda dessa. Aliás, essa é uma das coisas que falta ser estruturada no Brasil. Outros países do mundo têm uma estrutura regional para o enfrentamento de grandes desastres, nós não. Inclusive começamos a conversar no Consórcio do Nordeste para ter uma aeronave, por exemplo, mais sofisticada de combate a incêndios, de resgate de pessoas.

O governo federal não tem nenhuma estrutura de ajuda aos estados para desastres. Os helicópteros do Exército, da Marinha, são completamente inadequados para esse tipo de coisa. São helicópteros para a guerra, não para sobrevoar áreas urbanas. Um helicóptero daquele tamanho, quando baixa a uma altura mais reduzida, arranca as telhas, é um desastre.

O que o sr. tem achado da resposta do presidente a essa tragédia? Ele tem sido muito criticado por estar de férias em Santa Catarina e não ter visitado o estado. O sr. esperava a presença dele? O presidente durante toda a sua gestão demonstrava desprezo em relação à vida humana. Se você me perguntar: “O senhor esperava ele aí?”, vou dizer que não. Durante três anos, em nenhum momento, em nenhum outro desastre, na pandemia, ou em qualquer situação que significasse prestar solidariedade à vida humana ele fez qualquer gesto. É um presidente que não demonstra nenhum sentimento em relação à dor do próximo.

O que o governo federal poderia ter feito, mas não fez? O mínimo que qualquer presidente pode fazer é dirigir uma palavra de conforto ao seu povo num momento de sofrimento. Tem uma frase que diz que quando você não pode fazer nada, pelo menos transmita uma palavra de conforto. Nem isso ele se preocupa em fazer. Só tenho que lamentar. Tenho evitado falar disso porque num momento de dor as pessoas não querem ver debate político.

Alguns ministros estiveram no estado. Como foi essa conversa? Eu fiz um apelo para que eles tenham um olhar diferenciado para esse momento que a Bahia vive. Espero que eles tenham esse olhar e tratem, se não o estado, pelo menos o povo baiano de uma forma respeitosa e digna.

O sr. já disse que R$ 80 milhões não são suficientes para recuperar as estradas federais. Os ministros deram alguma sinalização de mais recursos? Sinalização e predisposição houve, de ajudar na reconstrução das casas, de ajudar os municípios na reconstrução da infraestrutura. Estamos na expectativa de que esses anúncios, ou de que esse sinal de boa vontade, venham a acontecer.

Se as estradas não forem recuperadas rapidamente, qual deve ser o impacto na economia estadual? É um custo indireto. O caminhoneiro vai procurando outros caminhos para poder chegar. Em geral caminhos mais longos, que gastam mais combustível, aumentando o custo do frete e reduzindo a margem para o produtor.​

Esse foi o maior desafio do seu governo? Sem dúvida. Mas graças a Deus o principal a gente conseguiu, que foi evitar a tragédia de vidas humanas perdidas. O prejuízo material, mesmo que leve mais tempo, você recupera. A vida humana não.

​O sr. esteve em São Paulo no jantar com o ex-presidente Lula e com o ex-governador Geraldo Alckmin. Como o sr. avalia essa possível aliança? O presidente eleito terá um desafio gigantesco. São seis anos de instabilidade política, jurídica e institucional que corroeram a credibilidade do Brasil. É preciso passar a ideia de que o país vai estar unido, que vai ter uma grande concertação a favor da reconstrução do Brasil, e não há como passar essa ideia se a preocupação for apenas ganhar a eleição.

Eu acho que, desde já, nós temos que nos preocupar em ganhar a eleição, fazer esse país crescer e voltar a ser inclusivo. Isso é uma tarefa muito grande para ser tocada por um só partido. É preciso promover a união dos brasileiros que querem reconstruir nosso país. Por isso eu acho que o [ex] presidente [Lula] está correto em buscar esta aliança. Alckmin foi governador de São Paulo quatro vezes. É uma pessoa absolutamente experiente.

Não acredita que esta união vai gerar ruídos? Se formos restringir nossas alianças a quem nunca trocou críticas entre si, não teremos união de ninguém. Poucos não trocaram críticas entre si nos últimos 20 anos no Brasil. A situação do país requer responsabilidade, requer descer a vaidade de cada partido, de cada pessoa, para colocar o Brasil em primeiro lugar.

Então, eu vejo positivamente essa união. É uma excelente sinalização de que nós queremos estabilidade e uma recuperação do Brasil de longo prazo. Não estamos preocupados com projetos individuais ou partidários e sim com a reconstrução do país.

Isso passa necessariamente por uma aproximação de setores da direita? Passa também por curar as feridas abertas nos últimos anos? Mais importante do que rótulos ou estigmas, temos que discutir conteúdo. O que faremos do Brasil? Quais são os projetos que nós adotaremos?

Acho que essa aliança tem pouca base sólida com quem caminhou com o Bolsonaro na sua integralidade, quem apoiou Bolsonaro, quem esteve e está até o dia de hoje com ele. Mas podemos conversar com aqueles que têm demonstrado uma insatisfação desde o início do governo Bolsonaro. Acho que esse é o limite. Até para também não ser um negócio de mero oportunismo eleitoral. Tem que ter alguma consistência de programa.

Como é que o sr. vê um possível mandato caso o presidente Lula seja eleito? Será o retorno de um Estado mais indutor na economia? Ele receberá um país muito pior. Terá um Estado com menor capacidade de indução direta ao desenvolvimento, visto que a poupança interna e a capacidade fiscal do governo são muito piores hoje do que em 2003.

Considero que haverá um papel fundamental do governo, não necessariamente como executor direto, mas como indutor para o investimento privado no país. É fundamental que o Estado participe. Quem passa confiança, credibilidade e segurança institucional é o governo. Não podemos sinalizar que toda hora muda a lei para tirar o presidente, muda a Constituição para dar um calote numa dívida. A função do governo será restabelecer a confiança no país.

​Qual a sua avaliação sobre o cenário que se desenha para a eleição de 2022? Acha que a eleição tende a polarizar entre Lula e Bolsonaro? Como viu a entrada de Moro e Doria no tabuleiro? Não acredito que haja espaço para crescimento de outras candidaturas. De um lado, teremos um projeto que se mostrou desastroso para o país, que aumentou o desemprego, a pobreza e diminuiu drasticamente o investimento externo. Com esse cenário, como diz a música, o povo ficou com saudade do ex.

Então, acho pouco provável que alguém consiga estabelecer um novo cenário que não seja a disputa entre Lula e Bolsonaro. Não acredito em candidaturas do estilo do Sergio Moro porque as pessoas preferem o autêntico do que o genérico. Moro nada mais é do que um genérico do Bolsonaro.

Não acredito no crescimento do Moro, em hipótese nenhuma. E acho pouco prováveis as outras alternativas, até pelo tempo de campanha e a extensão territorial do país. Você não fixa um nome apenas porque ele foi governador. É preciso que se estabeleça algum tipo de vínculo, seja nas ideias, seja pessoal.

Como o sr. viu esse movimento de aproximação do presidente com uma base mais fisiológica, caso de partidos como PP e PL? O Congresso desejava capturar o Orçamento federal. Uma parte disso é o tal do orçamento secreto, que ninguém sabe a origem e qual o destino do recurso. As cifras são astronômicas. Parte virou investimento puramente eleitoreiro, com muito ruído de problemas de ética.

Por outro lado, havia um interesse do presidente, que se viu ameaçado de um possível impeachment e denúncias em relação a seus filhos, de ter uma proteção maior do Congresso. Eu diria que juntou a fome com a vontade de comer: o desejo do Congresso de capturar o Orçamento e o dele de buscar maior proteção para ele e para família. Ele praticamente abriu mão de governar.

Essa aproximação atrapalha a sua relação com esses partidos? Parte deles compõe a sua base aliada. Não acredito. O ruído pode acontecer nas opções feitas daqui para frente. Se algum dos partidos da nossa base optar por Bolsonaro, eventualmente haverá incompatibilidade de caminhos. Acho que vai ser uma eleição muito polarizada nacionalmente.

A disputa do ano que vem terá uma influência muito maior da eleição nacional nas disputas estaduais. Eu espero que haja essa polarização porque é preciso eleger um Congresso Nacional que, de fato, ajude a construção dessa identidade, dessa unidade nacional.

Não dá para ter um Congresso que vai repetir orçamento secreto ou essa chantagem com o presidente da República. Com esse modelo que foi estabelecido do Congresso com Bolsonaro, ninguém governa o Brasil. Esse modelo está destruindo o Brasil.

O potencial adversário do PT na Bahia aposta no contrário. ACM Neto tem dito que a eleição não deve ser nacionalizada e tenta se afastar de Bolsonaro. Acha que essa estratégia funciona? Ele tenta um milagre, que é o milagre de se desassociar da figura do presidente da República. Ele fez campanha, pediu voto para Bolsonaro.

Tem vídeos e fotos dele abraçado com o presidente. O ex-chefe de gabinete dele é ministro de Bolsonaro. Até o dia de hoje, quem dá sustentação ao governo Bolsonaro são os parlamentares do DEM, que na Bahia possuem a indicação de todos os órgãos federais. Essa imagem é difícil de ele separar.

Auxiliares do presidente dizem que ele deve ganhar terreno no Nordeste com a criação do Auxílio Brasil e o aumento do valor do benefício. Acha que essa correlação tem sentido? É o que eles buscam. Algum impacto eventualmente pode ter, não vou dizer que o impacto é zero. Mas é péssimo quando você muda completamente as políticas de governo.

Durante todo esse governo, não teve um planejamento nem uma visão de longo prazo para a educação, a saúde, a infraestrutura. Simplesmente, há uma ausência de governo, uma ausência de planejamento. Tudo se transformou em medidas meramente eleitoreiras e um imenso desperdício de recursos Brasil afora.

O PT vai completar um ciclo de 16 anos na Bahia e apresentou a pré-candidatura do senador e ex-governador Jaques Wagner ao governo. Não acha que seria hora de abrir espaço para partidos aliados? Vamos defender é que esse perfil de prioridades seja mantido, independentemente do nome e do partido que esteja liderando esse projeto. Não tem nenhum veto para que outros partidos possam liderar. Ainda estamos conversando. É possível que nesse grupo que vai liderar tenham pessoas de partidos diferentes.

O sr. não construiu um nome novo para sua sucessão na Bahia. Foi uma opção sua? Não foi opção. Você não constrói nomes novos por decreto. As coisas acontecem e os nomes vão se fixando conforme o cotidiano da política. Acho que temos nomes fortes. Mas não há um nome novo consolidado.

​RAIO-X

Rui Costa dos Santos, 58

Nascido em Salvador em 1963, é economista. Secretário da Casa Civil do governo Jaques Wagner, concorreu e venceu o pleito estadual de 2014, reelegendo-se com votação recorde em 2018. É casado e tem quatro filhos. É filiado ao PT desde 1982.

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É O PODER, ESTÚPIDO !

Otávio Santana do Rego Barros, Congresso em Foco

Deveriam ser dias dedicados a meditação e orações, mas descambei, de forma mundana, a me questionar sobre o que é fazer política?

O que leva uma pessoa a abdicar de sua zona de conforto, compartilhada na família, entre amigos, no trabalho, para disputar a confiança da sociedade na busca de votos?

Faça um teste. Pergunte ao seu candidato predileto, aquele que você confia e que supõe conhecer, qual a razão para que ele suba nesse ringue de vale tudo?

Se você obtiver apenas respostas evasivas: “A democracia exige sacrifícios! Precisamos mudar o Brasil!”

Esqueça!

Agora, se ele lhe disser: “É pelo poder!”, preste atenção no que a pessoa vai lhe apresentar.

Ele tem a coragem moral que a maioria dos pretendentes a cargos políticos deixa nos cueiros.

O poder em si não é um mal. É estimulante. É combustível para se alcançar êxito em empreitadas desafiadoras. Sem ele não há Estado e nem governo.

O imprescindível é ter o controle sobre a forma como ele está sendo exercido a seu nome. O cargo eletivo, sendo uma procuração temporária, não concede amplos poderes.

Há ferramentas consolidadas no mundo democrático e disponíveis para utilização pela sociedade.

O voto é, naturalmente, a mais poderosa delas.

Infelizmente, quando mal utilizado, pode levar ao poder extremos indesejáveis ou incompetentes bafejados pela sorte.

Outra ferramenta é a elaboração de um projeto de governança – pouco respeitado em nosso processo – que revele os princípios sob os quais o político virá a exercer o mando. Servirá de balizamento tanto aos seus propositores, como aos cidadãos fiscalizadores.

Fomos forçados a tomar assento nas arquibancadas do circo eleitoral antecipadamente. Uma consequência de os pré-candidatos e suas agrupações políticas serem compelidos a buscarem um melhor posicionamento na vitrine das próximas rondas eleitorais.

Alguns analistas dizem que o movimento é prematuro. Eu discordo. Afinal, os detentores do poder já estavam em plena campanha, valendo-se de eventos públicos, até dos mais simplórios, para agitar seus correligionários.

“O erro de muitos políticos é esquecer que foram eleitos; ficam achando que foram ungidos” (Claude Pepper). Os nossos foram se inebriando, se corrompendo até ferirem de morte os sonhos da maioria de seus eleitores que perdeu a fé.

Gostaram do mel que o poder produz. Não querem deixar de apreciar o seu doce sabor. Namoram elogios e, sem afeição por leitura, desconhecem Voltaire: “Os elogios são o protocolo dos tolos”.

Farão, portanto, seguidas manobras lícitas ou espúrias para continuar a ter acesso ao favo gigantesco da abelha rainha – o Estado brasileiro.

Pois bem, já que tomamos assento na plateia, vamos acompanhar o espetáculo atentamente.

Observar os bons e maus atores.

Reforçar as nossas consciências.

Abdicar dos estereótipos maniqueístas.

Não se levar por atitudes carnavalescas de pierrôs embriagados. O poder nunca foi deles. Será sempre seu!

Imponha a sua vontade no momento adequado – a solidão da urna eletrônica. Escolha um governante que queira o poder do bem. Que saiba usar essa energia para a construção de um país mais justo e soberano.

O tempo está expirando e poderemos soçobrar diante do quadro que se formou pelo poder bem exercido.

Paz e bem!

OTÁVIO SANTANA DO REGO BARROS General de Divisão da Reserva do Exército. Foi porta-voz da Presidência da República.

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DESVENDANDO O CÉREBRO

Cristovam Buarque, Correio Braziliense

A última frase do livro No labirinto do cérebro diz: “Em algumas décadas nossos livros médicos estarão em museus como documentos de uma época em que se abria a cabeça, o tórax e o abdômen dos pacientes”. Ela reflete a percepção do autor sobre a evolução da medicina, mas não se aplica ao próprio livro, que tem as qualidades da boa literatura: deslumbrar o leitor, aumentar o conhecimento sobre a realidade e seus mistérios e provocar novas ideias e conceitos.

No labirinto do cérebro, de Paulo Niemeyer Filho, deslumbra ao contar as aventuras do avanço da ciência e as batalhas médicas para dar qualidade de vida às pessoas. O autor conseguiu entrelaçar as aventuras do pensar e do agir; do entender o funcionamento do cérebro e de corrigir seus defeitos de funcionamento. Emociona acompanhar os desafios de cientista para desbravar o conhecimento sobre o cérebro e os desafios do cirurgião ao usar as mãos para salvar vidas e recuperar competências perdidas. Dupla aventura do saber e do fazer, com texto fluido, belas imagens e analogias poéticas.

O autor descreve suas vitórias e conquistas de cientista e cirurgião, transmitindo ao leitor um misto de surpresa, encantamento, esperança. Fica a certeza de que ele é ótimo escritor e grande cientista. Terminamos de ler cada capítulo com admiração, respeito e confiança no trabalho que o autor descreve, e com alívio pelo final feliz de cada história bem contada. Como se Fernão de Magalhães tivesse sobrevivido e contado sua aventura, ao mesmo tempo em que descrevesse a beleza da geografia, a ciência da navegação e a engenharia náutica.

Paulo Niemeyer Filho provoca, com rara competência, tensão narrativa ao criar estimulantes frases de abertura para seus capítulos: “Em que momento o homem primitivo começou a falar”; “Quando olhamos o cérebro, observamos que, como uma fruta, ele tem duas cores”; “Em 1835, dois pesquisadores da Universidade de Yale apresentaram no Congresso Mundial de Neurologia, em Londres, a experiência da secção dos lobos frontais em dois chimpanzés”; “No final da tarde, fui chamado às pressas para atender o filho de um casal amigo, que sofrera traumatismo craniano ao cair de skate”; “Numa tarde de fim de semana, fui convidado para receber um paciente que vinha do interior do estado, de ambulância, com dormência nas pernas após uma queda de cavalos”; “Certo dia, uma amiga me ligou queixando-se de uma dor de cabeça diferente”. Cada uma das aberturas desperta a curiosidade do leitor, como fazem grandes escritores quando acham a frase certa antes de uma boa história. E ele faz isso para descrever a aventura do diagnóstico, da busca por alternativas para enfrentar o problema, o que foi feito antes e quais os resultados.

No capítulo que começa com a frase “Numa manhã de março, um casal é atendido no ambulatório do hospital local”, Paulo Niemeyer conta a fascinante história do primeiro caso identificado, em 1901, pelo doutor Alois Alzheimer, da doença que depois veio a receber seu nome, graças à descoberta que fez contrariando a ciência de sua época. Uma aula simples de história da medicina, com a qualidade de nos auxiliar a identificar sintomas dessa doença e saber como enfrentá-la.

No labirinto do cérebro é um livro para ser lido pelo prazer de ler, pelo acúmulo do conhecimento que transmite e pelos alertas que faz. Além disso, um livro que passa esperança e ensina a salvar vidas ao indicar sintomas de doenças que podem ser evitadas ou curadas se tratadas em tempo. Deve ser indicado para jovens adquirirem gosto pela leitura e atração pela aventura da ciência e da medicina.

No meio do prazer e do aprendizado que passa, o livro nos provoca imaginar que os conjuntos sociais podem ser comparados com organismos humanos, como se o Brasil tivesse um cérebro que sofre de Alzheimer ao esquecer sua história, sofre de tumores, derrames e isquemias que nos impedem de usar o potencial que temos. Sobretudo, ao provocarmos uma terrível isquemia social, por falta de escola com qualidade para todas nossas crianças. O que nos faz pensar que o cérebro humano, pelo menos dos políticos, carrega um defeito de fabricação ao dispor de imenso poder lógico para entender e manipular a realidade, mas sem ética que regule esse poder.

No labirinto do cérebro tem outra qualidade dos grandes livros: ao terminar a leitura, desejamos recomeçar e refletir mais sobre cada frase que sublinhamos, além de desejar que muitos vivenciem as aventuras que ele descreve e descubram a beleza estimulante de suas páginas.

Arte: Kleber Sales/Correio Braziliense

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A CONTRIUIÇÃO DE CADA PRESIDENTE À ESTABILIDADE

Cristiano Romero, Valor Econômico

Daqui a nove meses, será realizada a nona eleição direta para presidente da República no Brasil, decorridos 37 anos do fim do regime militar. O pleito ocorrerá em meio à forte polarização que vem caracterizando a política nacional desde o primeiro mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006) e que se acirrou com a reeleição de Dilma Rousseff em 2014 e a ascensão de Jair Bolsonaro, em 2018. É bem provável que a disputa transcorra num ambiente de grande instabilidade.

Depois de ter a ordem institucional interrompida em 1964, quando, apoiados por civis interessados em tomar atalhos para chegar ao poder, chefes militares derrubaram o presidente João Goulart num contexto de grave crise econômica, o Brasil custou a reconquistar a estabilidade política. O poder só foi devolvido aos civis 21 anos depois e, mesmo assim, por meio de eleição indireta realizada pelo Congresso.

A chapa vencedora tinha um integrante da oposição – Tancredo Neves – e um prócer da ditadura – José Sarney. Foi o jeito encontrado para acalmar militares inconformados com a perda iminente de poder. Ademais, a união da oposição com dissidentes da situação seria suficiente para derrotar Paulo Maluf, candidato do governo militar. Antes disso, tratou-se de impedir que a transição se desse por meio do voto popular – em 1984, o nome mais bem cotado para triunfar numa eleição direta era o de Ulysses Guimarães, rejeitado pelos generais.

No país onde a vida imita a arte, o destino apareceu na undécima hora para nos testar. Eleito em 15 de janeiro de 1985, Tancredo começou a sentir dores no abdômen nos dias e semanas seguintes, mas decidiu esconder o fato de todos. Seu temor era que uma possível doença não o deixasse assumir a Presidência, tornando possível um retrocesso na transição de regime. No dia 14 de março, véspera da posse, ele foi internado às pressas e submeteu-se à primeira de uma série de cirurgias, até falecer em 21 de abril. Em seu lugar, assumiu Sarney, o vice.

No ano anterior, milhões de brasileiros foram às ruas para exigir a volta do voto direto para presidente. A proposta de emenda constitucional Dante Oliveira, que a restabelecia, não passou da Câmara, disseminando sentimento amargo de frustração, tangível apenas quando o Parlamento vota contra o desejo da maioria da população. O moral só elevou-se quando Tancredo derrotou Maluf.

Depositaram-se no ex-governador de Minas Gerais todas as esperanças para o restabelecimento da democracia e a saída do país da crise econômica. Informações sobre a enfermidade de Tancredo só começaram a circular em Brasília na noite do dia 14. Sarney, político da ditadura, assumir a Presidência no lugar de Tancredo soava à maioria como conspiração, não do destino, mas de quem nos subtraiu a democracia.

O ex-governador do Maranhão tornou-se o primeiro presidente da Nova República nas piores condições. João Figueiredo, último general-presidente, recusou-se a lhe passar a faixa e deixou o Palácio do Planalto pelos fundos. Se já não bastasse o fato (antipático, por definição) de assumir o cargo do “salvador da pátria”, Sarney enfrentava risco real de não subir a rampa do palácio. No meio militar, era audível o burburinho de golpe, ameaça contida apenas pela firmeza do novo ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, que, na noite do dia 14, telefonou ao vice-presidente e lhe deu garantias para tomar posse.

Restabelecer a democracia em meio a um cenário político e econômico tão desfavorável, com inflação anual próxima de 200%, foi um feito que, olhado em perspectiva, deveria dar a Sarney reconhecimento de que pouco se ouve falar. Seu mandato foi marcado por três tentativas frustradas de estabilização de preços, por denúncias de corrupção e pela extensão do mandato para cinco anos, obtida no Congresso por meio de concessões de rádio a parlamentares.

Um dos presidentes mais criticados da história do país, Sarney teve o mérito de não flertar uma só vez com tentações autoritárias, que, em Brasília, reaparecem a cada crise política. Em sua gestão, instalou-se a Assembleia Nacional Constituinte que estabeleceu, nos capítulos de direitos e garantias fundamentais da Carta Magna do país, os princípios para a construção da nação que não somos, como o fim da censura e a proibição de qualquer forma de discriminação.

Na economia, apesar do malogro no combate à hiperinflação, o governo tomou decisões importantes como a criação da Secretaria do Tesouro Nacional e o fim da conta-movimento do Banco do Brasil e das operações de fomento do Banco Central.

Fernando Collor venceu a primeira eleição direta pós-ditadura apresentando-se como o anti-Sarney, tirando proveito dos escândalos que ocuparam o noticiário desde 1985. Em setembro de 1992, perdeu o mandato, acusado justamente de corrupção (em dezembro daquele ano, o STF o inocentou). Olhando para trás, nenhum governo da redemocratização, com exceção ao de Itamar Franco (1992-1994), transcorreu sem casos ruidosos de corrupção, envolvendo não necessariamente os presidentes, mas assessores, ministros e aliados.

Também sob Collor, a estabilidade política foi colocada em xeque, mas prevaleceu a democracia. Vale registrar, por exemplo, que as investigações que, em última instância, trouxeram à luz do dia elementos constrangedores para o então presidente foram conduzidas por instituições públicas, como a Receita Federal e a Polícia Federal. Collor não impediu que ambas realizassem seu trabalho, fato que deve ser louvado como importante contribuição à democracia – é isso que se espera de governantes eleitos, mas todos sabemos que nem sempre funciona assim.

Na economia, o governo fracassou em duas tentativas de estabilizar os preços (Collor I e II), mas promoveu avanços que, adiante, contribuíram para o sucesso do Plano Real, como a adoção de um cronograma de redução unilateral de alíquotas de importação, a abertura da conta de capitais, a acumulação de reservas cambiais e a renegociação da dívida externa.

O objetivo destas reflexões, iniciadas na coluna passada (“Brasil: quem paga ‘pra’ gente ficar assim?”, 23/12/2021), é mostrar o árduo caminho que levou o país a conquistar a estabilidade política e econômica e apontar os riscos que a vêm ameaçando desde 2011. A série continuará no dia 20 de janeiro.

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PARA A MAIORIA DOS BRASILEIROS, O ANO NÃO QUER ACABAR

Luiz Carlos Azedo, Nas Entrelinhas, Correio Braziliense

O presidente Jair Bolsonaro encerrou seu expediente no fim de semana antes do Natal, porém, para a maioria dos brasileiros, parece que 2021 é um ano que não quer acabar. Aquele ditado “ano novo, vida nova” não é bem o nosso caso. As principais mazelas de 2021 não estão ficando para trás. Na prática, 2022 promete ser um ano muito difícil, duro, e brevíssimo, porque só começará a fazer a diferença quando a situação sanitária do país se normalizar. A propósito, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para agradar ao presidente da República, faz tudo que pode para impedir que isso ocorra, haja vista, por exemplo, a omissão diante da epidemia de H3N2 (Influenza) e a sabotagem aberta à campanha de vacinação de crianças contra a covid-19.

De origem europeia, nosso calendário civil é utilizado oficialmente pela maioria dos países. Promulgado pelo Papa Gregório XIII [1] (1502-1585), em 24 de fevereiro de 1582, na bula Inter gravíssimas, substituiu o calendário juliano, decretado pelo imperador romano Júlio César (100-44 a.C.), em 46 a.C. Entretanto, em 2022, o calendário que realmente fará a diferença é o eleitoral. Em 2 de outubro, escolheremos o presidente da República, os governadores, os senadores e deputados federais, e estaduais e distritais. Eventual segundo turno para presidente e governadores poderá ocorrer em 30 de outubro.

Já a partir de 1º de janeiro, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por órgãos da administração pública, exceto em casos como calamidade pública, estado de emergência e execução orçamentária do exercício anterior. Por isso, houve tanta correria para incluir na PEC dos Precatórios, no Congresso, as verbas milionárias do chamado “orçamento secreto”, R$ 16 bilhões para emendas do seu relator. Não se pode falar a mesma coisa da ajuda aos flagelados das chuvas na Bahia, onde dezenas de cidades ficaram sob as águas dos rios, principalmente o Cachoeira. Houve destruição de casas e infraestrutura, milhares de pessoas perderam quase tudo e estão desabrigadas.

Orçamento da União

Nada disso abalou as férias de Bolsonaro, que passou o Natal em Guarujá (SP) e passará o ano-novo em Florianópolis (SC). Entre um passeio e outro de jet ski, deu-se por satisfeito com a medida provisória que destinou R$ 200 milhões para socorrer os atingidos, recursos sabidamente insuficientes para mitigar a tragédia ambiental. Como o trauma da pandemia, que ainda não acabou, o das enchentes na Bahia atravessará a virada do ano. Como sabemos — Brumadinho e Mariana estão aí para nos refrescar a memória —, o dinheiro quase nunca chega à ponta dos que perderam seus bens. O que salva o povo é a sociedade civil, com seus donativos, ou seja, o próprio povo.

Orçamento secreto

Para o governo federal, parece normal. Todos os anos, em algum lugar do Brasil, a tragédia se repete, sem que se tenha um plano de contingência de rápido emprego para socorrer as vítimas das chuvas. O aumento de intensidade e frequência dessas tragédias naturais decorre das mudanças climáticas, mas o que esperar de um governo tão negacionista, sobretudo na questão ambiental? Nem medidas de longo prazo para enfrentar os fenômenos decorrentes do aquecimento global nem medidas imediatas para socorrer as populações atingidas estão previstas na escala necessária no Orçamento da União, que foi sequestrado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para favorecer o Centrão.

É nessas horas que se tem a dimensão do absurdo de uma reserva de R$ 16 bilhões em emendas do relator, cujos verdadeiros autores continuam no anonimato, de um total de R$ 47 bilhões em emendas parlamentares no Orçamento do próximo ano. Trata-se de uma vergonhosa política de clientela, que não obedece a quaisquer planejamentos ou prioridades, exceto o benefício eleitoral imediato dos parlamentares contemplados. E o que falar dos recursos destinados ao escandaloso Fundo Eleitoral de R$ 4,9 bilhões, que também servirá para reprodução dos atuais mandatários do Congresso, principalmente do grupo que forma o Centrão?

Num país mais sério, com governantes mais responsáveis, uma parte desse dinheiro seria utilizada para socorrer os desabrigados da Bahia, até por uma questão de marketing político. Mas a política de clientela não gosta de transparência nem de mídia. Gosta das sombras, dos conchavos, dos acertos por fora. Na real, o Congresso brasileiro legisla para beneficiar os 10% de privilegiados que estão satisfeitos com a sua atuação, o que é uma tragédia política. Isso representa uma ameaça à democracia, na qual o Legislativo é o eixo de gravidade da relação Estado e sociedade. Em tempo: a clientela eleitoral de Bolsonaro também está muito bem contemplada com o Orçamento da União de 2022.

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ATRASO DO MERCADO DE TRABALHO FREIA QUEDA DO DESEMPREGO

Editorial O GLOBO

É lenta, mas consistente, a queda no desemprego constatada pelo IBGE nos últimos meses. A taxa, que atingiu o ápice da pandemia perto dos 15%, no primeiro trimestre deste ano, tem caído mês a mês e chegou a 12,1% no trimestre encerrado em outubro. Em nove meses, o total de desocupados caiu de 15,3 milhões para 12,9 milhões. Quase 2,4 milhões de brasileiros voltaram ao mercado de trabalho.

A boa notícia esconde, porém, dois senões. O primeiro está na qualidade desses novos empregos. O rendimento médio dos trabalhadores caiu ao menor nível desde 2012: R$ 2.449, já descontada a inflação (11% abaixo do mesmo período de 2020). A informalidade continua a crescer e alcança 40,7% da população ocupada, ou 38,2 milhões. Dos 3,3 milhões que se empregaram no trimestre, 1,8 milhão só encontrou postos no mercado informal, incluindo bicos eventuais ou trabalho por conta própria. A única categoria que cresceu no país é a dos que ganham até um salário mínimo.

De acordo com uma análise do economista Bruno Ottoni publicada pelo GLOBO, quase metade da população ocupada (45,8 milhões de trabalhadores) está em empregos de baixa qualidade, levando em conta salário, condições de trabalho, estabilidade e acesso a seguridade social e Previdência. Trata-se da maior proporção e quantidade desde 2016, ano em que ele começou a levantar os dados.

O segundo senão é consequência do primeiro. Apesar da minirreforma trabalhista do governo Michel Temer, a legislação brasileira ainda está cheia de obstáculos à geração de empregos. É a explicação para a reação lenta do nosso mercado de trabalho nos momentos de recuperação, na comparação com outros países. Nos Estados Unidos, a pandemia levou a desocupação também a perto de 15% em abril de 2020. Mas a taxa caiu rapidamente com a recuperação da atividade — e já estava em 4,2% em novembro. Nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o desemprego caiu de 8,8% em abril do ano passado para 5,7% em outubro deste ano, pouco acima dos 5,3% de antes da pandemia.

No Brasil, a desocupação também está pouco acima do patamar anterior à pandemia (era de 11,8%). Mas nossa queda é menos intensa que nos países onde as empresas têm mais facilidade para contratar e demitir. E o desemprego estrutural é mais alto. Economistas estimam em mais de 9% a desocupação natural da força de trabalho. Isso significa que, se a taxa cair abaixo disso, a economia estará superaquecida, com pressão constante por salários mais altos, maior demanda, portanto mais inflação.

Reduzir essa taxa natural de desemprego não inflacionária ao patamar dos países mais desenvolvidos é o principal desafio do mercado de trabalho brasileiro. A receita para isso é conhecida: é preciso reduzir o custo de empregar, por meio de uma legislação trabalhista mais flexível, e qualificar a mão de obra para ocupar as posições de maior produtividade e maior valor no mercado.

Não existe mágica na economia. Enquanto o país tiver uma legislação engessada e a força de trabalho sem a formação necessária para atividades que gerem mais riqueza, o Brasil continuará refém da informalidade, com desemprego estrutural altíssimo e distante do grupo dos países mais avançados da OCDE, a que tanto almeja pertencer.

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O PRESIDENTE SEM COMPAIXÃO

Cláudio Couto, Valor Econômico

Nos últimos dias causa perplexidade a indiferença com que o presidente da República lida com o desastre das inundações no sul da Bahia e norte de Minas. Enquanto seus governados padecem sob as águas, Jair Bolsonaro farreia sobre elas, no Guarujá ou em Santa Catarina.

A catástrofe ambiental que flagela milhares, destruindo casas e bens, ceifando vidas e arruinando a já precária infraestrutura local, é insuficiente para comover o presidente, que frui de aprazível folga à beira-mar como se nada de grave acontecesse no país que ele pretensamente governa. Questionado por um adulador sobre sua permanência até o fim de semana do Ano Novo, retorquiu reveladoramente: “Espero que não tenha que retornar antes”.

Tal declaração suscita outra pergunta: o que ainda precisaria acontecer para que Bolsonaro atinasse quanto à inadequação do momento para folguedos nas águas verdes do litoral catarinense? Seu comportamento agora, bem como sua conduta pregressa, sugere não haver nada que possa sensibilizar o presidente quanto àquilo que momentos como este requerem: recato e empatia.

Desde que a situação se agravou com as fortes chuvas, na segunda semana de dezembro, o presidente encontrou tempo para ir até o local da tragédia num único momento, dia 12, quando sobrevoou áreas atingidas. Em todo o período, manifestou-se sobre o que ocorria ali apenas três vezes, com declarações e aparições reproduzidas no Twitter dele e no da Secretaria de Comunicação da Presidência. As providências palpáveis, deixou para alguns de seus ministros, governos estaduais e municipais. Como noutros momentos, Bolsonaro delegou a terceiros a responsabilidade pelo encaminhamento de ações que a ele caberia liderar.

Enquanto alguns trabalhavam, o presidente folgava. Não à toa o tópico #BolsonaroVagabundo figurou entre os mais postados nas redes sociais nesses dias.

Todavia, sobrevoos e declarações não solucionam problemas concretos de flagelados; são apenas demonstrações (necessárias) de alguma preocupação e empatia. Mais efetivo, por certo, é trabalhar – algo complicado de se fazer durante a folga. Nem seria de se esperar que o presidente fosse seguidas vezes à região ou mudasse a sede do governo temporariamente para lá – embora, costumeiramente em governos normais, coisas assim sejam feitas. Entretanto, diante das incumbências do cargo, um governante sensato interromperia o descanso, deixando-o para momentos menos trágicos.

O problema é que Bolsonaro está muito longe de ser esse governante sensato. Por um lado, é provável que o desdém para com o problema o desgaste ainda mais. Por outro, a incapacidade para notar a gravidade de sua postura decorre de uma espantosa e profunda ausência de compaixão.

O filósofo Renato Janine Ribeiro aborda a importância desse sentimento para a vida em sociedade em seu último livro, “Duas ideias filosóficas e a pandemia”. Busca em Jean-Jacques Rousseau a noção de pitié no original em francês, que literalmente poderia ser traduzida como “pena” ou “dó”, mas que ele prefere verter como “compaixão”, pois o termo denota um sentimento mais igualitário e, portanto, respeitoso. Janine Ribeiro aponta que para Rousseau “o que nos caracteriza [como seres humanos] é a capacidade de compartilhar o sofrimento de qualquer outro ser vivo. Observamos outros viventes sofrerem – e então sofremos juntos.”

Pois bem, Bolsonaro já demonstrou repetidas vezes a incapacidade para compadecer de outras pessoas. Ora faz o culto à tortura e a torturadores, escarnecendo das vítimas; ora faz troça da dificuldade para respirar dos acometidos pela Covid; ora faz pouco caso dos mortos pela doença: “E daí, quer que eu faça o quê?”. Há pouco tempo, em setembro último, disse sobre pessoas que morreram: “Muitas tinham alguma comorbidade, então a Covid apenas encurtou a vida delas por alguns dias ou algumas semanas”. Para Bolsonaro, que com seu negacionismo contribuiu para disseminar a doença, ela apenas acelerou um iminente descarte de seres humanos menos aptos a viver por mais tempo. Se isso não for falta de compaixão, o que mais seria?

Ironicamente, o próprio Bolsonaro teve em seu benefício, durante a disputa que o levou à Presidência, a compaixão de muitos de seus concidadãos. A facada que poderia lhe ter ceifado a vida em Juiz de Fora despertou a imediata solidariedade de muita gente – inclusive de adversários, que condenaram o atentado e compadeceram dele. Da mesma forma, muitos eleitores foram tocados pelo seu sofrimento, amplamente divulgado por vídeos, passando a vê-lo com mais simpatia, talvez ao ponto de votar nele.

Aliás, esse é um aspecto importante, em que se podem confundir causa e consequência. Quem compadece de outro ser, nele vê algo valoroso, mas não é a compaixão que gera a valorização do outro – e sim o contrário. Compadecemos daqueles aos quais damos valor, seja porque os vemos como dignos, amamos ou os temos como iguais a nós.

É mais difícil ter compaixão por algo ou alguém que se despreza, odeia ou repugna. Eis porque não se costuma ter pena de ratos e baratas ao exterminá-los e porque o discurso de ódio costuma equiparar inimigos a seres repulsivos, tais como ratos ou baratas, justificando violências que se praticam contra eles e até mesmo sua eliminação.

Apesar do dever de governar seus concidadãos, ao não compadecer de seu sofrimento, optando por se divertir em vez de trabalhar por seu bem, o presidente Bolsonaro explicita a indiferença, o pouco apreço ou mesmo o desprezo que nutre por eles. Mas como bem governar ao acalentar tais sentimentos por seus governados, isto é, por aqueles que merecem seus cuidados?

Agindo assim, o presidente demonstra que a tirania (má forma de governo a cargo de um indivíduo, que se beneficia em prejuízo da sociedade) não corresponde só a jeitos autocráticos de gerir o Estado, mas também a maneiras propositalmente indiferentes, displicentes e danosas para com os cidadãos. Tiranos são governantes sem compaixão. Bolsonaro não a tem.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP

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BOLSONARO AJUDA LULA

Merval Pereira, O GLOBO

A insensibilidade do presidente Bolsonaro diante do sofrimento alheio, quando ele é difuso, é sinal de que é incapaz de compreender o alcance do papel de um presidente da República, que chegou aonde chegou pelo voto dos cidadãos, e não por escolha divina. Bolsonaro é capaz de comover-se com a morte de um rapper conhecido por fazer “funk de direita” ou de um militar no exercício de sua função, mas é incapaz de homenagear um grande artista nacional que seja de esquerda ou simplesmente adversário de sua maneira de ver o mundo.

Para ele, existem apenas os que são seus apoiadores ou os adversários, não há brasileiros como coletividade, todos os que deveriam estar representados por ele como presidente. Não viajar para a Bahia diante da catastrófica inundação que deixou milhares de desabrigados e mais de 20 mortos, para passear de jet ski no sul do país, é mais um desses episódios que demarcam sua psicótica personalidade. “Espero não ter que voltar mais cedo”, comentou, na esperança de não interromper suas férias.

Até mesmo por cálculo eleitoral, o candidato à reeleição deveria estar de prontidão para gestos de solidariedade, mesmo vazios de conteúdo. Mas Bolsonaro não esconde sua falta de empatia, e esse sincericídio não é sinal de honestidade intelectual, mas de incapacidade doentia de se relacionar socialmente com adversários, vistos como inimigos, ou de sentir uma dor coletiva.

Usar politicamente sua filha de 11 anos para marcar posição contra a vacinação infantil é também demonstração de insensibilidade diante da coletividade. Bolsonaro não entende que há ações governamentais que precisam ser tomadas em benefício do coletivo, especialmente quando se trata de uma crise sanitária. A altamente contagiante Ômicron exige dos governos medidas de proteção da sociedade, como a maioria dos países democráticos do mundo está fazendo, sem que restrições signifiquem um ataque à liberdade individual.

Nunca foi tão oportuna a frase famosa atribuída ao filósofo inglês Herbert Spencer: “A liberdade de cada um termina quando começa a do outro”. Não houve, em nenhuma ocasião, demonstração de sentimento pela perda de quase 620 mil vítimas da Covid-19, apenas referências superficiais ao fato, como a confirmar o que ele sempre disse: a morte é inevitável diante da pandemia, não há o que fazer.

O papel dos governos não é submeter-se à inevitabilidade da morte, mas criar condições de adiá-la o mais possível para seus cidadãos, proporcionando um sistema de saúde eficiente e adotando medidas preventivas, como vacinação em massa, incentivo ao uso de máscara, distanciamento social, no caso da presente pandemia.

Bolsonaro nunca visitou um hospital durante a fase mais aguda da crise sanitária que vivemos; ao contrário, incentivou a certa altura a invasão dos hospitais com o objetivo de flagrar supostas farsas na contagem dos mortos. Aproveitou todas as oportunidades para se colocar contra a vacinação, por atos administrativos ou simples retórica, politizando uma pandemia que mudou o mundo, o modo de viver das pessoas e exigia que houvesse no comando do país um líder capaz de organizar as ações coletivas na direção correta.

A cada atitude dessas, Bolsonaro une a maior parte dos que votaram nele para se livrar do PT na direção contrária, transformando o antipetismo que o levou ao poder numa reação que poderá levar Lula à Presidência logo no primeiro turno, pois se mostrou durante seu desgoverno uma solução pior que aquela que ele representava quando foi eleito. A anticorrupção, grande motor para levá-lo à eleição, já não se mostra suficiente para evitar o PT, pois o bolsonarismo transformou-se num nicho radicalizado que não justifica um voto útil contra Lula ou a esquerda.

Ao colocar-se a favor do fisiologismo e contra o combate à corrupção, para salvar-se e a sua família, Bolsonaro abre caminho para a volta do lulismo, enquanto não aparecer algum candidato que se mostre viável para impedi-lo de permanecer no governo. A volta do PT poderá ser facilitada por essa demonstração de que o voto em Bolsonaro fez o país regredir em todos os projetos que estavam colocados além das ideologias, como a política ambiental, a desagregação do sistema de saúde, a desmobilização do já frágil sistema educacional. O maior eleitor de Lula é o fracasso do governo de Bolsonaro.

Volto a escrever no dia 2 de fevereiro. Que 2022 seja mais leve!

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