Bolsonaro, que tem o espírito do Centrão, rompeu com todas as mediações. As alavancas do controle estão diretamente nas mãos do fisiologismo.
Orçamento secreto, implosão do teto de gastos, sombrias manobras parlamentares, tudo isso anima o noticiário da semana, mas, ao mesmo tempo, nos dá uma sensação de imobilidade, como se o Brasil não andasse para a frente.
Tanto o orçamento secreto como a implosão do teto de gastos são uma espécie de retrato do País, se o avaliamos pelas lentes dos seus principais intérpretes. A voracidade das elites dominantes em distribuir entre si os recursos públicos, em transformá-los em seu patrimônio, não é novidade de um ponto de vista histórico. É espantoso, no entanto, que em pleno século 21 a denúncia da existência de um orçamento secreto, feita aqui, no jornal Estado, tenha demorado tanto tempo para se transformar num escândalo, ainda que num tímido escândalo.
É evidente, para todos nós, que os gastos públicos têm de ser feitos com transparência. Há algumas exceções que dizem respeito à segurança nacional. Nenhuma delas tem conexão com as verbas distribuídas aos deputados. Também está previsto em lei que as verbas destinadas às emendas parlamentares devam ser distribuídas de forma impessoal, entre todos, sem discriminação.
O que está acontecendo em Brasília rompe com dois princípios: o da transparência e o da impessoalidade.
Esta excrescência é fruto do enlace entre Bolsonaro e o Centrão. Bolsonaro não quer impeachment? Tudo bem. Quer aprovar alguns projetos para se reeleger? Tudo certo, desde que role dinheiro para que os deputados também sobrevivam na batalha eleitoral.
A Câmara tem certa atração por presidentes distributivistas. Eduardo Cunha foi o mais famoso deles. Ele articulava projetos de interesse de empresas e conseguia manter lubrificada sua base de apoio. Arthur Lira trabalha com o Orçamento, mas segue o mesmo caminho de contemplar os seus apoiadores, só que, aparentemente, apenas com o dinheiro público.
O orçamento secreto tornou-se um escândalo por causa da PEC dos Precatórios. Cerca de R$ 900 milhões em emendas foram distribuídos para que o governo, no primeiro turno, conseguisse os magros 312 votos.
O interessante é que toda esta manobra não se esgota aí, na simples votação. Sob pretexto de ajudar os pobres com o chamado Auxílio Brasil, vão liberar para novas emendas cerca de R$ 20 bilhões.
Certamente, vão detonar a economia, aumentando o dólar, a gasolina, a inflação. Mas o que importa é abrir uma chance para Bolsonaro se reeleger com o Auxílio Brasil e gastar os R$ 20 bilhões a mais, viabilizando a própria campanha. Um escândalo dentro do escândalo.
E, como são muito espertos, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) pede transparência, eles fingem que há uma crise entre Poderes e lançam o tema na mídia na esperança de que a crise de dependência de alguns jornalistas os ajude a lançar uma cortina de fumaça em toda a manobra.
O enlace de Bolsonaro com o Centrão jogou o Congresso para trás. Na verdade, o próprio presidente tem o espírito do Centrão e, sob o disfarce de uma “nova política”, acabou por romper com todas as mediações. As alavancas do controle estão diretamente nas mãos do fisiologismo.
E tudo parece se agravar mais na medida em que se aproximam as eleições. Bolsonaro anuncia que vai entrar no PL, partido de Valdemar Costa Neto, um dos políticos mais experientes nesta voracidade em se relacionar com o governo.
Costa Neto foi preso e condenado no processo do mensalão. Lembro-me dos depoimentos prestados na Câmara por sua ex-mulher Maria Christina Caldeira. Segundo ela, Costa Neto, em certas noites, jogava no cassino o equivalente a US$ 300 mil.
Fiquei perplexo com a quantia, na época. Hoje, ao vê-lo atrair para o seu partido o próprio presidente da República, posso imaginar o que vai acontecer e o que aconteceria numa eventual vitória de Bolsonaro e Costa Neto. Digo eventual vitória dos dois porque Costa Neto vai ser decisivo na campanha e no governo, e certamente vai estar ao lado de Bolsonaro em caso de reeleição. Em caso de derrota, Costa Neto sabe para onde correr e vai buscar o rumo do governo vitorioso, não importa qual seja.
O que todos esses acontecimentos revelam é a resiliência de um certo Brasil que, às vezes, achamos ter sido superado historicamente. Resta, ainda, um pouco de esperança, no caso específico, de que o STF cumpra seu papel de guardião constitucional e barre ao menos os movimentos mais escandalosos.
Não creio que valha a pena contar só com uma iniciativa do STF, provocado pela oposição. Se esses dados da política continuarem distantes das pessoas, se persistir o sentimento de que nada adianta, o País será saqueado.
Como Bolsonaro catalisou uma expectativa de mudança, é razoável certa paralisia entre os eleitores que acreditaram nisso. Uma espécie de ressaca com a falsa onda renovadora. Mas as forças que podem se mover nas ruas são muito mais amplas.
De certa forma, fomos avisados a tempo de que havia um orçamento secreto. É uma notícia velha e convivemos com ela com certa naturalidade. Essa naturalização dos grandes erros no Brasil pode nos custar muito mais caro do que os bilhões secretamente transacionados.
O enlace da corrupção e do autoritarismo significa uma configuração perigosa, pois, em caso de triunfo, é muito resistente.
Artigo publicado no jornal Estadão em 12/11/2021
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