Em ano eleitoral, há uma série de restrições constitucionais e legais que impedem o uso do poder estatal para beneficiar eleitoralmente quem está no poder, o que geraria uma situação de desequilíbrio entre os candidatos. Trata-se de aspecto fundamental das regras do jogo de um regime democrático, que, por mais que desagrade e limite a atuação dos ocupantes de cargos públicos, era acolhido e respeitado de forma pacífica pelos partidos e políticos. Esse conjunto de limitações era algo que não estava em discussão. Fazia parte do consenso democrático.
Infelizmente, esse consenso – o respeito pacífico às regras do jogo – é coisa do passado. No Brasil de Jair Bolsonaro, as restrições de ano eleitoral são tratadas como matéria suscetível de discussão e alteração, ou mesmo de descarado desrespeito. Por mais que seja violação explícita das regras vigentes, estuda-se e debate-se abertamente o que o governo deve fazer para turbinar benefícios sociais, incluindo a criação de uma bolsa-caminhoneiro de até mil reais por mês.
A legislação eleitoral é cristalina. No ano em que se realizam as eleições, é proibida a distribuição gratuita de bens ou benefícios pela administração pública. As únicas exceções são programas sociais que já estejam em funcionamento. No entanto, o governo Bolsonaro e aliados tratam essas limitações como se fossem supérfluas ou dispensáveis.
A política brasileira nunca foi um ambiente de especial probidade, mas havia limites. Agora, vê-se instalar um novo patamar de descaramento. Por exemplo, segundo o líder do governo no Senado, Carlos Portinho (PL-RJ), o Executivo federal pode criar benefícios sociais em ano eleitoral, bastando, para tanto, alegar situação emergencial internacional causada pela guerra da Rússia com a Ucrânia. É esse o nível de consideração com a legislação que protege o equilíbrio das eleições.
Para que a absurda manobra seja aceita com menos resistência, o governo aventa a possibilidade de criar a bolsa-caminhoneiro por meio de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Com isso, desrespeitam-se não apenas as regras do jogo das eleições, mas a própria Constituição, numa tresloucada inversão de sentido e funções. A Constituição dispõe de um grau hierárquico maior sobre todo o restante da legislação precisamente por ser fundamento e limite de toda a ordem jurídica, de forma a assegurar respeito às questões essenciais do Estado Democrático de Direito. No entanto, o governo Bolsonaro quer valer-se da hierarquia da Constituição em sentido inverso: para que violações ao Estado Democrático de Direito não sejam questionadas.
Como Jair Bolsonaro não tem limites quando o assunto é eleições, fala-se também na possibilidade de o governo publicar um decreto de “estado de calamidade pública” ou de “situação de emergência”, como forma de escapar das restrições da legislação eleitoral. É realmente um quadro preocupante. Em vez de prover planejamento e propostas responsáveis para enfrentar a crise social e econômica, o governo Bolsonaro é uma usina geradora de manobras para burlar as regras do jogo.
Eis mais uma consequência de Jair Bolsonaro na Presidência da República. Não bastassem as omissões em áreas fundamentais, conflitos com outros Poderes, escândalos de corrupção nas pastas da Saúde e da Educação, desorganização e desmoronamento da estrutura administrativa federal, tentativas de dificultar a transparência e encabrestar os órgãos de controle, o governo ameaça abertamente as normas eleitorais, tentando de tudo para usar ainda mais a máquina pública em benefício eleitoral.
É bom que se diga que Bolsonaro não teria ido tão longe se a oposição não tivesse sido conivente com tais manobras, seja porque não deseja parecer contrária à criação e à ampliação de benefícios sociais, seja porque também lhe interessa o desmonte dessas restrições próprias de ano eleitoral. É uma grave irresponsabilidade, que enfraquece a democracia no que esse regime tem de mais precioso: o respeito de todos à lei e ao pacto constitucional.
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