sábado, 31 de dezembro de 2022

ADEUS, JAIR

Eduardo Affonso, O Globo

Seu maior legado é o que toma posse neste domingo. Um retrocesso de seis anos para retomada do que já não deu certo, nem nunca dará

Duas cartas lhe foram endereçadas, aqui nesta coluna. A primeira, pouco antes da eleição de 2018, contém mais pensamento mágico que qualquer outra coisa. Dizia: “Você é depositário das esperanças de milhões e milhões de brasileiros. São pessoas que o admiram ou apostam em você para nos livrar de um mal maior. Tomara que não estejam cometendo um equívoco”.

Estavam.

Prosseguia, num misto de sugestão e súplica: “Não entre no toma lá dá cá. Não faça conchavo”. Você entrou. Fez. “Descupinize o Estado. Deixe-o mais leve, mais ágil, mais saudável. Dê um basta nos privilégios; acabe com os feudos, as tetas, as tretas. Desestatize, desburocratize, reforme. Melhore a vida do cidadão. Devolva com saúde, educação, saneamento, infraestrutura e segurança o imposto que ele paga.” Parece psicologia reversa: foi feito exatamente o contrário.

Mais adiante: “Conservadorismo não significa atraso, intolerância. Não, não precisa ser politicamente correto: polidez e bom senso resolvem”. Você apostou no linguajar tosco, na discriminação, na insensatez e amarrou os conceitos de conservador e reacionário num nó que será duro desatar.

Uma segunda carta, bem mais pé no chão, veio menos de um ano depois, em 2 de agosto de 2019. O estrago já estava feito: “Em vez de cauterizar a ferida aberta pela polarização ideológica, o senhor se empenha em infectá-la”. Nem precisava ser Mãe Dinah para prever o que aconteceria: “O sentimento anti-PT ajudou a elegê-lo. A repulsa ao seu comportamento pode trazer o passado de volta. O senhor tem até outubro de 2022 para começar a se portar como um presidente. Não espere chegar lá para refrear esse falastrão descontrolado. Pode ser tarde demais”. O falastrão só se calou depois da inevitável, inadiável e merecida derrota.

Um governante cujo mandato termina há de se perguntar qual terá sido o espólio da sua gestão. Se isso lhe ocorrer, durante a deserção para a Flórida, aqui vão algumas pistas: desprezo pela cultura e pelo meio ambiente; metamorfose de cidadãos patriotas em fanáticos conspiracionistas; descrédito na ciência, na imprensa, nas instituições democráticas. O insulamento no cenário internacional, ânimo novo à velha política no plano interno. A bomba-relógio do culto às armas de fogo. O abandono dos valores cristãos do respeito, do amor ao próximo e da compaixão no momento em que eram mais necessários — milhares de brasileiros morreram de Covid-19 não por fatalidade, como em qualquer pandemia, mas por insensibilidade, ignorância e incompetência suas. Ficou pelo caminho o combate à corrupção e ao fisiologismo —se é que um dia se deu algum passo nessa direção.

Seu maior legado, entretanto, é o que toma posse neste domingo, 1º de janeiro. Um retrocesso de seis anos para retomada do que já não deu certo, nem nunca dará. Que talvez não revogue seus sigilos nem vá fundo na investigação de seus crimes — mas fará o possível para desmantelar o pouco que se modernizou neste país desde 2016: o marco do saneamento, a reforma trabalhista, as tímidas privatizações. Os parcos avanços liberais serão perdidos, e a expressão “liberal” continuará a ser demonizada.

Que o retorno à irrelevância lhe seja leve.

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