Jornalismo é também hierarquia. Não fosse ela, não haveria manchete nos jornais, e as notícias seriam amontoadas pela ordem de chegada. Nos primórdios da internet, era assim nos sites noticiosos. Mas, mesmo o ambiente digital rendeu-se à autoridade da relevância. O mais importante vem antes, tem mais destaque, ganha caixas altas e, se possível, brilha e pisca. É o caso de Pelé. Sua morte atraiu todas as atenções do dia 29 de dezembro. O anúncio dos derradeiros ministros de Lula, os preparativos para a sua posse e a prisão de bolsonaristas radicais foram praticamente ignorados nas TVs e nos jornais digitais durante toda a tarde. A morte de um rei é muito mais notícia do que a assunção de um presidente.
E não estamos falando de um rei qualquer, de um filho nobre que herdou a coroa que pertencia ao seu pai ou a sua mãe. Não. Pelé foi um self-made-king, um rei que se construiu, que desenhou a coroa que mereceu usar em cada um de seus 65 anos de reinado. Pelo seu gigantismo e pioneirismo, Pelé foi o principal assunto dos noticiários de TV e destaque em todas as primeiras páginas dos jornais brasileiros e mundo afora. O GLOBO deu quatro primeiras páginas ao rei. Lindas, mais do que primeiras, são capas que ilustram a estatura do atleta. O jornal foi superlativo com Pelé, ele próprio sinônimo de superlativo.
Lula não mereceu sequer uma linha nas quatro capas do GLOBO a dois dias da sua posse. O Estadão também dedicou inteiramente a sua primeira ao rei, com um título brilhante: “Pelé morreu, se é que Pelé morre”. A Folha ainda deu no pé da página pequenas chamadas para os novos ministros, a volta de Marina ao Meio Ambiente e a ação policial contra os radicais. Os principais jornais, telejornais, blogs e sites de notícias de todo o mundo também deram a ele espaços abundantes.
Mesmo os grandes jornais especializados em economia, como o Valor Econômico, no Brasil, o Wall Street Journal, dos Estados Unidos, e o britânico Financial Times deram chamadas importantes e rasgaram fotos de Pelé em suas capas. Não havia como esconder o falecimento do maior atleta do Século XX. Todos os grandes líderes globais lamentaram a sua morte. Todos os grandes atletas e artistas, os mais importantes e laureados cientistas, pesquisadores, escritores e professores renderam homenagem ao maior brasileiro de todos os tempos.
Em vida, Pelé foi procurado e tietado por presidentes, primeiros-ministros, reis e rainhas. Numa entrevista à GloboNews, o jornalista Juca Kfouri contou um episódio que testemunhou quando conversava com Pelé em seu escritório. A secretária do rei entrou na sala e disse que o então presidente dos EUA, Bill Clinton, estava ao telefone. Pelé atendeu, conversou uns três minutos e agradeceu, mas não podia atender ao convite para uma visita ao presidente na Casa Branca. Abismado, Kfouri indagou: “Você recusou convite do Clinton?”. Pelé respondeu: “Já conheci muitos presidentes americanos. O convite é para a mesma data das minhas férias. Prefiro ir para a praia”.
Parece arrogante? Pode parecer, mas não foi arrogância. Pelé era assim mesmo. Ele sabia muito bem o tamanho que tinha. Mas nem por isso se negava a dar um autógrafo, a conversar com um fã, a se deixar fotografar. Pelé pediu amor, pediu pelas crianças, invocou justiça social. Errou ao dizer em plena ditadura que o brasileiro não estava preparado para votar, “por falta de educação e porque se vota mais por amizade nos candidatos”. Mas mesmo os reis erram.
É tão grande e relevante a perda de Pelé, que a sua generosa família resolveu fazer seu funeral e sepultamento depois da posse de Lula, para não ofuscar a festa de inauguração do terceiro mandato do presidente eleito. Claro que para o destino do Brasil e dos brasileiros o novo governo importa muito mais do que a morte do rei. A atenção de jornais e jornalistas terá de ser amplamente dedicada aos primeiros movimentos do novo comando do país que assume amanhã. Mesmo assim, as exéquias de Pelé competirão pela atenção da mídia com as primeiras medidas do governo.
Por isso tudo, pela enormidade de Pelé, esta coluna de política não podia mesmo tratar de outro assunto.
República conciliatória
Começa amanhã uma nova era na nossa história. Com pouco mais de cinco séculos desde o seu descobrimento, o Brasil teve sete etapas na sua vida política reconhecidas por historiadores: Colônia, Império, Primeira República, Estado Novo, Quarta República, Ditadura Militar e Nova República. Depois do breve Jair Bolsonaro, que tentou matar e enterrar todas as premissas da Nova República, o país retoma a trajetória democrática em busca do bem-estar coletivo, da prosperidade e da felicidade. Não cabe a jornalistas nomear eras, mas se fosse me dada esta prerrogativa, batizaria esta nova etapa de República da Conciliação ou República Conciliatória. É gigantesco o esforço que o presidente Lula está fazendo para conciliar o país. Politicamente, o salto dado com a nomeação dos 37 ministros é digno do nosso recordista João do Pulo. Todos os setores estão ali contemplados. Mesmo alguns dos mais próximos do bolsonarismo raiz, aparentemente autoritário e intransigente, foram acomodados no novo governo. Um pessimista olharia a lista de nomeados e diria “não vai dar certo”. O otimista observaria que por trás das indicações há uma boa intenção.
Engolindo sapos
Obviamente Lula quer acertar, quer cumprir sua promessa de garantir três refeições diárias a todos os brasileiros. Quer terminar o seu terceiro mandato em condições de se reeleger ou de apoiar um candidato vencedor. E ninguém atende estas promessas e percorre esse longo caminho sem engolir sapos. Os primeiros já têm nome. São os anuros Juscelino Filho e André de Paula, indicados para os ministérios das Comunicações e da Pesca. Ambos votaram pelo impeachment de Dilma Rousseff, e Juscelino festejou publicamente a prisão de Lula. Duro? Chato? Claro que sim. Mas não há como governar um país tão dividido sem que haja pelo menos um pouco de jogo de cintura.
Filhos, netos, companheiros
Escrevi aqui em novembro de 2020 que a história eleitoral brasileira é repleta de casos de filhos e netos que se apropriam do nome e do capital político do patriarca da família para pedir votos e quem sabe passar o resto da vida pagando suas contas com dinheiro público. No Ministério de Lula, há dois casos clássicos, Renan Filho e Jader Filho. Renan tem mais tempo de estrada, já se construiu politicamente à sombra do pai, chegando a governador de Alagoas. Jader Filho é novato. O primeiro herdeiro da família Barbalho é seu irmão Hélder, governador do Pará. O filho de Jader Barbalho que leva o seu nome só agora começa a fazer “política”. Quem sabe em quatro anos ocupe a cadeira do pai no Senado. Lula o anunciou assim: “O Ministério das Cidades vai ser ocupado por um companheiro, filho de um companheiro, irmão de um companheiro, o companheiro Jader Filho”.
Brimos
Simone Tebet, que no segundo turno da campanha presidencial pediu que as pessoas usassem branco nas manifestações pró-Lula de que participava, usou blusa vermelha no dia em que foi nomeada para o Ministério do Planejamento. Vestiu vermelho e sua sorte então mudou? Bobagem, Simone não é supersticiosa, mas acredita que origem comum ajuda. “Somos de origem libanesa, não tem como dar errado”, disse a nova ministra sobre seu entendimento com o “brimo” Haddad.
Mec
O Ministério da Educação perdeu há mais de trinta anos a Cultura, que passou a ter pasta própria, mas ainda assim manteve o C da sua sigla antiga de Ministério da Educação e da Cultura. Agora, que ele foi entregue ao grupo do ex-governador Camilo Santana, a sigla volta a fazer sentido. Como Camilo nomeou para a Secretaria Geral a sua sucessora, Izolda Cela, e para o FNDE, Fernanda Pacobahyba, ex-secretária da Fazendo do seu estado, o MEC passa a ser conhecido como Ministério da Educação do Ceará.
Do lado de dentro
No documentário “Visita, presidente”, de Julia Duailibi, aprende-se que a Polícia Federal estava infiltrada no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, onde Lula se encontrava com militantes, assessores, parlamentares e companheiros petistas no dia da sua prisão. Agora, com a primeira ação policial contra os bolsonaristas radicais que atacaram Brasília nos últimos dias, sabe-se que a PF não tinha ninguém no acampamento em frente ao QG do Exército, que o novo ministro da Justiça, Flávio Dino, chamou de “incubadora de terroristas”.
As mentiras finais
Ontem, no seu penúltimo dia no poder, Jair Bolsonaro quebrou o silêncio e pregou suas últimas mentiras. Uma delas foi quase ofensiva. Ele disse que os manifestantes das portas de quartéis defendem a democracia e, pasmem, a imprensa. Sim, a imprensa, que estes mesmos manifestantes enxotaram sempre que puderam, mesmo a imprensa amiga. Depois, afirmou que nos seus quatro anos trabalhou “de domingo a domingo”, com poucas folgas para os passeios de jet-ski e para as motociatas. Francamente, todo mundo conhece o pavor que este homem tem do trabalho. Bolsonaro foi o mesmo, embora a iniciativa tenha um sentido diferente. Sua live teve o objetivo de blindá-lo juridicamente. Por isso, desautorizou os terroristas de Brasília. Tarde, mas antes tarde do que nunca.
Assessoria baixo clero
Bolsonaro já escolheu os assessores que tem direito de manter com recursos públicos na condição de ex-presidente da República. São oito. Um civil (um advogado) e sete militares, quase todos de baixo coturno: um coronel, um capitão, dois tenentes, um suboficial e dois sargentos. Com todo respeito aos praças e jovens oficiais, mas as escolhas mostram bem do que nos livramos.
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