segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

OS RESTOS A PAGAR DO ANO QUE SE FOI

Artigo de Fernando Gabeira

Virou o ano. Não quero alimentar a ilusão de que tudo recomeça do zero. A história seria impossível. Há muita coisa a ser lembrada se queremos realmente renovar.

Parte substancial do país começa o ano com esperança de melhoras. Outra parte está frustrada com o resultado das eleições e a dissipação de seus delírios. No princípio, eram 72 horas de espera e pronto; depois vieram os acenos do Tribunal Internacional, a prisão de Alexandre de Moraes, as conversas com extraterrestres, os hinos cantados diante de pneus.

Alguma coisa vai acontecer, diziam insistentemente. Alguma coisa sempre acontece, o mundo é um milagre dinâmico. Nem sempre acontece o que se espera; a realidade tem a autonomia de um gato, só vai para onde resolve ir, apesar dos desejos humanos.

O que acontecerá com essa parte do país? Parte talvez caia no cinismo, mas o gênio não volta mais para a garrafa. O movimento estará sempre aí, em estado latente.

Espero que o lado vitorioso tenha consciência disso. A recomposição do mundo político é um bom sinal, diante de propostas niilistas de acabar com tudo e entregar para as Forças Armadas.

As pessoas bateram continência, marcharam; às vezes era comovente vê-las mergulhar na infância: marcha, soldado, cabeça de papel.

O que quero dizer é o seguinte: o estopim de 2013 continua por aí, a qualquer momento pode explodir de novo. Por isso acho que foi um erro grande aumentar salários de ministros e deputados no apagar das luzes de 22.

De tudo resta um pouco. O que restou da política pode ser domado com habilidade. Mas outras realidades mais pesadas nos esperam.

As mudanças climáticas estão aí. Entra ano, sai ano, elas se agravam. Não havia dinheiro para áreas de risco no Orçamento. Parece que consideram as grandes chuvas apenas um acidente. Não percebem sua constância. Ano-Novo, temporais novos, infelizmente. É uma felicidade a ideia de que o governo vai proteger a Amazônia, conter a destruição de nosso principal bioma. Já é uma grande decisão, mas as mudanças climáticas pedem muito mais.

Teremos uma nova política industrial? Como transitar para a economia verde? Como se preparar para competir num mundo onde o baixo carbono é um fator decisivo? O que fará a nova ministra do turismo? O que fazer para explorar de forma sustentável nossas belezas, como dotar cada região de uma economia criativa? Vamos trabalhar a infraestrutura? Por que não focar nas ferrovias, no transporte fluvial?

Mesmo a saúde precisa de um enfoque ambiental. É preciso prevenir, ninguém aguenta os gastos e perdas, quando se concentra apenas em curar.

Em síntese, o ano é novo, mas os problemas não. Se o Brasil não despertar para a realidade climática e não se reinventar, suas chances de êxito serão reduzidas. Claro que tudo pode continuar como antes, apenas um pouco melhorado. Virão novos anos, novos Réveillons, o mundo não vai acabar. Mas essas realidades que atravessam anos, a distância entre política e sociedade, o agravamento do aquecimento global, elas tendem a cobrar muito caro.

Ao mencioná-las, não quero dizer que nada muda. Pelo contrário, as mudanças que se acumulam na cabeça das pessoas e nas dobras do clima tendem a produzir furacões mais marcantes que uma noite de fogos de artifício, um mergulho no mar e uma lista de pequenas promessas comportamentais.

Como dizia Cazuza, o tempo não para. Já estamos, de novo, remando em mar aberto. Tudo de bom para a maioria do país, que espera dias melhores. Suspeito que muitos queiram comer uma picanha, tomar uma cerveja e encher a casa de eletrodomésticos. Espero apenas que não se esqueçam de que merecem muito mais: paz, cultura, diversão, arte e harmonia maior com a natureza.

Artigo publicado no jornal O Globo em 02/01/2023

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