domingo, 1 de janeiro de 2023

RECONSTRUÇÃO PESSOAL

Muniz Sodré*, Folha de S. Paulo

Eleição não é vitória partidária, e sim do voto contrário a um caráter negativo e favorável a outro

Suprema autoridade judiciária desculpou-se ao presidente eleito por não lhe ter permitido, quando ainda em detenção, despedir-se do irmão morto. Não foi gesto institucional, mas pessoal. Na melhor das hipóteses, repercussão moral de recomendação recente do papa Francisco sobre "vigilância do coração".

Entidade nenhuma é agente moral, isso é apanágio de pessoas, como salienta o linguista e ativista Noam Chomsky.

O mesmo juízo aplica-se a partido político: um programa de melhor distribuição de justiça social ou de retidão de conduta não lhe atribui disposição de alma. Instituições podem guiar-se por princípios equitativos, mas são constituídas por pessoas, às quais cabe agência moral.

Isso não implica individualismo, enquanto autonomia de uma isolada "dignidade moral" frente à sociedade, e sim prevalência de qualidades pessoais, de valores humanos para além da máquina social. Pessoa é o indivíduo considerado em seu revestimento moral, portanto, naquilo que o torna sensível à coexistência de um outro. Saber que alguém tem o direito de comparecer a um funeral, e ainda assim impedi-lo, é um fato de pessoa, do invólucro dos atributos de caráter.

A corrosão da democracia acoplada à corrosão do caráter na sociedade incivil demanda atenção ao fenômeno, que perpassa até empresas, obrigando-as a remanejar regras utilitaristas, com vistas a responsabilidade social e compliance. Amplia-se o campo ético da pessoa. É ilustrativo o caso atual do Twitter: o poder da organização mostra-se subitamente afetado pela superexposição negativa do caráter do novo dono, competência técnica à parte.

Não se trata de verdade última do sujeito, mas de reconstrução pessoal, assim como se faz reengenharia empresarial ou retrofit arquitetônico. Nenhum delírio de marketing motivacional: é algo posto em prática nas novas gerações, em estilos de vida que modulam a personalidade.

Está em pauta, aliás, o modo "goblin" de ser, jeito autoindulgente e desleixado dos jovens pós-pandêmicos, que não é uma mutação identitária, mas novo "look" pessoal de classe média.

Por um lado, pessoa e imagem respiram na atmosfera da mídia, sem exigências de caráter. Por outro, reflorescem na cena política, na medida em que o esvaziamento da representação parlamentar abre-se para populismos, assim como para o confronto de qualificações morais relevantes. Frente Democrática, sim, para repelir o extremismo.

Mas a eleição presidencial não é vitória partidária, e sim do voto popular contrário a um caráter negativo e favorável a outro, que se compromete a resgatar os miseráveis da miséria. Logicamente, é também um ato de esperança na reconstrução das velhas práticas.

*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar Nagô".

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