MP sobre apostas corre risco de legalizar os jogos
Atrás de receitas novas para bancar os planos do governo federal, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, cutucou um vespeiro e editará em breve medida provisória (MP) para regulamentar (e cobrar impostos) das apostas esportivas online. É um erro.
É preciso aguardar a modelagem (e se ela terá aval ou não do Congresso) para saber com certeza, mas a arrecadação esperada por ele, de até R$ 15 bilhões por ano, parece irreal, segundo especialistas. Ex-subsecretário de apostas do Ministério da Economia, Iuri Castro estimou em artigo publicado ontem que o governo receberia R$ 1,2 bilhão no cenário médio e R$ 2,6 bilhões no mais otimista, se tivesse mercado equivalente ao do Reino Unido. O ex-secretário de Planejamento, Energia e Loteria Alexandre Manoel fez projeção parecida ao jornal “O Estado de S. Paulo”: “Na melhor das hipóteses, [seria] entre R$ 600 milhões e R$ 1 bilhão por ano”. Grande parte do dinheiro só entrará uma vez, com as licenças para operação (de R$ 30 milhões por cinco anos).
Está claro que o governo Lula pode comprar gato por lebre, mas o principal risco é que a MP leve a uma liberação maior dos jogos de azar no país. O lobby do setor intensificou e até produziu documentário para “mostrar” que o Brasil perde bilhões com o jogo clandestino. Sob a tutela do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), os deputados aprovaram por 246 votos a 202 a legalização de cassinos, bingos e jogo do bicho. O texto parou no Senado, mas a MP deve ser a via expressa para enviar a proposta à sanção.
Foi assim, inclusive, que as apostas esportivas online foram autorizadas no país a partir de 2018. O governo Temer enviou medida provisória para mudar a divisão das verbas das loterias federais e destinar parte para a segurança pública. O deputado Vicente Cândido (PT-SP) e o relator da MP, o então senador Flexa Ribeiro (PP-PA), incluíram emenda para autorizar as apostas por cota fixa, que então eram incipientes no Brasil.
A regulamentação deveria ocorrer em até quatro anos, nunca veio, mas essas empresas se espalharam pela sociedade a ponto de dificultar a volta ao cenário anterior, de proibição. De lá para cá as “bets” passaram a patrocinar influenciadores nas redes sociais que prometem ganhos fáceis, 19 dos 20 clubes da Série A e também a mídia esportiva (e não é difícil achar sites especializados em que a propaganda é travestida de “matéria jornalística”).
Também surgiram denúncias de trapaças na Série B, motivo até de um pedido de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara pelos defensores da legalização do jogo. A despeito do risco para o próprio esporte e para a saúde dos torcedores, a influência sobre os clubes começa a ser usada agora para pautar o debate público.
Quase todas as empresas do setor têm sede fora do país, muitas vezes em paraísos fiscais, sem que seja possível averiguar os reais donos. Há empresários sérios, mas não faltam também relatos de bicheiros por trás delas e a polícia já identificou que um braço-direito do famoso Carlinhos Cachoeira operaria uma dessas empresas. Também não faltam relatos históricos, no Brasil e no exterior, de que o jogo está muitas vezes ligado a grupos que atuam com violência, subornos e propina.
O governo não tem estrutura para fiscalizar esse setor e atualmente a área responsável possui poucos funcionários. Enquanto isso, o jogo corre solto e alguns dos maiores patrocinadores dos clubes e campeonatos burlam a lei e usam as apostas esportivas como ponte para divulgar sites de cassinos. No governo Temer, um técnico que participou de reunião com parlamentares, Receita Federal e o lobby do jogo conta que ficou assustado ao perceber que o próprio poder público já havia sido cooptado e auditores do Fisco dividiam os cargos de uma futura agência reguladora.
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Exemplo dessa falta de controle está numa empresa criada em 2020 para facilitar o acesso bancário, mas cujo sistema de checagem frágil pode facilitar golpes. A Conta Zap permite abrir uma conta 100% digital, pagar boletos, fazer Pix e transferir dinheiro por mensagens de WhatsApp. Seria lindo e prático, não fosse a porteira aberta para fraudes. Para abrir a conta basta digitar CPF e data de nascimento da pessoa, qualquer pessoa, sem mostrar nenhum documento.
Procurada, a empresa disse que usa birôs privados e consultas públicas para a validação cadastral. “Todas as contas são abertas inicialmente com limite máximo de R$ 50 por mês e movimentações superiores passam por uma análise mais aprofundada do cliente”, com pedido dos documentos físicos. “Eventuais relatos de golpe são tratados pela nossa equipe de forma tempestiva, utilizando as regras, prazos e mecanismos de devolução indicados pelo órgão regulador”, afirmou em nota.
Não é preciso um hacker, porém, para movimentar dinheiro se passando por outra pessoa. Abri duas contas com dados de colegas do Valor (mas poderiam ser os do presidente do Banco Central, facilmente encontrados na internet), cadastrei chaves-pix com um e-mail qualquer e em poucos segundos mandei e recebi Pix como se fosse eles.
Há quase duas centenas de queixas no Reclame Aqui sobre contas que teriam sido abertas no nome de pessoas que não as reconhecem ou Pix feitos com o CPF de alguém que sequer conhecia “a tal da Conta Zap”. Há 87 reclamações no ano passado, segundo o site, e já são 41 neste trimestre. A empresa tem até resposta padrão ali: orienta a pedir ressarcimento no banco emissor do Pix e fazer boletim de ocorrência. São formas de evitar novas fraudes, mas que jogam a responsabilidade de resolver o problema para quem foi lesado.
Questionado pelo Valor, o Banco Central lavou as mãos e disse que a “orientação é que o cidadão procure conhecer o mercado” para evitar golpes. “O CNPJ [da empresa] não está na lista de instituições reguladas e supervisionadas pelo BC”, disse em nota. (Em tempo, a Conta Zap tem aval do BC para o Pix.)
Apesar das fragilidades, a Conta Zap entrou no mundo das apostas online há cinco meses. Quer repetir o “modelo simplificado” para apostas com dinheiro. Ao mandar um “oi” no Whastapp da conta digital, a primeira mensagem que aparece é “ Ganhe dinheiro” e um emoji de foguinho.??
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