Mesmo que formalmente reverencie ex-presidente, ele não é seu discípulo ou fiel a seus interesses
A disputa patrimonial na extrema direita nacional é a sensação da temporada. Está além das eleições municipais. Pablo Marçal ocupou espaço sem pedir licença; contestado, resistiu. Debilitou as forças de Jair Bolsonaro e pôs em dúvida sua liderança. Modelo 4.0 do reacionarismo, reduz o ex-presidente a uma versão beta, ultrapassada, cheia de bugs. Mesmo que formalmente o reverencie, Marçal não é seu discípulo ou fiel a seus interesses. Antes, parece a kryptonita de Bolsonaro.
Mais ousado, de ataques mais baixos, fortes e desconcertantes, o ex-coach se coloca não apenas como empecilho para a reeleição do prefeito Ricardo Nunes, mas também como pesadelo às pretensões do ex-presidente e, talvez, aos projetos de Tarcísio de Freitas, que, ironicamente, passam a ser percebidos como parte do sistema.
Contudo Marçal não é novo, menos ainda surpreendente. Brota da mesma escuridão do presente. Pertence à novíssima geração de extremistas reacionários, antissistema, candidatos a autocratas, montados num pretensioso anarcocapitalismo que confunde esforço pessoal e empreendedorismo com bizarrice, caos e carnificina social.
Como Jair Bolsonaro, sua força é resultado do espírito do tempo. Ambos são filhos da fúria da transição entre os mundos analógico e digital; da quarta revolução incapaz de incluir — e de ser assimilada — por hordas humanas de desesperados ou bestializados perdidos numa longa transição, potencializadas pela exploração política da ignorância. Jovens das periferias ou das largas avenidas por onde uma nova oligarquia economicamente instruída desfila sem cultura e educação políticas.
São instrumentos do mal-estar que não controlam, tampouco lideram. Apenas vocalizam, beneficiando-se de misérias. São frutos do movimento antissistema que se espalha pelo mundo, críticos do Estado, política e democracia, desgastados por incapazes de se antecipar aos mais perniciosos efeitos da transformação. Soldados do iliberalismo e da destruição do edifício iluminista, afetado pelo esgotamento de Yalta, Potsdam, Bretton Woods; pelo abalo da esperança (vã?) da queda do Muro de Berlim.
Um processo que levou ao Brexit (2016) a Donald Trump (2016), Jair Bolsonaro (2018), Nayib Bukele (2019), Javier Milei (2023). Ou, antes, Hugo Chávez (1999), Vladimir Putin (2000), Narendra Modi (2001), Daniel Ortega (2007), Viktor Orbán (2010).
Figuras como Trump, Bolsonaro ou Marçal mais vocalizam essa fúria do que a lideram. Espalham o medo e colhem o poder sem saber exatamente o que fazer com ele, pois têm os olhos no passado e desconhecem qualquer ideia de futuro para além do mimetismo dos prédios de Dubai ou das lojas de Miami.
A boa notícia é que já não passam ao largo da percepção da maioria da população que resiste indicando preferir a civilização à barbárie. Antes atônitos e divididos, herdeiros do velho Iluminismo já se impõem com frentes políticas em defesa da democracia, da diversidade e da humanidade. Recentes eleições no Reino Unido e na França parecem ser prova disso. Assim como a contestação continental ao processo político venezuelano, a conciliação do Partido Democrata nos Estados Unidos contra Donald Trump é alvissareiro sinal de resistência e resposta.
Por seu tamanho e sua dimensão simbólica, a cidade de São Paulo terá oportunidade de demonstrar que aqui também será assim: uma frente ampla — para vencer a eleição e governar a cidade — contra o estrondoso som e a fúria que, destruindo tudo, normalmente, significam nada.
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