quinta-feira, 31 de outubro de 2024

O PRESENTE DE MADURO PARA LULA

Maria Cristina Fernandes, Valor Econômico

Ao atacar a política externa brasileira, presidente venezuelano oferece a Lula a possibilidade de se reconciliar com a frente ampla que o elegeu

Nicolás Maduro deu um presente a Luiz Inácio Lula da Silva. O presidente não o merecia, mas só tem a agradecer. A hostilidade venezuelana à diplomacia brasileira não poderia ter vindo em momento mais alvissareiro. Foi a carona que Lula precisava para alcançar o vento à direita que varreu o Brasil no domingo.

Maduro convocou o embaixador da Venezuela no Brasil, Manuel Vadell, e, na ausência da embaixadora, o encarregado de negócios da Embaixada Brasileira em Caracas, Breno Hermann, para pedir explicações. A atitude ainda está separada por alguns degraus do rompimento de relações, mas dá pro gasto.

Trata-se de uma guinada da rota traçada a partir de 30 de maio de 2023. Naquele dia, Lula recebeu Maduro no alto da rampa do Palácio do Planalto, honrando o chefe do Estado com o qual seu antecessor rompera relações. Não ficou por aí. O presidente disse que havia se construído uma “narrativa” contra a Venezuela nos últimos anos, que o regime de Maduro tinha problemas “de democracia” e que trabalharia para a entrada do país no Brics.

No dia seguinte já surgiriam os sinais de que estava na contramão. Anfitrião de um encontro de presidentes sul-americanos, foi rechaçado da direita à esquerda. O presidente uruguaio, Lacalle Pou, disse que Lula estava “tapando o sol com a peneira” e o chileno Gabriel Boric, que não se podia fazer “vista grossa” aos problemas da Venezuela.

O rechaço dos vizinhos não impediu que Lula dobrasse a aposta. O Brasil entrou de cabeça num acordo com vistas obter garantias da Venezuela por eleições íntegras em 2024 em troca do levantamento de sanções americanas. A Venezuela voltou a fechar contratos e as petroleiras americanas conseguiram o óleo que queriam num momento de turbulência do mercado provocado pela guerra da Ucrânia, mas Maduro não entregou as atas que comprovariam o compromisso por eleições íntegras.

Os sinais de que não o honraria já estavam claros. Em março, a candidata de oposição Corina Yoris, foi impedida de se registrar. O Itamaraty registrou desagrado, Maduro disse que a manifestação era “padrão Departamento de Estado americano”. A tréplica veio de Lula, que subiu o tom e chamou de “grave” o veto ao registro.

A tensão não impediu o presidente de mandar seu assessor especial à Venezuela para acompanhar a votação em julho. Ao fazê-lo, contrariou a vontade, segundo Celso Amorim disse à Comissão de Relações Exteriores da Câmara, expressa pelo próprio Maduro.

O presidente venezuelano trucou e deixou o Brasil num beco sem saída até que, no Brics, Maduro ofereceu, de bandeja, uma saída para Lula lhe dar o troco. Um ano e cinco meses depois de dizer que trabalharia pela entrada da Venezuela no Brics, o Brasil vetou sua inclusão na lista de 13 países a serem consultados pela Rússia, atual presidente do bloco, para se tornarem “parceiros” do Brics, categoria dos sem-voto.

O acidente doméstico que privou Lula de viajar a Kazan lhe permitiu operar o troco à distância. Maduro desembarcou de surpresa no encontro, quando a lista de países já estava fechada. Na quarta, 23, pela manhã, a Putin anunciou aos integrantes do Brics. Até a quinta, Maduro tentou dar uma carteirada. Quando percebeu que não teria sucesso, apostou na cizânia interna da política externa brasileira. Na primeira das notas que dirigiu contra o veto brasileiro mirou no embaixador Eduardo Saboia, secretário de Ásia e Pacífico do Itamaraty.

Buscava o apoio da ex-presidente Dilma Rousseff, presidente do banco do Brics. Durante a visita de Lula à China, em abril, a ex-presidente avistou Saboia e manifestou seu desagrado, sem eco. Não foi a primeira vez que uma investida de Dilma contra o diplomata fracassou. Durante seu primeiro governo, Saboia era o encarregado de negócios da Embaixada do Brasil na Bolívia quando decidiu montar uma operação, com a ajuda de fuzileiros navais, para tirar o senador de oposição, Roger Molina, do país.

Refugiado havia 452 dias na Embaixada brasileira, Molina não conseguia obter, do governo Evo Morales, salvo-conduto para viajar, a despeito de o governo brasileiro ter aceito seu pedido de asilo. A operação de fuga, que Saboia justificaria pela definhamento do senador, levaria a uma crise com a Bolívia que custaria o cargo do chanceler Antonio Patriota.

A segunda investida de Maduro foi em cima do próprio chanceler, Mauro Vieira, nesta segunda, em entrevista à televisão venezuelana, ao acusar o Itamaraty de “conspirar” contra a Venezuela. E, finalmente, nesta quarta, chegou em Amorim. Na véspera, o assessor especial do presidente, em audência pública na Comissão de Relações Exteriores da Câmara, falou em “mal-estar” com a Venezuela, disse que o país havia “quebrado a confiança” do governo brasileiro e que sua presença “não contribui” para o Brics.

A única autoridade venezuelana a atacar o presidente foi Tarek Saab, chefe do Ministério Público, que acusou Lula de ser um “cooptado pela CIA”, mas, ao chamar Amorim, de “mensageiro do imperialismo” americano, Maduro prestou enormes serviços - à diplomacia brasileira, que, desgastada por cizânias internas, se uniu, e ao próprio presidente, cuja política para a Venezuela abriu, desde a posse, um fosso com a frente ampla de partidos que o elegeu. Num momento em que a direita, agigantada, se divide, a sorte passou selada e, agora, só resta a Lula administrá-la.

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LULA E MADURO NUMA RELAÇÃO ABUSIVA

Malu Gaspar, O Globo

Os manuais de psicologia definem um relacionamento tóxico como aquele em que um dos lados ofende constantemente o outro com agressões, humilhações e por vezes violência física. Em geral, o ofensor pede perdão e promete mudar de comportamento, mas depois o ciclo recomeça, diante de uma vítima incapaz de reagir. Relações bilaterais não são namoro, e movimentos diplomáticos deveriam ser guiados por estratégia e racionalidade. Mas tudo na novela entre Brasil e Venezuela lembra a história de uma relação abusiva.

No último capítulo, nesta quarta-feira, Nicolás Maduro chamou seu embaixador para consultas, passo que pode ser seguido pelo rompimento de relações, e o presidente da Assembleia Nacional da Venezuela enviou para a aprovação dos parlamentares uma moção declarando persona non grata o assessor especial do presidente LulaCelso Amorim.

O chilique diplomático foi uma reação ao veto brasileiro à entrada da Venezuela no grupo de parceiros do Brics, bloco econômico de que também são protagonistas RússiaChinaÍndia e África do Sul.

Maduro apareceu de surpresa na reunião da semana passada que aprovaria os novos parceiros em Kazan, na Rússia, para tentar forçar sua entrada, mas voltou para casa humilhado. Numa entrevista no evento, o próprio Vladimir Putin disse que era “impossível” incluir a Venezuela sem consenso, em referência à posição do Brasil. Dias depois, Maduro acusou o governo Lula de agressão.

Quem acompanha a relação de Lula e Maduro tem o direito de se perguntar como foi que ela se deteriorou tão rapidamente. Desde a transição, Lula se propôs a fazer diferente de Bolsonaro, que retirou da Venezuela o embaixador e outros sete diplomatas por não reconhecer o governo Maduro.

O diagnóstico era que as hostilidades agravaram o isolamento da Venezuela e tornaram o país palco de “guerra fria” opondo Estados Unidos a Rússia e China — uma situação que só seria revertida com diálogo.

Desde então, o que não faltou foi conversa e afago. Lula defendeu Maduro de todos os modos possíveis. Disse que a Venezuela era uma democracia porque faz muitas eleições, afirmou que o conceito de democracia era relativo e ainda exortou a oposição a Maduro a não “ficar chorando” por seus candidatos terem sido sistematicamente bloqueados pelo regime.

Em maio de 2023, recebeu Maduro com tapete vermelho em Brasília e sugeriu a inclusão da Venezuela no Brics. Em outubro, diante da desconfiança generalizada sobre a confiabilidade das eleições que se avizinhavam, enviou Amorim a Barbados para negociar um acordo entre oposição e governo por eleições limpas.

O acordo foi descumprido sem a menor cerimônia. Mesmo assim, há exatos três meses, enquanto opositores eram presos e o país mergulhava no “banho de sangue” que Maduro prometera caso não ganhasse as eleições, Lula passou pano:

“Estou convencido de que é um processo normal, tranquilo, o que precisa é as pessoas que não concordam terem o direito de provar que não concordam, e o governo tem o direito de provar que está certo”, declarou o presidente.

Corta para a última terça-feira, quando Amorim disse na Câmara dos Deputados que houve “quebra de confiança” em Maduro, pois ele prometera entregar as atas de votação da eleição presidencial e nunca entregou. Ainda assim, recusou-se a classificar a Venezuela como ditadura, porque, embora o governo Lula “hoje em dia” seja crítico ao regime, não é um “esporte rentável ficar classificando os países”.

Não é novidade para ninguém que Maduro não está a fim de conversar, e sim de mandar. Embaixadores dizem nos bastidores que Lula, que pelo jeito se enganou a respeito de seu poder e influência, está irritado com o ex-companheiro. Mas certamente não foram o ego ferido ou a preocupação com a democracia as únicas razões para a guinada sobre a Venezuela em plena semana de eleições municipais.

O problema é que, agora, Lula e Amorim terão muita dificuldade para se desvencilhar da armadilha diplomática que eles mesmos criaram ao bancar Maduro perante o mundo e o eleitorado brasileiro. E já está contratado novo constrangimento para o final de 2025, a meses da eleição presidencial de 2026, quando o Brasil sediará a próxima reunião do Brics, e Maduro deverá tentar entrar no grupo novamente.

Enquanto isso, diplomatas e políticos ligados ao governo tentam ver no fato de Maduro até agora não ter atacado Lula diretamente um sinal de que ainda existe brecha para acordo. É bem assim que funcionam os relacionamentos tóxicos.

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O ACORDO SOBRE O AJUSTE FISCAL

Míriam Leitão, O Globo

As medidas de cortes de gastos do governo estão na avaliação jurídica antes do anúncio. Uma tarefa árdua num orçamento tão engessado

O acordo interno do governo sobre as medidas fiscais tem mais relevância do que parece. Normalmente, em qualquer governo, há visões diferentes de onde se esteja. Nesse, a Casa Civil quer mais investimento para viabilizar o PAC e a Fazenda quer reforçar o arcabouço fiscal. Os dois ministérios chegaram em entendimento sobre isso e agora é redação, avaliação jurídica e anúncio. A estratégia para abreviar o tempo no Congresso será apensar as medidas a alguma proposta de emenda constitucional que esteja tramitando. O que se fala no governo é que a dinâmica dos gastos obrigatórios tem que ser compatível com os limites do arcabouço fiscal. Isso é bem difícil.

O arcabouço permite um crescimento de despesas, mas com limites estreitos. Elas podem subir acima da inflação dentro de uma banda de 0,6% a 2,5%, e apenas 70% da alta real das receitas. É dupla trava. O economista Samuel Pessoa diz que o arcabouço foi bem recebido quando foi votado, mas todo mundo viu que havia inconsistências. Uma delas é exatamente o que é mais caro para o presidente Lula.

—A regra de indexação dos benefícios ao salário mínimo é incompatível com o arcabouço porque ele eleva o custo das políticas públicas vinculadas ao salário mínimo a uma velocidade maior do que o limite. Entende-se perfeitamente o desejo do presidente Lula de dar aumento real ao salário mínimo, ele deseja que o ganho de produtividade da sociedade seja compartilhado com os trabalhadores de baixa renda. Mas a indexação dos benefícios ao salário mínimo, que está tendo aumento real, gera crescimento das despesas públicas a uma velocidade insustentável. Há outra inconsistência. Os gastos de saúde e educação crescem 100% da receita corrente líquida.

Não é fácil a vida de quem quer fazer ajuste fiscal. Há pressões de cada ministério setorial, há desejos do governo de ter a gestão aprovada pela população, há mudanças do país que impactam principalmente os gastos com a previdência. O orçamento é engessado. Existem mínimos constitucionais para saúde e educação. Como resolver essa equação tem sido o tormento de todo governo que tenta a sério ajustar as contas públicas. O ministro Fernando Haddad e a ministra Simone Tebet têm tentado seriamente. Antes de tudo, tiveram que consertar os estragos do vale-tudo eleitoral que foi a política econômica de 2022.

A dívida pública está alta e subindo, o déficit a alimenta, tanto quanto os juros altos. Reduzir a Selic, sem queda da inflação, pode ter efeito bumerangue porque alimenta a desconfiança, a inflação e contrata juros mais altos e elevação do risco. Por isso, a solução é ajuste das despesas, mas quando os economistas bradam “cortem os gastos” são poucos os que saberiam dizer exatamente onde cortar se estivessem no governo, dadas as limitações constitucionais que existem. É uma construção árdua de consensos técnicos e políticos para se avançar em qualquer reforma na estrutura dos gastos públicos no Brasil. Em entrevista na porta da Fazenda, o ministro Fernando Haddad confirmou que está na fase final da preparação das medidas.

— O meu trabalho é esse, tentar entregar a melhor redação possível para que haja compreensão do Congresso e nós possamos sair desse redemoinho que não faz sentido à luz dos indicadores econômicos do Brasil.

Ontem mesmo saiu o dado do Caged de criação de 248 mil vagas em setembro, a PNAD do IBGE deve mostrar hoje nova queda da taxa de desemprego para 6,5%. E o PIB está crescendo ao ritmo de 3%, acima do esperado pelo segundo ano consecutivo.

O problema é que a inflação não dará sinais de alívio nos próximos meses, exceto na conta de luz. O petróleo está caindo, mas seu efeito é anulado pela alta do dólar. A inflação de outubro deve vir em 0,51%, segundo a LCA. A consultoria projeta em 4,7% em 12 meses devido à alta dos alimentos. O item mais delicado, alimentação no domicílio deve ficar acima de 1% em cada um dos três meses finais do ano, e deve fechar o ano, segundo a MB Agro em 7,6%. A queda do preço da carne já foi completamente revertida este ano, em que o item subiu forte pelo fim do ciclo do boi, que havia beneficiado o consumidor no ano passado. Tudo isso cria esse quadro de economia com boas notícias sim, mas com pontos de preocupação e essa real necessidade de ajuste fiscal para fortalecer o marco fiscal.

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MORRE TAVINHO PAES

Do Blog do Mauro Ferreira, g1

Poeta e letrista carioca Tavinho Paes deixa obra musical de escrita pop, feliz e jovial ao morrer no Rio aos 69 anos

Ouvidos em vozes como as de Caetano Veloso e Marina Lima, os versos do compositor retrataram sem culpa o sexo e o vale-tudo da década de 1980.

 OBITUÁRIO

 Com as letras modernistas escritas para a irmã e parceira Marina Lima a partir da segunda metade dos anos 1970, Antonio Cicero (1945 – 2024) fez um país em que desbravou território para outros poetas que entraram no universo da música pop como letristas.

Um deles foi Luiz Octávio Paes de Oliveira (26 de janeiro de 1955 – 31 de outubro de 2024), o compositor, escritor e jornalista carioca conhecido como Tavinho Paes.

Morto hoje aos 69 anos, em hospital da cidade natal do Rio de Janeiro (RJ), em decorrência de complicações de duas cirurgias feitas na sequência de infarto sofrido em setembro, Tavinho Paes debutou como letrista no início dos anos 1980, década áurea da produção musical do artista multimídia.

Não por acaso, Paes escreveu letras para músicas de Marina Lima, com quem iniciou parceria em 1981 com a feitura dos versos de Gata todo dia, música também assinada por Leo Jaime.

O rock Acho que dá, lançado pela cantora no álbum ...Desta vida, desta arte... (1982), exemplificou a escrita pop e jovial de Paes em versos como “Periga escuta na esquina / Caretas marcam sob pressão / Que a gente sempre com tudo em cima / O céu, a terra, a vida, a visão”.

Tavinho Paes também escreveu a letra de Totalmente demais (1986) para música de Arnaldo Brandão – o parceiro mais frequente do poeta – e Roberio Rafael gravada pela banda Hanoi Hanoi e, no mesmo ano, amplificada na voz de Caetano Veloso em disco ao vivo batizado pelo cantor com o nome da composição que perfilava mulher linda e libertária às voltas com sexo, drogas e gays. “Linda como um neném / Que sexo tem, que sexo tem? / Namora sempre com gay / Que nexo faz, tão sexy gay?”, cantava Caetano, ecoando os versos da Paes.

Totalmente demais é uma das músicas mais conhecidas da obra de Tavinho Paes ao lado de Blá, blá, blá... Eu te amo (Rádio Blá), outra música lançada em 1986 pela banda Hanoi Hanoi e amplificada na voz de um cantor, no caso Lobão, que a gravou no ano seguinte no álbum Vida bandida (1987).

Parceiro de Fausto Fawcett, Moraes Moreira (1947 – 2020) e Nelson Jacobina (1953 – 2012), Tavinho Paes também se aventurou pelo universo da canção pop romântica das FMs dos anos 1980, escrevendo sucessos para o grupo Roupa Nova, que gravou Linda demais e De volta pro futuro (parcerias de Paes com Kiko, baixista do grupo) em 1985 e 1987.

Em qualquer segmento, Tavinho Paes fazia letras coloquiais que versavam sobre amor, desejo e sexo sem culpa. Libertária e por vezes marginal, a obra musical do poeta pop captou as loucuras e o vale-tudo da década de 1980. Rumba louca, aliás, foi o título da parceria de Paes com Moacir Albuquerque gravada em 1983 por Gal Costa (1945 – 2022).

Finda a era pop dos anos 1980, na qual teve até música lançada por Xuxa em 1986 (She-ra, parceria do letrista com Joe), Paes emplacou Sexy yemanjá em 1993. Pepeu Gomes é o parceiro de Paes na música veiculada na abertura da novela Mulheres de areia (Globo, 1993) na gravação original feita pelo próprio Pepeu.

Dentro dessa diversidade pop, Tavinho Paes construiu obra desencanada, movida pelo espírito jovial que animava o poeta e letrista que hoje sai de cena, já imortalizado pelos versos que escreveu e que ainda ecoarão através dos tempos.

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PEC DA SEGURANÇA É NECESSÁRIA PARA COMBATER CRIME

Editorial O Globo

Encontro de Lula com governadores abre caminho para ação integrada

Foi oportuno o encontro do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com 13 governadores nesta quinta-feira em Brasília para discutir a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança, conjunto de medidas elaborado pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, que amplia o papel do governo federal na área e cria bases para maior integração no combate à violência. Lula disse que a PEC é o início da discussão. A proposta só avançará se houver diálogo com os estados.

A PEC tem muitos méritos. O maior é tirar o governo federal da apatia e conferir-lhe o protagonismo necessário para traçar diretrizes e coordenar o combate a organizações criminosas que impõem o terror. Embora a segurança pública seja tarefa constitucional dos estados, Brasília não pode se omitir, uma vez que há muito o problema ultrapassou os limites locais. Facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, ou o Comando Vermelho (CV), do Rio, controlam rotas internacionais do tráfico, atuam em diferentes estados e até no exterior, como multinacionais do crime. Evidentemente, os estados sozinhos não têm como enfrentá-las. Desde a promulgação da Constituição de 1988, a criminalidade mudou.

O texto propõe incluir na Constituição o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), modelo semelhante ao SUS. Embora tenha sido criado em 2018, ele ainda não funciona plenamente. Como acontece na saúde, ele poderia facilitar a integração entre as três esferas de governo, dando maior agilidade às decisões. A Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF) teriam atribuições ampliadas, especialmente no combate às organizações criminosas. É positiva a ideia de transformar a PRF em polícia ostensiva com a missão de atuar também em ferrovias, hidrovias e áreas indígenas.

A iniciativa inclui também a integração das bases de dados. É um absurdo que registros de ocorrência e informações sobre antecedentes criminais ainda hoje não sejam compartilhados entre os entes federativos. Isso só dificulta a atuação das forças de segurança e facilita a dos criminosos. É importante, ainda, a atuação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) nas investigações sobre lavagem de dinheiro. No combate ao crime organizado, o cerco às finanças das quadrilhas é o modo mais eficaz de desbaratá-las.

Ainda que tardio, o reconhecimento do governo federal é um avanço. Em gestões petistas anteriores, a segurança sempre foi tratada como tabu. Temia-se levar o desgaste para dentro do Palácio do Planalto. Mas, cedo ou tarde, a conta sempre chega a Brasília. A segurança é um dos pontos de vulnerabilidade do governo Lula, mostram pesquisas de opinião. É também uma das maiores preocupações dos brasileiros.

Há resistências contra a PEC. Parte dos governadores reagiu temendo esvaziamento das polícias locais. Mas trata-se de assunto de Estado que não deve ser contaminado pela luta política. A ideia da PEC é que as forças federais se ocupem prioritariamente das organizações criminosas, como tráfico e milícia. Ela não exime os estados de suas responsabilidades na segurança. Há hesitações também dentro do Planalto. O texto foi enviado à Casa Civil em junho e até agora pouco avançou. É fundamental que governo federal e estados busquem um consenso para atuação coordenada na segurança. O modelo atual não tem funcionado. A PEC é uma oportunidade de aperfeiçoá-lo.

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O POPULISMO PREVALECE

Merval Pereira, O Globo

Lula e Bolsonaro sabem que, numa disputa presidencial no Brasil, vale mais o carisma dos candidatos que programas de governo

Já fizemos duas consultas populares sobre o melhor sistema de governo para o país, uma em janeiro de 1963, outra em abril de 1993. Nas duas o presidencialismo venceu o parlamentarismo. Não é à toa, portanto, que o ex-presidente Jair Bolsonaro esnoba as alternativas que se colocam no campo da direita, e Lula continua imbatível como grande líder da esquerda. Os dois sabem que, numa disputa presidencial no Brasil, vale mais o carisma dos candidatos que programas de governo.

A vitória da centro-direita nas eleições municipais recentes demonstra que os partidos dessa tendência estão mais organizados nacionalmente que a esquerda, e Bolsonaro, mesmo tendo evidentemente saído menor desta eleição, continua sendo a melhor opção eleitoral da direita. Errou em São Paulo, quando ficou tentado a apoiar Pablo Marçal e disse que o prefeito Ricardo Nunes, afinal reeleito, não era o seu candidato ideal. O governador Tarcísio de Freitas bancou o prefeito desde o início, ganhou e cacifou-se como principal alternativa na corrida presidencial.

Se Marçal não fosse uma ameaça a sua própria liderança, Bolsonaro se sentiria mais à vontade o apoiando. Como tem a desvantagem de estar inelegível — e acredito que dificilmente terá permissão para concorrer —, muitos candidatos já se apresentam, especialmente governadores, como Tarcísio em São Paulo, Ronaldo Caiado em Goiás, Romeu Zema em Minas, Ratinho Júnior no Paraná, Eduardo Leite no Rio Grande do Sul. Mas Bolsonaro tem uma vantagem: é o único líder popular da direita que pode se contrapor a Lula. Nenhum outro governador, entre os que podem se candidatar a presidente em 2026, tem liderança popular.

Embora a polarização não tenha se efetivado nesta última eleição, a política corre entre esses dois polos, Lula na esquerda, Bolsonaro na direita. Nenhum deles tem força para eleger um sucessor. Mesmo Dilma Rousseff era “a mulher do Lula” na campanha presidencial. Até porque o presidencialismo é muito pessoal, depende menos de projetos ou programas e mais da figura patriarcal. Historicamente, no Brasil, os candidatos populistas se elegeram, fossem Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Fernando Collor.

Desde a redemocratização, só se elegeram políticos populistas, com exceção de Fernando Henrique Cardoso, que, sem ser populista de raiz, no entanto, deve duas eleições seguidas ao Plano Real, que tocou no bolso do brasileiro e mudou sua vida. Os populistas têm muita força no Brasil, por isso Bolsonaro desdenha seus supostos concorrentes:

— Colocam quantos no aeroporto quando chegam? — pergunta.

Mas Bolsonaro não tem força para transferir votos a outros candidatos, como Lula também não.

Se não for candidato à reeleição, Lula não terá ninguém para pegar o bastão. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é um líder moderno dentro do PT, mas não tem a popularidade necessária para uma campanha presidencial, nem influência política para se impor. Com Bolsonaro inelegível, será difícil para a direita conseguir um substituto com apelo popular. Caiado acredita que o eleitorado brasileiro amadureceu nesse período histórico — ele foi candidato a presidente em 1989 — e procurará não um líder populista, mas um candidato que seja bom gestor.

Caso cheguemos a 2026 sem que apareça uma novidade populista — sempre lembrando o perigo que representa Marçal —, podemos voltar várias casas atrás, repetindo a primeira eleição presidencial direta depois da ditadura, uma campanha com 22 candidatos. Mesmo naquele caso, os três populistas foram os primeiros colocados: Collor, Lula e Brizola.

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MORRE ARTHUR MOREIRA LIMA

Do Blog do Mauro Ferreira, g1

'Pelé do piano' erudito, Arthur Moreira Lima deixa grandes conexões com a música popular ao morrer aos 84 anos

Obra do pianista carioca inclui disco com o cantor Nelson Gonçalves e álbuns com os repertórios de Roberto Carlos, Noel Rosa e Ernesto Nazareth.

 OBITUÁRIO

 Pianista de sólida formação erudita, aluno da professora Lucia Branco (1903 – 1973), Arthur Moreira Lima (16 de julho de 1940 – 30 de outubro de 2024) deixa um toque de classe na música brasileira ao morrer na noite de ontem, aos 84 anos, em Florianópolis (SC) – cidade onde vivia desde 1993 – em decorrência de complicações de câncer no intestino.

A saída de cena do extraordinário músico carioca, que chegou a ser caracterizado como “o Pelé do piano” pela revista francesa La Suisse, põe em foco a trajetória igualmente singular do pianista que sobressaiu como intérprete de compositores eruditos românticos como o polonês Frédéric Chopin, (1810 – 1849), o austríaco Franz Liszt (1811 – 1886) e o brasileiro Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959).

Contudo, a partir dos anos 1970 e sobretudo da década de 1980, Arthur Moreira Lima fez expressivas incursões pelo território da música popular, o que ampliou a visibilidade do pianista e o tornou conhecido além dos nichos da música clássica.

Em 1975, o músico lançou expressivo álbum em que jogou luz sobre a obra até então pouco valorizada de Ernesto Nazareth (1863 – 1934), pianista e compositor carioca que contribuiu decisivamente para a difusão do choro no início do século XX. O álbum Arthur Moreira Lima interpreta Ernesto Nazareth se tornou tão importante que gerou um segundo volume em 1977.

Em 1979, o pianista se reuniu com ases do choro –como o clarinetista Abel Ferreira (1915 – 1980), o flautista Copinha (1910 – 1984), o bandolinista Joel Nascimento e o trombonista Zé da Velha, além do grupo Época de Ouro – em show que deu origem ao álbum ao vivo Chorando baixinho – Encontro histórico.

Naquele mesmo ano de 1979, Moreira Lima lançou disco em que abordou o cancioneiro do compositor Noel Rosa (1910 – 1937), pioneiro bamba do samba carioca. Em 1980, o pianista se juntou ao compositor e trovador Elomar no álbum Parcelada malunga, bisando dois anos depois a parceria com o sertanista baiano no disco Consertão (1982), gravado com as adesões de Paulo Moura (1932 – 2010) e Heraldo do Monte.

Entre 1985 e 1986, Arthur Moreira Lima idealizou e realizou com Ney Matogrosso o marcante show Pescador de pérolas, perpetuado em disco ao vivo editado em 1987.

As conexões de Arthur Moreira Lima com cantores e compositores populares entraram pela década de 1990. Em 1992, o pianista se uniu a Nelson Gonçalves (1919 – 1998) no álbum O boêmio e o pianista para abordar o repertório folhetinesco do cantor gaúcho, intérprete sobressalente de sambas-canção, valsas e tangos dos anos 1940 e 1950.

Sem preconceitos, Arthur Moreira Lima lançou inclusive em 2000 um disco em que interpreta sucessos do cantor Roberto Carlos, quase todos compostos por Roberto com Erasmo Carlos (1941 – 2022).

Em tudo, o pianista deixou um toque de classe com a técnica notável que lhe conferiu o epíteto de “Pelé do piano”.

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NENHUM DOS DOIS

José de Souza Martins, Valor Econômico

Ninguém é dono do eleitorado – nem a esquerda nem a direita, até porque esquerda e direita não têm sido, de fato, protagonistas primários do processo político

Se estivermos em busca do que esteve em disputa nas eleições municipais de 27 de outubro, em São Paulo, descobriremos que foi o nada protagonizado pelo ninguém. Somados os “votos” brancos e nulos aos “votos” dos que votaram abstendo-se de votar, que de fato é voto, veremos que o grande vencedor foi o “ninguém”. Não só pela incerteza que caracterizou essa eleição, mas também pelas características da situação eleitoral em relação a eleições passadas.

Dizer que a zona leste da cidade era petista e de esquerda, tornou-se reduto do forasteiro Marçal e de um Nunes, que ainda se pensa como vice-prefeito ou mesmo subprefeito de Parelheiros, nada diz além do fato de que ninguém é dono do eleitorado. Nem a esquerda nem a direita, até porque esquerda e direita não têm sido, de fato, protagonistas primários do processo político. O são meramente adjetivos.

É preciso reconhecer que a cidade já não é propriamente uma cidade fabril nem operária. Sua periferia e seu subúrbio são espaços de vaivém cotidiano dos que moram num lugar e trabalham em outro.

As cidades do subúrbio, que foram cidades industriais e proletárias, tornaram-se cidades-dormitório. O crescimento econômico e a decorrente especulação imobiliária empurraram os trabalhadores para fora. O espaço proletário transformou-se em espaço de classe média.

A reestruturação produtiva da indústria e a migração das indústrias para espaços distantes, onde a terra é muito mais barata do que na região metropolitana de São Paulo, mudou radicalmente a territorialidade paulistana.

Hoje é possível prever que os municípios da Grande São Paulo, nos próximos dez a vinte anos, estarão muito próximos do desaparecimento, subsumidos por uma nova territorialidade, a da metrópole, com nova configuração político-administrativa.

Esse processo teve início no governo de Mário Covas, quando ele reconheceu a necessidade de aglutinação em consórcios de municípios da área metropolitana para atendimento conjunto de demandas e necessidades que isoladamente já não tinham condições de atender.

A complexa rede de transporte sobre trilhos, vislumbrada pelo então governador José Serra, com a possibilidade de que moradores da Baixada Santista pudessem morar em Santos e trabalhar em São Paulo, está sendo implantada. A área metropolitana se estenderá, em pouco tempo, a Campinas, Santos e Sorocaba. Com o futuro trem-bala, chegará a São José dos Campos.

O transporte sobre trilhos recriará a metrópole e seu centro. Os órgãos do governo do Estado devem retornar ao centro velho e histórico, completamente refuncionalizado.

Nessas mudanças, há muita coisa que a direita não vê nem tem competência para compreender e implementar. Mas a esquerda está ideologicamente atrasada. Conhece rótulos e conceitos não necessariamente científicos para definir a realidade, e não para compreendê-la nem para desenvolver uma práxis condizente com as radicais mudanças sociais e políticas que estão acontecendo.

Provavelmente foi um erro de oportunismo eleitoral dos partidos e dos candidatos supor que este seria um embate entre direita e esquerda, e não foi. E seria, também, uma antecipação de voto em relação ao que estará em disputa daqui a dois anos. Esta foi uma eleição municipal, relativa a questões locais e, portanto, aos fatos e problemas da vida cotidiana, o oposto do que motiva a participação nas eleições gerais.

Dos vários candidatos a prefeito da cidade de São Paulo, nestas eleições apenas dois demonstraram que conhecem interpretativamente a problemática cidade de hoje. A cidade que vem sendo vitimada pela urbanização patológica decorrente de improvisações e remendos.

A esquerda erra ao não reconhecer que essa anomalia vitima a todos, pobres e ricos, todos empobrecidos de civilização pela insuficiência de uma infraestrutura que propicie ao menos o mínimo de mediações civilizadoras, sobretudo na área da educação e da cultura.

Refiro-me a Tabata Amaral e Guilherme Boulos, que, por caminhos diferentes, demonstraram clareza e consciência sobre o que disse Henri Lefebvre, o sociólogo francês que melhor conheceu o que é a cidade, como lugar e desafio de necessidades radicais. Isto é, das necessidades que não são principalmente ideológicas nem de crescimento econômico. Mas de transformações urbanas e sociais permanentes e contínuas no sentido de superar atrasos e viabilizar a emancipação das pessoas em face da alienação que as abate, humilha e subjuga.

Se continuar tolhida no marco do atraso social, sujeita a administrações insensíveis aos desafios da função civilizadora da revolução urbana, a São Paulo restará o fracasso da lentidão na compreensão e realização política de seu futuro possível.

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quarta-feira, 30 de outubro de 2024

TRUMP É O HOMEM QUE SERIA REI

Martin Wolf, Financial TimesValor Econômico

Com os EUA, o grande bastião da democracia no século XX, sob controle autoritário, haveria uma oscilação no equilíbrio global contra a democracia liberal, não só em termos de poder, mas também em termos de credibilidade ideológica

O que um segundo mandato de Donald Trump significaria para os EUA e o mundo? Os otimistas podem apontar para o que aconteceu da última vez: sua presidência, eles poderiam afirmar, foi cheia de alarde e fúria. Mas isso pouco significou. Ele governou de maneira mais convencional do que muitos temiam. Além disso, no fim, foi derrotado por Joe Biden e partiu. Partiu com má vontade, é verdade. Mas o que mais se poderia esperar? Ele partiu mesmo assim. Por que não seria parecido se ele conquistasse um segundo mandato, como sugerem as pesquisas?

Trump é especialista em promessas vazias. Em 2016, uma peça central de sua campanha foi o “muro” pelo qual o México pagaria. No fim, não houve muro, quanto mais qualquer dinheiro do México. Desta vez ele prometeu reunir e deportar até 11 milhões de estrangeiros em situação irregular. A operação necessária para isso seria imensamente cara e polêmica. De fato, como exatamente muitos milhões seriam deportados e para onde?

Mais absurda é a sugestão de Trump de que, ao elevar as tarifas, ele poderia eliminar o imposto de renda. Isso é um completo disparate. Segundo um artigo acadêmico de Kimberly Clausing e Maurice Obstfeld, mesmo uma tarifa de 50% - o máximo para maximizar a arrecadação - geraria menos de 40% da receita proveniente do imposto de renda. A perda líquida de receita tributária enfraqueceria o financiamento dos programas dos quais seus eleitores, em grande parte mais idosos, dependem.

Uma segunda presidência de Trump poderia ser ainda pior que a primeira. A Suprema Corte declarou que, em suas “funções oficiais”, o presidente está acima das leis criminais. Ele se sentiria justificado e estaria em busca de vingança

No entanto, uma segunda presidência de Trump poderia ser ainda pior que a primeira. Em 2016, ele foi como o cachorro que alcançou o carro. Em sua ignorância, ele acabou contratando pessoas que não compartilhavam de seus objetivos nem de seus interesses. Hoje, o Partido Republicano consiste de seguidores fiéis que aceitam o que o “grande líder” define como verdade, como ele fez em relação aos resultados da eleição de 2020. O “Projeto 2025”, da Heritage Foundation, também produziu planos para subjugar o governo federal, enquanto a Suprema Corte declarou que, em suas “funções oficiais”, o presidente está acima das leis criminais. Ele se sentiria justificado e estaria em busca de vingança.

O que isso poderia persuadir Trump a fazer? Ele poderia elevar os já enormes déficits fiscais dos EUA e pressionar o Federal Reserve a manter as taxas de juros baixas. Se conseguisse nomear seguidores fiéis para comandar o Departamento de Justiça, as agências de inteligência e o Internal Revenue Service [IRS, o fisco americano], ele poderia processar inimigos percebidos sem restrições. Poderia justificar essas ações como um “toma lá da cá” pelas várias acusações justificadas contra ele próprio. Ele supostamente perdoaria os insurgentes de 6 de janeiro de 2021, que tentaram evitar a certificação dos resultados da última eleição. Com o controle sobre as Forças Armadas, ele poderia declarar lei marcial livremente. Mais amplamente, ele poderia usar a estrutura do governo dos EUA para exercer controle sobre partes do país vistas como independentes demais.

No âmbito externo, ele poderia implementar sua guerra comercial com poucas restrições, inclusive contra o Canadá e o México. Como comandante-em-chefe, ele poderia tornar os compromissos da Otan irrelevantes, simplesmente indicando sua falta de disposição em enviar tropas para combate. Ele poderia, mais uma vez, se retirar de todos os compromissos climáticos em um momento ainda mais delicado. Ele poderia tornar muito mais difícil o funcionamento de instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Ele poderia apoiar a extrema direita em toda a Europa. Ele poderia (e provavelmente iria) abandonar a Ucrânia.

Ao considerar todas as implicações para o mundo, é preciso distinguir os efeitos diretos dessas ações dos indiretos de seu retorno. Estes últimos seriam, acima de tudo, o encorajamento aos populistas de direita que buscam o poder, especialmente na Europa. Com os EUA, o grande bastião da democracia no século XX, sob controle autoritário, haveria uma oscilação no equilíbrio global contra a democracia liberal, não só em termos de poder, mas também em termos de credibilidade ideológica. Afinal, os EUA têm sido o modelo, embora imperfeito, para grande parte do mundo de uma ordem democrática governada por leis. A escolha de Trump pela segunda vez importaria muito.

Trump é no mínimo “fascista” e pode ser chamado de fascista de forma convincente. Em entrevistas ao “The New York Times”, John Kelly, ex-general dos fuzileiros navais dos EUA que foi seu chefe de gabinete por mais tempo, é citado como afirmando que em sua opinião, “Trump atendia à definição de fascista, governaria como um ditador se pudesse e não tinha entendimento da Constituição ou do conceito de Estado de Direito”. Além disso, Trump “nunca aceitava o fato de que não era o homem mais poderoso do mundo - e por poder, quero dizer a capacidade de fazer tudo o que ele quisesse, no momento em que quisesse”.

Para Timothy Snyder, um importante historiador das décadas de 30 e 40 na Europa, o fascismo é “um culto da vontade sobre a razão; é a vida dentro de uma Grande Mentira; é uma transformação da política em um culto a um líder que conta uma Grande Mentira e que é capaz de se estabelecer como a pessoa cuja vontade deve dominar a sociedade”.

A isso, acrescenta Anne Applebaum, outra especialista renomada, Trump descreveu seus adversários como “vermes”, mais uma vez uma característica da retórica fascista (e stalinista). As recentes “calúnias de sangue” sobre haitianos como comedores de animais de estimação se encaixam na difamação fascista de algumas pessoas como subumanas.

Os erros cometidos pelo governo Biden ajudam a explicar a popularidade de Trump, notavelmente sua incapacidade de controlar a imigração. Mesmo assim, é difícil entender o abandono dos princípios fundamentais do grande experimento americano de governo republicano. Grande parte do sucesso dele se deve aos precedentes criados por seu fundador, George Washington.

Como Tom Nichols observa na “The Atlantic”, Washington serviu como presidente por dois mandatos e depois foi para casa. Trump é o anti-Washington. Onde Washington era conhecido por sua probidade, Trump é conhecido pelo oposto.

Este é, então, um momento verdadeiramente decisivo. (Tradução de Mário Zamarian)

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UM CARIMBO PARA O PCC

Bernardo Mello Franco, O Globo

Tarcísio tentou interferir em eleição e deu carimbo oficial ao PCC

Ao citar facção contra rival, governador admitiu que crime manda cada vez mais em estado que o elegeu

Ao festejar a reeleição em São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes chamou Tarcísio de Freitas de “líder maior” e o lançou à Presidência em 2026. “Seu nome é presente, mas seu sobrenome é futuro”, proclamou.

O saldo das urnas reforçou Tarcísio como virtual candidato das direitas caso seu padrinho, Jair Bolsonaro, permaneça inelegível. Mas o governador manchou a vitória ao jogar sujo para ajudar Nunes no dia da eleição.

Sem apresentar provas, Tarcísio disse que o Primeiro Comando da Capital (PCC) teria orientado voto em Guilherme Boulos, adversário do prefeito. Depois seus aliados atribuíram a acusação a bilhetes apócrifos, vazados pela polícia que ele controla.

A conduta do governador foi tão ou mais grave que a de Pablo Marçal, que divulgou um laudo falsificado contra Boulos às vésperas do primeiro turno. Com as urnas abertas, Tarcísio usou o cargo para prejudicar um oponente e beneficiar seu candidato. Um caso típico de abuso de poder político.

Depois da vitória de Nunes, assessores do governador fizeram circular que ele estaria arrependido do episódio, que não teria passado de um “erro” ou “deslize”. Se os tribunais aceitarem essa conversa, será melhor revogar o Código Eleitoral.

No mesmo domingo em que Tarcísio tentou interferir na eleição, Bolsonaro voltou a atacar o TSE e insinuou que o presidente Lula teria simulado o acidente que o deixou com cinco pontos na cabeça. A sintonia entre as duas falas mostra que a operação para descolar Tarcísio da extrema direita é pura propaganda. Criador e criatura podem se diferenciar na forma, não no conteúdo.

Além de expor seus métodos, a declaração do governador serviu para realçar um novo fenômeno: a onipresença do PCC nas eleições de São Paulo. A facção nasceu nos presídios, dominou a venda de drogas e se infiltrou nos serviços públicos. Agora é parte do debate eleitoral, onde divide espaço com temas como a poda de árvores e a coleta de lixo.

Nunes e Marçal se acusaram mutuamente de ligação com o crime, recorrendo a apelidos como “tchutchuca do PCC”. Ao entrar na ciranda, Tarcísio naturalizou e pôs carimbo oficial na influência da facção na política. E admitiu que o crime manda cada vez mais no estado que o elegeu.

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UM VICE-PREFEITO GOLPISTA

Eduardo BarrettoAthos Moura, Coluna Guilherme Amado, Metrópoles

Novo vice-prefeito de São Paulo participou de atos golpistas

Coronel da PM de São Paulo foi indicação de Jair Bolsonaro; ele também é contrário a vacinas e a favor de impeachment de ministros do STF

Eleito vice-prefeito de São Paulo no domingo (27/10), o coronel da Polícia Militar de São Paulo Ricardo Mello já foi a atos de teor golpista. Mello foi indicado por Jair Bolsonaro à chapa do prefeito reeleito Ricardo Nunes.

Em novembro de 2022, Mello foi a uma manifestação em frente ao Comando Militar do Sudeste, em São Paulo. O ato pró-intervenção militar rechaçava a derrota de Bolsonaro para Lula nas urnas, em linha com os bloqueios ilegais em rodovias federais feitos por bolsonaristas. Na ocasião, Mello presidia a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), empresa estatal federal.

“Ou ficar à pátria livre ou morrer pelo Brasil”, escreveu Mello nas redes sociais na ocasião. Durante a manifestação, perto do coronel, bolsonaristas seguravam uma faixa “intervenção federal”.

Brasília também teve um acampamento golpista naquela época, em frente ao Quartel-General do Exército. Foi de lá que saiu a maior parte do grupo que saqueou as sedes dos Três Poderes no 8 de Janeiro.

Durante a gestão na Ceagesp, em 2021, Ricardo Mello forçou um funcionário a pedir demissão sob a ameaça de mandar prendê-lo, como informou a coluna.

O vice-prefeito eleito também foi contrário à vacinação contra a Covid, pediu impeachment de ministros do STF e defendeu que abordagens policiais devem seguir protocolos diferentes em bairros ricos e pobres.

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terça-feira, 29 de outubro de 2024

PREFEITO BOLSONARISTA É FLAGRADO COM DINHEIRO NA CUECA

Pedro Trindade, Gustavo Chagas, g1 RS

MP pede que Polícia Federal investigue vídeo de prefeito eleito de Canoas retirando maço de dinheiro das calças; veja imagens

Imagens foram gravadas pela própria pessoa que recebe as notas, sem que Airton Souza (PL) percebesse. Político alegou, em entrevista ao Jornal do Almoço, da RBS TV, que valor era destinado a 'compromisso pessoal'.

O Ministério Público (MP) enviou um ofício à Polícia Federal (PF), nesta terça-feira (29), solicitando a instauração de inquérito para apurar as circunstâncias do vídeo em que o prefeito eleito de Canoas, Airton Souza (PL), aparece retirando um maço de dinheiro de dentro das calças. Na sequência das imagens, o político entrega a quantia para uma pessoa no interior de um veículo. (Veja acima)

A PF informou que o pedido foi enviado para a Corregedoria, "que fará os trâmites cabíveis para envio à delegacia responsável por investigar crimes eleitorais". Somente na delegacia que será definido se o caso vai ou não à investigação.

As imagens foram gravadas pela própria pessoa que recebe as notas, sem que o político percebesse. A reportagem apurou que a filmagem foi feita na Rua Doutor Barcelos, a poucos metros do comitê de campanha.

Não há informações sobre quando o vídeo foi gravado. No entanto, é possível ver que Airton aparece com um adesivo com o número 22 colado na camiseta, referência ao partido do qual faz parte. A campanha eleitoral teve início em agosto.

Em entrevista ao Jornal do Almoço, da RBS TV, o político afirmou que o montante era destinado a um "compromisso pessoal". O valor e a finalidade não foram detalhados por Airton.

"Eu estava honrando um compromisso pessoal, que diz respeito a mim, não à minha vida pública. Eu vim de casa com um valor que estava na minha cintura, sim", alegou.

Airton se referiu à pessoa que gravou o vídeo como "mal-intencionada" e se mostrou disposto a prestar esclarecimentos sobre o destino do pagamento, caso seja necessário, em uma eventual investigação.

"Se tiver que dizer, eu vou dizer... Que surja alguma investigação, porque eu estou com a minha vida totalmente transparente. Tenho a minha declaração do Imposto de Renda que está ali, não tenho por que estar expondo pessoas aqui, que fazem parte disso aí. Então, quem gravou, mal-intencionado, que exponha. Não tem problema nenhum para mim", finalizou.

O candidato do PL somou 52,12% dos votos válidos. O atual prefeito, Jairo Jorge (PSD), teve 47,88% dos votos válidos.

Canoas é a terceira maior cidade do RS, com 359.554 habitantes. O município foi um dos mais atingidos pela enchente de maio, registrando a maior quantidade de mortos – 31 óbitos entre as 183 vítimas de todo o estado.

A eleição

Airton Souza, de 57 anos, é natural de Tenente Portela. Casado, o empresário do ramo gráfico foi eleito vereador em 2004, 2008, 2012 e 2020. O vice-prefeito na chapa é Rodrigo Busato (União Brasil), de 39 anos.

Em sua primeira manifestação após ser eleito, no domingo (27), Airton falou sobre o legado que deseja deixar com o seu mandato.

"Legado de honestidade, de transparência e de uma gestão que realmente deixou a comunidade de Canoas feliz", projetou.

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DENUNCIADO E PEDIDO DE CASSAÇÃO

Luana Severo, Diário do Nordeste

Vereador Inspetor Alberto é denunciado e tem pedido de cassação após vídeo maltratando porco

A denúncia foi apresentada pelo Conselho Regional de Medicina Veterinária do Ceará

O Conselho Regional de Medicina Veterinária do Ceará (CRMV-CE) denunciou formalmente o vereador Inspetor Alberto (PL) nesta segunda-feira (28) e pediu a cassação do mandato do parlamentar após a repercussão de um vídeo em que ele aparece maltratando um porco. O caso viralizou no último fim de semana, às vésperas do segundo turno das eleições municipais — em que André Fernandes (PL), o candidato apoiado pelo vereador para a Prefeitura de Fortaleza, foi derrotado nas urnas por Evandro Leitão (PT).

Em comunicado enviado pelo órgão, a autarquia detalha que a denúncia foi apresentada pelo presidente do Conselho, Daniel Viana, e que foram acionados o Ministério Público do Ceará (MPCE), a Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (DPMA) e o Tribunal Regional Eleitoral do Estado (TRE-CE).

No vídeo, o vereador arrasta e puxa um porco pelas orelhas para provocar e ameaçar o então candidato petista. O CRMV-CE entende que as imagens representam "clara demonstração de brutalidade e desrespeito pelo bem-estar animal" e que o ato, "além de inaceitável do ponto de vista ético, ocorre em um momento em que a sociedade clama por respeito e proteção aos direitos dos animais".

Inspetor Alberto nega as acusações.

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Após vídeo com porco, Inspetor Alberto diz que não teve 'nenhum intuito de causar dor' ao animal

 Crimes previstos em lei

De acordo com a denúncia apresentada, a conduta do vereador infringe ao menos três leis:

  • O artigo 225 da Constituição Federal, que estabelece que o dever do Estado é proteger a fauna e a flora, prevenindo práticas que coloquem em risco a função ecológica e provoquem a extinção de espécies;
  • O artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais, que tipifica como atos de abuso maus-tratos, ferimentos ou mutilações contra animais;
  • O artigo 79 do Código Eleitoral, que entende como causa de inelegibilidade a prática de atos que configurem falta de ética, desrespeito ou violação das normas que regem a função pública.

Investigação

A investigação do crime de maus-tratos está a cargo da DPMA e do Ministério Público. Já o TRE-CE fará a análise da denúncia e a investigação da conduta do vereador.

"Reafirmamos nosso compromisso com a proteção dos direitos dos animais e esperamos que medidas eficazes sejam tomadas para tratar essa situação de forma justa e responsável. A prática de maus-tratos, especialmente por um vereador, é um sinal alarmante de falta de compromisso com a ética e com a proteção que cada ser vivo merece", concluiu o órgão de classe.

Lembre o caso

Em um vídeo que viralizou nas redes sociais, o vereador de Fortaleza, Inspetor Alberto, aparece arrastando e puxando um porco pelas orelhas, em referência ao deputado estadual Evandro Leitão, que conquistou o cargo de prefeito da Capital neste domingo (27).

"Você vai para a panela. Leitão, seu desgraçado, você vai para a panela dia 27. Me aguarde", diz o parlamentar nas imagens. 

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 Em nota enviada à imprensa, assinada pela sua assessoria jurídica, o político nega que quis "causar dor ou desprezo" ao animal e afirma que repudia "as acusações de menosprezo e maus-tratos aos animais" feitas contra ele. Nega, ainda, que o "trato com o animal" tenha se dado "única e exclusivamente para a gravação do vídeo" e alega que estava transferindo o porco de um lugar para o outro e, "durante esse trâmite, aproveitou e proferiu algumas palavras no bojo do cenário político".

Dias antes, outro vídeo do vereador ameaçando Leitão repercutiu na internet. Nas imagens, o aliado de André Fernandes afirmava que o deputado deveria se planejar, porque iria morrer. No entanto, ele, depois, disse que as falas se tratavam apenas de uma "brincadeira".

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TANTAS HISTÓRIAS

Hoje, 29 de outubro que se comemora o Dia Nacional do Livro, fez-me lembrar de uma história da escritora cearense, Rachel de Queiroz, relatada em sua autobiografia Tantos Anos, escrita por Rachel e sua irmã caçula, Maria Luiza de Queiroz, em 1998.

Rachel de Queiroz, a pioneira cearense – primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras, 1977 – conhecida pelas belas histórias contadas em suas obras, o carinho que tinha pelas palavras, seja nas crônicas, nas peças de teatro ou nos romances, ela era uma mulher à frente do seu tempo. Até na politica Rachel de Queiroz enveredou e teve uma vida intensa.

A consagrada carreira de escritora e jornalista, parte dos brasileiros já conhece, mas, na política é desconhecida pela maioria da população brasileira. Rachel se tornou membro do Partido Comunista ao lado de amigos de sua geração, uma turma politizada e ‘comunizada”, como relatou ela na autobiografia Tantos Anos, de 1998. Foi presa duas vezes.

Em 1931, após passar dois meses no Rio de Janeiro – tinha ido receber o Prêmio Graça Aranha, dado a O Quinze – Rachel volta ao Ceará, com credenciais do Partido Comunista, já politizada e com a missão de promover e reorganizar o Bloco Operário e Camponês, movimento político o qual ela tinha participado.

Rachel passou a fazer parte do Partido Comunista, mesmo sem ter feito uma ficha, assinado alguma ata. Aliás, não se podia deixar nenhum rastro de papéis, livros ou qualquer tipo de documento, a polícia era brutal e se pegasse algum vestígio, levava todos para a cadeia: às pessoas e os papéis. Com a chegada de Getúlio Vargas ao Rio, a polícia ficou mais feroz.

Em 1937, com a decretação do Estado Novo de Getúlio Vargas, os livros de Rachel de Queiroz foram proibidos e, num fato marcante, várias de suas obras acabaram queimadas em praça pública em Salvador (BA), junto a livros de Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos, todos classificados de subversivos.

O desligamento do Partido Comunista aconteceu após ela ver censurado pelo próprio Partido o romance João Miguel. No romance João Miguel, ‘campesino’ bêbado, matava outro ‘campesino’. O aviso: só permitiria a publicação da obra, se Rachel fizesse as modificações apontadas pelo presidente do Partido Comunista. Segundo o Partido, a trama era carregada de preconceitos contra a classe operária.

Jamais se curvou as imposições feitas a sua obra, Rachel de Queiroz não aceitou as tais modificações exigidas pelo Partido Comunista, pegou o original que tinha datilografado e saiu em disparada, como relatado por ela no capítulo O Rompimento, da autobiografia Tantos Anos.

Em sua obra Caminho de Pedras (1937), Rachel trata desse momento político que viveu no Partido Comunista, porque fazer política na década de 20, ser comunista era muito perigoso. A ideia de comunismo era distorcida e alguém que ousasse se apresentar como comunista pagaria um preço alto, até com a própria vida.

Rachel de Queiroz faleceu dormindo em sua rede, em sua casa no Rio de Janeiro, em 4 de novembro de 2003.

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ISSO NÃO SE FAZ, GOVERNADOR

Editorial O Estado de S.Paulo

Ao ligar Boulos ao PCC no dia da eleição, Tarcisio seguiu a cartilha da desfaçatez bolsonarista. Numa democracia, é preciso respeitar a liturgia do cargo, o processo eleitoral e os adversários

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), que ao longo de seu mandato vinha se mostrando um democrata consciente dos limites morais e legais de seu poder, deixou-se guiar pela cartilha indecente do bolsonarismo no dia do segundo turno da eleição para a Prefeitura de São Paulo, ao vincular Guilherme Boulos (PSOL), o adversário de seu candidato, o prefeito Ricardo Nunes (MDB), ao PCC, principal organização criminosa do País. Os motivos que o levaram a aderir à desfaçatez tão típica de seu padrinho, o ex-presidente Jair Bolsonaro, só o sr. Tarcísio será capaz de esclarecer. Afinal, não parece haver lógica nenhuma nessa declaração intempestiva, pois o prefeito Nunes estava confortavelmente na liderança da disputa, quadro que não mudaria nas poucas horas que restavam para o fechamento das urnas.

Ou seja, não há nada que pareça justificar a atitude do governador, que a um só tempo desrespeitou o cargo que ocupa, o processo eleitoral e o adversário, tudo o que não pode acontecer numa democracia – e que, por isso mesmo, é passível de punição severa. Portanto, roga-se que o sr. Tarcísio se retrate, pois, do contrário, mesmo que escape das sanções previstas em lei, será para sempre lembrado como aquele que julga não haver limites morais ou éticos para vencer uma eleição. Não é isso o que se espera de quem aspira à liderança do campo conservador no Brasil.

Após votar, o governador foi questionado por jornalistas sobre um comunicado emitido pela Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, que interceptou supostos bilhetes assinados por membros do PCC orientando o voto em algumas cidades. Os tais bilhetes já eram de domínio público, uma vez que foram publicados no dia anterior pelo portal Metrópoles. Tarcísio poderia ter apenas dito que não faria comentários até o fechamento das urnas, porque, se o fizesse, poderia influenciar a intenção de voto dos eleitores que ainda tinham algumas horas para votar. Mas a imprudência é uma marca do bolsonarismo, e o governador, como se estivesse numa entrevista qualquer, e não no dia de votação e ao lado de seu candidato, comentou: “Teve o salve, houve interceptação de conversa e de orientações que eram emanadas de presídios por parte de uma organização criminosa, orientando determinadas pessoas em determinadas áreas a votarem em determinados candidatos. Houve essa ação de inteligência, houve essa interceptação, mas não haverá influência nenhuma na eleição”.

Ainda assim, poderia ter reduzido os danos e parado por aí, mas, diante da insistência para que informasse qual era o candidato que os criminosos orientavam a votar, Tarcísio disse: “Boulos”. Ao fazê-lo, imiscuiu-se de vez no processo eleitoral e abusou de sua prerrogativas de governador, que, ao contrário de Boulos e dos demais cidadãos, tem acesso às mencionadas informações de inteligência e tem holofotes garantidos em razão do cargo que ocupa.

E não havia necessidade nenhuma disso. Àquela altura, os danos eleitorais ao candidato do PSOL seriam nulos, posto que a derrota parecia certa. A campanha de Boulos, claro, se apressou a comparar a declaração do governador ao laudo fraudulento divulgado pelo extremista Pablo Marçal ao fim do primeiro turno, para retratá-lo como um drogado, e fez o óbvio: recorreu à Justiça. Há quem peça até a inelegibilidade do governador ou tente creditar à insinuação de Tarcísio a derrota fragorosa imposta a Boulos.

É imprescindível agora que o governador explique o que, afinal, pretendeu com a declaração, sob pena de macular seu próprio triunfo político. Afinal, ele foi determinante para a reeleição de Nunes, sem precisar de artifícios que, na prática, desrespeitam o eleitor e a democracia. Ao contrário da toxicidade de Jair Bolsonaro, o apoio de Tarcísio mostrou o quanto a direita não depende mais da associação explícita à figura do ex-presidente. E dessa independência emerge a vitalidade de uma desejável direita democrática, liberal e republicana. Atributos que, ora vejam, são o avesso da gravíssima derrapada do governador.

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O PESO DO DINHEIRO

Merval Pereira, O Globo

Ficou claro que saber gastar em obras importantes para os moradores é fundamental para obter resultados eleitorais

A eleição municipal que terminou domingo ficou conhecida como a “das emendas parlamentares”. Mas poderia também ser chamada de “eleição dos fundos”. Nunca ficou tão claro o poder do dinheiro na definição dos resultados finais, especialmente na reeleição da maioria esmagadora dos prefeitos de capitais.

O sistema de reeleição ficou consolidado com a vitória de quase 80% dos incumbentes. Pode ser bom por garantir a permanência de gestores bem avaliados, mas também ser reflexo da máquina estatal, impulsionada pelas verbas públicas. Os prefeitos, de costume, são fundamentais para a eleição do Congresso e, como chamou a atenção o diretor da Quaest, Felipe Nunes, podem impedir que a renovação política se faça a partir das bases.

A supervisão do Tribunal Superior Eleitoral e dos Tribunais Regionais Eleitorais será cada vez mais necessária, para que o abuso do poder político e econômico não distorça os resultados das urnas. Ao mesmo tempo, ficou claro que saber gastar o dinheiro em obras importantes para os moradores é fundamental para obter resultados eleitorais positivos. A mudança essencial é que os partidos políticos ganharam independência ante o governo central, cujo partido não detém o controle do Congresso.

Nos tempos em que o Executivo controlava a distribuição de verbas e emendas parlamentares, era tradicional que seus partidos, fosse o PSDB, fosse o PT, ganhassem também as eleições, tanto municipais quanto federais. Mesmo não fazendo maioria absoluta, tinham as maiores bancadas e atraíam deputados e senadores para suas legendas. Hoje, com as emendas parlamentares impositivas e os fundos eleitoral e partidário, a autonomia dos partidos permite que façam seus projetos eleitorais sem depender do governo central. E o governo central não ousa se meter nas disputas regionais, como mostraram tanto Lula quanto Bolsonaro nas campanhas.

Situação mais difícil hoje para Lula, que tem na sua base congressual partidos cujos objetivos de médio prazo não batem com o seu, são de centro-direita ou mesmo de direita. O PSD foi o partido que mais elegeu prefeitos, mas apenas o quarto que mais recebeu dinheiro por meio das emendas parlamentares. Tem um pé na canoa petista e outro na bolsonarista, com Tarcísio de Freitas. E não quer abrir mão de nada.

O PT foi o que recebeu mais verbas parlamentares, mas elegeu apenas 252 prefeitos em todo o país, ante 887 do PSD. Segundo o Portal do Orçamento, R$ 617,8 milhões foram liberados à bancada petista, que tem 68 deputados. O volume destinado ao PL, maior partido da Câmara, foi de R$ 367 milhões. O total recebido pelas legendas por meio dos fundos aumentou de R$ 2,5 bilhões em 2018, ano da primeira eleição com as novas regras, para R$ 6 bilhões em 2024, fortuna usada pelas siglas para bancar as campanhas de candidatos a prefeitos, vice-prefeitos e vereadores.

Pelo tamanho das bancadas no Congresso, o PL, que elegeu 99 deputados em 2022, foi a primeira legenda a ter mais de R$ 1 bilhão num único ano, quase 30% a mais do que o segundo colocado, o PT, que deveria ser seu principal adversário se a polarização tivesse prevalecido. O MDB foi a legenda que mais elegeu vereadores, 8.113, enquanto o PT elegeu apenas 3.130, embora tenha se saído melhor que na eleição municipal anterior.

Na mesma proporção em que as verbas foram distribuídas entre os 25 partidos que concorreram, também os resultados foram compartilhados. Mas sem dúvida partidos como PSD, MDB e PL foram os mais vitoriosos. Certamente receberão adesões ou farão federações com outras siglas que terão de cumprir as cláusulas de barreira nas eleições para o Congresso em 2026.

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PARTIDOS PÊNDULO ESTÃO MAIS FORTES

Míriam Leitão, O Globo

Grandes vencedores da eleição, posição do PSD e MDB em 2026 dependerá da capacidade de construção de alianças de cada campo

Os partidos pêndulo saíram mais fortes dessas eleições. Os maiores vencedores, PSD e MDB, integram hoje administrações de esquerda e de direita. O PSD de Gilberto Kassab está no governo de São Paulo e, portanto, na aliança de direita que impôs à esquerda a sua maior derrota ao ajudar a eleger Ricardo Nunes, do MDB. Os dois partidos têm ministérios no governo Lula. O PSD, no Rio e em Belo Horizonte, e o MDB, no Pará, derrotaram candidatos bolsonaristas. Para onde irão esses dois partidos em 2026 vai depender da capacidade de construção de alianças eleitorais de cada campo. O eleitor derrotou o extremismo da direita e mandou recado para a esquerda de que ela precisa se repensar.

Quem apareceu com o kit “sou contra as vacinas, a democracia e danem-se as mulheres” foi cortado pelo eleitor e isso explica a derrota de Jair Bolsonaro. Mas, antes de comemorarmos a ideia de que a direita moderada ganhou a eleição, é preciso pensar em São Paulo. No dia da votação, urnas abertas, o governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, lançou uma bomba contra o candidato Guilherme Boulos. Usou o fato de controlar as polícias para dizer que interceptou mensagem do sistema prisional, do crime organizado, indicando o voto em Boulos. Não mostrou provas, nem se desmentiu. Deu desculpas informais que nada explicam. É grave o que fez o governador. Isso cria para a Justiça Eleitoral a obrigação de saber como agir — e punir — quem lança laudos falsos ou desinformação, contra seu adversário quando as urnas estão abertas e há pouco tempo hábil para reverter um eventual estrago. Se esse vale tudo for aceito, porque o governador é poderoso, será um precedente perigoso.

O MDB sempre teve capilaridade municipalista e é natural que esteja entre os que ficaram com mais prefeituras. Foi da base do governo Fernando Henrique e da base de governos petistas. Nas eleições municipais, fez, como outros partidos, diferentes alianças, ora com a esquerda, ora com a direita. A direção do partido me disse que, mesmo quando apoiou a direita, foi contra candidato bolsonarista e citou o exemplo de Curitiba, Manaus, Cuiabá e Goiânia. Em São Paulo, no entanto, Ricardo Nunes só não foi o candidato bolsonarista porque Bolsonaro não quis. Ele nunca aderiu à campanha, por mais que Tarcísio de Freitas tenha insistido. No interior de São Paulo, o MDB aliou-se ao PT em disputas como a de Araraquara, que perdeu para o PL, e de Matão e Mauá, no ABC, onde o PT venceu.

Essa mistura de alianças contraditórias é comum nos partidos brasileiros. Parece mesmo uma geleia geral. O Republicanos, que foi tão importante no governo Bolsonaro, tem hoje ministério no governo Lula. O mesmo se pode dizer do PP. O PSD, que cresceu em parte pegando o espólio do PSDB e em parte pela habilidade do seu presidente Gilberto Kassab, se diz de centro. Mas está num projeto de direita, que começa a se formar em torno de Tarcísio de Freitas. No discurso de vitória, Ricardo Nunes chamou Tarcísio de “líder maior” e disse que “seu sobrenome é futuro”. Na mesma fala, Nunes faz menção burocrática a Jair Bolsonaro.

O poder vive da expectativa de poder. A inelegibilidade de Bolsonaro faz com que outras lideranças disputem esse campo tendo em vista 2026. Há dois estilos. O explícito, de Ronaldo Caiado, que se declarou candidato e enfureceu Bolsonaro. O ex-presidente o atacou em Goiânia, onde esteve pessoalmente no dia da eleição e perdeu para Caiado. E há o estilo Tarcísio. Ele se prepara para ser uma alternativa a Bolsonaro, mas sempre faz deferências ao ex-chefe. Com quem estarão os partidos pêndulo em 2026? Kassab já disse que seu partido quer chegar à presidência, mas que, por Tarcísio, abre mão de um projeto exclusivo.

Há quem diga que as urnas rejeitaram os extremismos, como se fossem dois extremos. Há apenas um extremismo, o de Bolsonaro que, de fato, colecionou derrotas. A esquerda teve um desempenho fraco, mostrando que precisa de maior conexão com o eleitorado. Não basta ao PT colocar o máximo de partidos no balaio do governo para ser visto como frente ampla. Precisa realmente construir alianças para 2026. Até o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, fala em buscar o centro. O centrão sempre quer aderir a todos os governos. Os partidos pêndulo não são exatamente do centrão, e são essenciais na formação de uma aliança eleitoral com chance de vitória.

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