sexta-feira, 11 de outubro de 2024

A IMPORTÂNCIA DO VOTO

Artigo de Rachel de Queiroz

O artigo "Votar" de Rachel de Queiroz foi publicado na revista O Cruzeiro, em 11 de Janeiro de 1947, com o objetivo de alertar os eleitores de então, quanto a importância do voto, continua contemporâneo.

Não sei se vocês têm meditado como devem no funcionamento do complexo maquinismo político que se chama governo democrático, ou governo do povo. Em política a gente se desabitua de tomar as palavras no seu sentido imediato. No entanto, talvez não exista, mais do que esta, expressão nenhuma nas línguas vivas que deva ser tomada no seu sentido mais literal: governo do povo. Porque, numa democracia, o ato de votar representa o ato de FAZER O GOVERNO.

Pelo voto não se serve a um amigo, não se combate um inimigo, não se presta ato de obediência a um chefe, não se satisfaz uma simpatia. Pelo voto a gente escolhe, de maneira definitiva e irrecorrível, o indivíduo ou grupo de indivíduos que nos vão governar por determinado prazo de tempo.

Escolhem-se pelo voto aqueles que vão modificar as leis velhas e fazer leis novas - e quão profundamente nos interessa essa manufatura de leis! A lei nos pode dar e nos pode tirar tudo, até o ar que se respira e a luz que nos alumia, até os sete palmos de terra da derradeira moradia.

Escolhemos igualmente pelo voto aqueles que nos vão cobrar impostos e, pior ainda, aqueles que irão estipular a quantidade desses impostos. Vejam como é grave a escolha desses "cobradores". Uma vez lá em cima podem nos arrastar à penúria, nos chupar a última gota de sangue do corpo, nos arrancar o último vintém do bolso.

E, por falar em dinheiro, pelo voto escolhem-se não só aqueles que vão receber, guardar e gerir a fazenda pública, mas também se escolhem aqueles que vão "fabricar" o dinheiro. Esta é uma das missões mais delicadas que os votantes confiam aos seus escolhidos.

Pois, se a função emissora cai em mãos desonestas, é o mesmo que ficar o país entregue a uma quadrilha de falsários. Eles desandam a emitir sem conta nem limite, o dinheiro se multiplica tanto que vira papel sujo, e o que ontem valia mil, hoje não vale mais zero.

Não preciso explicar muito este capítulo, já que nós ainda nadamos em plena inflação e sabemos à custa da nossa fome o que é ter moedeiros falsos no poder.

Escolhem-se nas eleições aqueles que têm direito de demitir e nomear funcionários, e presidir a existência de todo o organismo burocrático. E, circunstância mais grave e digna de todo o interesse: dá-se aos representantes do povo que exercem o poder executivo o comando de todas as fôrças armadas: o exército, a marinha, a aviação, as polícias.

E assim, amigos, quando vocês forem levianamente levar um voto para o Sr. Fulaninho que lhes fez um favor, ou para o Sr. Sicrano que tem tanta vontade de ser governador, coitadinho, ou para Beltrano que é tão amável, parou o automóvel, lhes deu uma carona e depois solicitou o seu sufrágio - lembrem-se de que não vão proporcionar a esses sujeitos um simples emprego bem remunerado.

Vão lhes entregar um poder enorme e temeroso, vão fazê-los reis; vão lhes dar soldados para eles comandarem - e soldados são homens cuja principal virtude é a cega obediência às ordens dos chefes que lhe dá o povo. Votando, fazemos dos votados nossos representantes legítimos, passando-lhes procuração para agirem em nosso lugar, como se nós próprios fossem.

Entregamos a esses homens tanques, metralhadoras, canhões, granadas, aviões, submarinos, navios de guerra - e a flor da nossa mocidade, a eles presa por um juramento de fidelidade. E tudo isso pode se virar contra nós e nos destruir, como o monstro Frankenstein se virou contra o seu amo e criador.

Votem, irmãos, votem. Mas pensem bem antes. Votar não é assunto indiferente, é questão pessoal, e quanto! Escolham com calma, pesem e meçam os candidatos, com muito mais paciência e desconfiança do que se estivessem escolhendo uma noiva.

Porque, afinal, a mulher quando é ruim, dá-se uma surra, devolve-se ao pai, pede-se desquite. E o governo, quando é ruim, ele é que nos dá a surra, ele é que nos põe na rua, tira o último pedaço de pão da boca dos nossos filhos e nos faz apodrecer na cadeia. E quando a gente não se conforma, nos intitula de revoltoso e dá cabo de nós a ferro e fogo.

E agora um conselho final, que pode parecer um mau conselho, mas no fundo é muito honesto. Meu amigo e leitor, se você estiver comprometido a votar com alguém, se sofrer pressão de algum poderoso para sufragar este ou aquele candidato, não se preocupe. Não se prenda infantilmente a uma promessa arrancada à sua pobreza, à sua dependência ou à sua timidez. Lembre-se de que o voto é secreto.

Se o obrigam a prometer, prometa. Se tem medo de dizer não, diga sim. O crime não é seu, mas de quem tenta violar a sua livre escolha. Se, do lado de fora da seção eleitoral, você depende e tem medo, não se esqueça de que DENTRO DA CABINE INDEVASSÁVEL VOCÊ É UM HOMEM LIVRE. Falte com a palavra dada à fôrça, e escute apenas a sua consciência. Palavras o vento leva, mas a consciência não muda nunca, acompanha a gente até o inferno".

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A NATUREZA SE IMPÕE

Flávia Oliveira, O Globo

Mundo afora, sobram sinais — de preocupantes a desesperadores — de fenômenos climáticos. Durante a semana, brasileiras e brasileiros em largas porções do território, do Distrito Federal à Serra Fluminense, miraram o céu em gratidão pela chuva que voltou a cair. Um mês atrás, Ailton Krenak, ativista indígena, filósofo, imortal na Academia Brasileira de Letras, confessou a (boa) inveja da amiga que contara sobre a precipitação num pequeno jardim em Londres, enquanto matas e lavouras em chamas, aqui, lançavam “a tinta preta do carvão vegetal” sobre as cidades. Ainda anteontem, os Estados Unidos bambearam com a ameaça de um furacão. O Milton se formou tão rápida e assustadoramente que fez meteorologista experiente chorar por medo da devastação em parte da Flórida — felizmente não confirmada.

Os alertas estão por toda parte, das inundações no Rio Grande do Sul aos rios secos na Amazônia. Ainda assim, são insuficientes para impedir a eleição, em primeiro turno, de negacionistas climáticos em municípios do Norte; ou de levar ao segundo turno com mais de 49% dos votos o prefeito que negligenciou a manutenção do sistema de bombeamento que protegeria Porto Alegre do alagamento. Tampouco são capazes de adicionar ingrediente novo ao debate brasileiro sobre política monetária.

Tão logo o IBGE divulgou, na quarta-feira, os resultados da inflação de setembro, agentes econômicos reprisaram o mantra da elevação dos juros. O índice oficial de inflação fechou setembro em 0,44%, após resultado negativo em 0,02% no mês anterior. O IPCA acumulado em 4,42% nos últimos 12 meses, alegam, exige que a taxa básica suba. Disso dependeria a convergência para meta contínua — aquela que já não obedece ao ano-calendário — de 3%, com um ponto e meio percentual para mais ou para menos.

Aconteceu no dia seguinte à aprovação pelo Senado Federal da indicação do economista Gabriel Galípolo, hoje diretor de Política Monetária, como presidente do Banco Central. Sucederá a Roberto Campos Neto, cuja gestão foi marcada pela manutenção da Selic em 2% ano por seis meses (agosto de 2020 a março de 2021); e em 13,75% por 12 meses (agosto de 2022 a julho de 2023). Antes de ocupar a cadeira, o futuro titular do BC já está sob pressão.

Habitação e alimentação foram os grupos de despesas que mais pressionaram o orçamento das famílias brasileiras. Por razões climáticas. Depois de 26 meses sem cobrança adicional nas contas de luz, em razão do longo período com reservatórios das hidrelétricas em nível confortável, a Aneel acionou a bandeira tarifária amarela em julho e, no mês passado, a vermelha nível 1. Significa que os brasileiros pagaram, nos dois primeiros meses, R$ 1,885 a cada 100 kWh consumidos; e, a partir de setembro, R$ 4,463. Com isso, a energia elétrica residencial encareceu 5,36% no mês, pressionando em 0,21 ponto percentual a inflação de setembro, quase metade do IPCA.

Os gastos com alimentação subiram 0,5%, após dois meses seguidos de queda. Ficou mais cara a comida que famílias compram em mercados e feiras para consumir em casa. Carne bovina, café e algumas frutas, como laranja, limão e mamão, estão custando mais. André Almeida, gerente da pesquisa de inflação do IBGE, explicou que “a forte estiagem e o clima seco foram fatores que contribuíram para a diminuição da oferta das carnes”.

Em janeiro, o grupo alimentação e bebidas subira 1,38%, como costuma acontecer no verão, influenciado pela alta nos preços da cenoura (43,85%), da batata-inglesa (29,45%), do feijão-carioca (9,70%), do arroz (6,39%) e das frutas (5,07%). Em maio, por causa da tragédia no Sul, dispararam os preços da batata (20,61%), da cebola (7,94%), do leite longa vida (5,36%); em junho, batata-inglesa (14,49%), leite longa vida (7,43%) e arroz (2,25%) seguiam pressionados. O café, também por razões climáticas que impactaram a produção no Brasil, no Vietnã e na Indonésia, já subiu 25% no varejo nacional.

Em julho e agosto, a alimentação no domicílio caiu de preço, como costuma acontecer na virada do primeiro para o segundo semestre. A sazonalidade na oferta — e consequentemente no preço — dos alimentos não é novidade, e os fenômenos climáticos mais frequentes e extremos afetam intensamente a agropecuária. Não parece razoável estreitar o debate de política monetária a uma variável que os juros não alcançam. É penalizar à toa toda a engrenagem econômica. Veio do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a análise pertinente:

— A economia está rodando bem, forte; os preços estão controlados. A gente está com a questão da seca. O dado do IPCA demonstra claramente que os núcleos estão bem-comportados, mas que a seca está afetando dois preços importantes: energia e alimentos. Isso não tem a ver com juros, juro não faz chover. Tem a ver com o fato de que há um choque de oferta, em virtude da seca. Mas é temporário, não se estenderá no tempo. Daqui a pouco a chuva chega, e os preços voltam ao normal.

O mercado financeiro já estima Selic de 11,75% ao ano em dezembro, o que significa que o Comitê de Política Monetária (Copom) elevará a taxa básica, hoje em 10,75% ao ano, em meio ponto percentual em cada uma das reuniões restantes deste ano, em novembro e dezembro. Como o mercado, a natureza se impõe. Nem a comida nem a energia deixarão de encarecer com os juros de dois dígitos em viés de alta. A dívida pública, por sua vez, subirá. A arrecadação, se a economia esfriar, cairá. Entre o mar e o rochedo, sofre o marisco.

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NUNES NO PILOTO AUTOMÁTICO

Bernardo Mello Franco, O Globo

Favorito, Nunes aciona piloto automático para vencer Boulos

Candidato do PSOL precisará escalar um Everest para alcançar atual prefeito em SP

Ricardo Nunes ligou o piloto automático na eleição de São Paulo. Favorito no duelo com Guilherme Boulos, o atual prefeito adotou a tática do risco zero. Resolveu fugir dos debates e evitar novas companhias que possam atrapalhá-lo.

A primeira pesquisa Datafolha traçou um cenário confortável para Nunes. Ele apareceu com 55% das intenções de voto, ante 33% de Boulos. A distância sugere que o emedebista pode garantir a vitória sem muito esforço. Basta não cometer grandes tropeços e administrar a vantagem até o dia 27.

Na segunda-feira, Nunes esnobou a possibilidade de incorporar Pablo Marçal à campanha. O coach só esperava uma piscadela para formalizar o apoio. “No meu palanque, não”, descartou o prefeito. “Ele que siga o caminho dele, e eu o meu”. Os números do Datafolha explicam a autossuficiência. Sem se mexer, Nunes já herdou 84% dos votos de Marçal. Se aceitasse as exigências do coach, arriscaria se contaminar com parte de sua rejeição.

O cálculo também vale para a relação com Jair Bolsonaro. O ex-presidente deve dar o ar da graça em São Paulo, mas ninguém espera que ele passe a ditar o tom da campanha. A equipe de Nunes prefere reeditar a dobradinha com o governador Tarcísio de Freitas, que já deu resultado no primeiro turno.

A fuga dos debates segue a mesma lógica conservadora. Ontem o prefeito faltou ao duelo organizado por CBN, O GLOBO e Valor Econômico. Alegou agenda cheia, embora tenha encontrado tempo para participar de dez encontros no primeiro turno. Sentado ao lado de uma cadeira vazia, Boulos criticou a atitude de Nunes e mostrou presença de espírito ao chamá-lo de Gasparzinho. Mas não teve a chance de encaixar novos golpes no adversário.

O deputado terá que escalar um Everest para alcançar o prefeito. Mesmo que ele conquistasse todos os indecisos, ele ainda dependeria de um avanço sobre o eleitorado de Marçal — hoje só 4% da turma indica voto no candidato do PSOL. Em política nada é impossível, mas talvez seja mais realista pensar numa estratégia para atenuar uma provável derrota no dia 27. Com dificuldade de se renovar, a esquerda precisa preservar Boulos como opção para o futuro.
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CARDÁPIO REFORMISTA

Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo

Reforma política felizmente deixou de ser vista como panaceia; mudanças incrementais são válidas e podem trazer bons resultados

Não muito tempo atrás, não importa qual fosse o problema que o país enfrentasse, da corrupção à pobreza, alguém levantava a bandeira da reforma política, de preferência sob uma constituinte exclusiva, como solução infalível para a mazela.

Basta, porém, olhar para o estado de algumas democracias ao redor do globo para concluir que as coisas são mais complicadas. Se existe solução ao alcance de uma reforma, precisaríamos reformar o ser humano, não a política.

Daí não decorre que não haja nada a aprimorar no plano institucional. Pelo contrário, às vezes pequenas mudanças podem ter consequências muito positivas.

Precisamos apenas recalibrar as expectativas. A própria ideia de solução tem de ser repensada. Frequentemente, o que vemos como problema é o objeto de desejo de outras nações. Se aqui alguns se queixam do voto proporcional para o Legislativo, que gera bancadas temáticas como as do boi, da Bíblia e da bala, países que adotam o voto distrital puro sonham com um sistema mais parecido com o nosso, que favorece candidaturas de causas e permite mais diversidade no Parlamento.

Acho também que devemos ser menos ambiciosos em relação à pauta. O parlamentarismo é melhor que o presidencialismo, mas não vejo condições objetivas para mudança nas próximas décadas.

Eu guardaria as energias para alterações mais simples, como uma cláusula de barreira mais efetiva, o fim do teto para bancadas estaduais na Câmara (que impõe forte sub-representação aos paulistas), adoção de segundo turno em todos os municípios (no longo prazo, buscaria implantar o voto valorativo) e a abolição dos cargos de vice.

A única reforma de que intelectualmente não abro mão é o fim do voto obrigatório. Sei que existem bons argumentos sociológicos a favor desse instituto, mas penso que ele de alguma forma viola o próprio pacto do Estado liberal, que faculta a cada cidadão decidir o que é importante para si e agir de acordo. Como deixar de comparecer à urna não representa perigo imediato a terceiros, não pode ser uma obrigação.

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A ELEIÇÃO DE 6 DE OUTUBRO

José de Souza Martins, Valor Econômico

Eleição mostra que o Brasil continua, disfarçadamente, o mesmo que sempre foi

Num país partidarizado, mas não politizado, como o nosso, não dá para fazer interpretação de resultados eleitorais com base no pressuposto de que se trata de embate entre esquerda e direita

A eleição de 6 de outubro na cidade de São Paulo não foi uma eleição municipal. Foi anomalamente o primeiro turno da eleição presidencial de 2026.

Um forasteiro, motivado pela ambição de tomar a presidência, veio dos ermos do Brasil central para testar a vulnerabilidade do sistema político brasileiro aos recursos extralegais de manipulação da vontade política do povo. Perdeu, mas confirmou sua hipótese: por apenas menos de 1% dos votos válidos não foi para o segundo turno da eleição local, que lhe abriria o caminho para dominar a nação.

Confiante no seu afã de poder, nas vésperas da eleição, divulgou um atestado médico falso, assinado por médico falso, em nome de médico falecido, em que acusa outro candidato, de esquerda, um pai de família, de ser usuário de droga, coisa que não é.

O teste da aventura golpista ainda não terminou. Se a justiça brasileira não lhe aplicar a lei com rigor e não puni-lo com severidade, terá confirmado que a conspiração golpista que invadiu o poder em 2019 está dando certo.

Assim, São Paulo só terá o primeiro turno de sua eleição municipal no dia 27 de outubro.

Para compreensão do que está ocorrendo, convém ter em conta que, em eleição municipal, num país partidarizado, mas não politizado, como o nosso, não dá para fazer interpretação de resultados eleitorais com base no pressuposto de que se trata de embate entre esquerda e direita. Aqui a direita é funcional, mistura tudo do imaginário popular, até a religião, pelo poder de criação de medo que ela tem.

A referência à polarização ideológica é possível de maneira muito abstrata e abrangente, apenas para situar a eleição no quadro de referência de uma compreensão propriamente política da manifestação eleitoral.

Os resultados indicam a vitória do que nessa classificação pode ser definido como a das facções da direita brasileira, mesmo as disfarçadas de coisa nenhuma. Mas uma direita dividida e esquálida, sem ideário político, mera fúria ideológica contra o que ela define como esquerda.

A tosca e perigosa direita brasileira carece de um programa de superação de problemas locais e nacionais com base no primado de valores do pensamento conservador. A direita brasileira improvisa, chuta, xinga, mente, calunia, difama. Uma técnica que pode resultar em efeito bumerangue como o do falso atestado médico que vitimou o forasteiro.

A esquerda saiu supostamente enfraquecida apenas em relação a uma história de êxitos políticos decorrentes da fragilidade do nosso republicanismo antipolítico e antirrepublicano, clientelista e oligárquico, e do nosso capitalismo atrasado. O vitorioso no retrocesso desta eleição de agora. No poder ela tem cumprido também a função de um partido que supre as carências desse atraso, limitado na possibilidade de sua superação.

A revelação sociologicamente relevante da eleição é a de que a esquerda tem dificuldade para atualizar sua compreensão dialética do que é o processo político no Brasil e do que é a relação entre práxis e realidade social, isto é, entre as mudanças e transformações sociais e a consciência política que delas é necessário ter. Seu desafio é sair da mentalidade de 1960.

A eleição mostrou o crescimento da direita funcional e assinala o declínio de uma esquerda desatualizada quanto às demandas sociais e políticas de uma população vulnerável à alienação e à manipulação. Mostra apenas que o Brasil continua, disfarçadamente, o mesmo que sempre foi.

Referido ao mundo das relações face a face, o voto municipal é mais o da repetição, o das atualizações superficiais e raramente o da renovação.

Mudou a forma da expressão partidária e de seus resultados políticos. Mas o querer político da população continua confuso e incerto. Suas demandas não são propriamente políticas, mas apenas vivenciais.

O município não é diretamente o lugar do embate entre direita e esquerda, senão na mera classificação dos confrontos. É o lugar das carências e necessidades cotidianas do eleitor, pobre ou rico, sobretudo da luta pela superação dos bloqueios que lhe dificultam ou impedem a ascensão social.

O voto do brasileiro ainda é o voto de quem tem horror à política porque nessa perspectiva os eleitos são parasitas dos eleitores em nome do poder. Esse é o mundo político local. Não o da doutrina, mas o da motivação pessoal. A importância que tem o apelido, o nome de urna, nos fala do que é entre nós um intimismo político que é o da dominação patriarcal. O uso do voto para restaurar e reafirmar a estrutura repressiva e tradicional da senzala, do tronco e do capitão-do-mato, que é o verdadeiro sentido da aspiração por uma ditadura militar, como se viu na intentona de 8 de janeiro de 2023.

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PERDAS E GANHOS NUMA ELEIÇÃO PÓS-MODERNA

Artigo de Fernando Gabeira

Houve um consenso de que a direita foi vitoriosa nas eleições municipais. Pouco se falou, entretanto, de que não há nenhuma surpresa nisso. É parecido com reconhecer que a direita domina o Congresso. E concluir que existe uma relação estreita entre essas duas variáveis.

Não só o orçamento secreto, como também suas sucessoras, as emendas Pix, tiveram um papel importante na reeleição dos prefeitos. E certamente, como pagamento, terão influência na recondução dos deputados em 2026. É uma engrenagem que funciona com precisão, e conhecê-la nos livra pelo menos do susto.

O processo ainda não está concluído. Cinquenta e duas cidades, entre elas 15 capitais, terão segundo turno. Mas o volume de votos do primeiro turno mostra que o PL, por exemplo, colheu 14% dos votos computados contra 7,9% do PT. Fora desses dois grandes partidos, importantes federações podem surgir: MDB+PSD=14.643 vereadores e 1.725 prefeitos; PP+União Brasil+Republicanos=16.969 vereadores e 1.751 prefeitos.

A força da direita, entretanto, não pode ser explicada apenas através do jogo orçamentário. Uma variável pouco discutida é o nível de abstenção. Apenas em São Paulo, 2,5 milhões de eleitores deixaram de votar, um número superior à votação de Ricardo Nunes e também à de Guilherme Boulos. Os índices em Porto Alegre chegam a 31,5%.

Há um desencanto com a política. Isso é uma censura à qualidade da vida pública, mas também uma recusa em investir em soluções coletivas.

Como tenho acentuado em alguns artigos, existe uma ideia de que a pessoa depende apenas de seu trabalho e que todos almejam a prosperidade individual, inclusive os políticos que mascaram esse desejo sob o manto de um discurso sobre o bem coletivo.

A força de uma direita mais estridente tem sido atribuída tanto na Europa como nos EUA ao avanço da migração de milhões de pessoas tangidas pelo processo de globalização, guerras e desastres naturais.

No entanto, a origem brasileira dessa corrente não pode ser atribuída à mesma causa, mas aos escândalos de corrupção que abalaram o País e também à diversidade cultural, cada vez mais complexa e ameaçadora. Um candidato de direita pode obter milhares de votos prometendo proibir mulheres trans nos banheiros femininos, mesmo que isso seja um fator numericamente insignificante. Mas interpreta o medo da convivência com estilos de vida estranhos ao convencional.

Não apenas a aparição de uma direita mais radical precisa ser interpretada, mas também as mudanças na visão de mundo que se acentuam com o chamado pós-modernismo. Faz algum tempo que o próprio conceito de verdade foi abandonado. Alguns datam da ida de Colin Powell à ONU, quando mentiu com fotos sobre a existência de armas nucleares no Irã.

Na própria eleição de Donald Trump, a tendência estava definida. Ele supercalculou o número de presentes em sua posse e, questionado, defendeu uma realidade alternativa.

Esse processo acabou se apresentando de forma dramática no Brasil, com a histórias sobre mamadeiras eróticas em 2018 e, finalmente, com o laudo grosseiramente falsificado por Pablo Marçal.

Essas atitudes servem para afastar mais pessoas da política, como se estivessem diante de uma área irremediavelmente contaminada.

No entanto, não se pode simplesmente atribuir a uma corrente cultural, o pós-modernismo e seu questionamento da verdade, esse processo disruptivo.

Muito antes disso, houve, na formulação de Maquiavel: os fins justificam os meios.

Até certo ponto, a direita radical mimetiza alguns comportamentos que existiram na esquerda, mas foram se tornando mais audaciosos com o tempo.

Ainda no período de redemocratização, o processo eleitoral, anterior à hegemonia das redes sociais, era marcado pela divulgação de dossiês contra candidatos. Naquele período, surgiram os precursores de Pablo Marçal: os aloprados.

As diferenças, no entanto, são enormes. Os dossiês eram publicados em revista com circulação limitada. Nas redes sociais, as mentiras circulam entre milhões no espaço de horas. Verdade é que também são desmentidas com rapidez, e os autores das notícias falsas acabam pagando o preço.

Foi assim com Pablo Marçal e foi assim também no primeiro grande caso do gênero, numa eleição espanhola na qual se atribuiu falsamente um atentado a defensores da autonomia basca. Através de celulares foi convocada uma grande manifestação, que repercutiu no resultado eleitoral.

Um dos muitos nós que amarram o crescimento de forças democráticas ou mesmo de esquerda está na rigidez com que veem a questão de prosperidade individual versus soluções coletivas.

A prosperidade individual, a capacidade de empreender num mundo de raros empregos, não deveria ser estigmatizada como ilusão do sistema.

Documentei uma experiência no Vale do Jequitinhonha, em Minas, envolvendo 2 mil mulheres. Foram financiadas para empreender e mantinham contato permanente entre si, trocando experiências e se ajudando. Pelo menos para mim ficou evidente ali que era possível empreender e se interessar pela sorte coletiva.

Este é o outro lado do crescimento da direita: o erro dos adversários.

Artigo publicado no jornal Estadão em 11/10/2024

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segunda-feira, 7 de outubro de 2024

PASSADO E FUTURO DAS ELEIÇÕES

Artigo de Fernando Gabeira

Acabou? Ainda não acabou de todo. Mas já dá para afirmar que as eleições não são mais aquelas. Principalmente para mim, que participei diretamente de quase todas do período democrático.

Eu as achei mais tristes que outrora. Como candidato, caí em muitas ciladas. Cilada era ir a um evento programado para conquistar votos e encontrar apenas o autor do convite acenando alegremente uma bandeirinha. Escapar das ciladas com leveza e bom humor é uma arte necessária, porque elas são presentes mesmo na vida de quem não é candidato.

Agora, vi algumas pessoas tristes portando uma bandeira encardida, com nome e número. Eram pagas para isso, passaram horas solitárias numa esquina movimentada. Pareciam dizer:

— Meu candidato fará cemitérios limpos e acessíveis.

Os debates antes eram calorosos. Mesmo os que contestavam o sistema o faziam com elegância e rigor gramatical, como o Dr. Enéas. Lembro-me de um debate para o governo do Rio em que a angústia de Aarão Steinbruch me comoveu. Ele estava perto dos 70 anos, precisava ir ao banheiro, e o intervalo não chegava. Com a idade, passei a entender mais essa urgência. Aliás, o próprio Ulysses Guimarães dizia em suas viagens políticas:

— Sempre que houver um banheiro, use, pois não se sabe nunca quando aparecerá outro.

Outro dia, lembrei-me dos comícios de campanha. Sempre havia um bêbado interagindo ruidosamente com os oradores.

Tudo isso acabou. E, se me refiro a essa época com alguma nostalgia, é porque era mais leve. O traço distintivo talvez fosse este: achávamos que a democracia era irreversível e cada vez mais se aperfeiçoaria. Hoje surgiu a sombra do autoritarismo, a possibilidade de regressão, inexistente no quadro da democracia idealizada.

Naqueles anos já havia a globalização. Nos países mais ricos, uma classe média começava a se sentir ameaçada pela emigração que furava a fila nas suas pretensões de ascensão social. As lutas identitárias já existiam. Trabalhei com elas, mas ainda não levavam à severidade do politicamente correto. As reações à diversidade crescente ainda não encontravam a resistência dramática dos que experimentam a política como missionários e acham que existe apenas uma única visão de boa vida, extensiva a todos.

A verdade é que a política tão presencial do passado, o corpo a corpo cotidiano, se deslocou para as redes. Milhões de pessoas a seguem pelo WhatsApp. Ao mesmo tempo que se torna mais vulnerável, a democracia avança. Talvez isso explique a enigmática frase de Ulysses Guimarães quando se reclamava do nível do Congresso:

— Esperem o próximo. Vai ser pior.

Tive alguma esperança na eleição de São Paulo. Ela apresentou um aventureiro jogando na distância entre a política e o povo e acabou resultando em debates melancólicos. Pablo Marçal ficou fora do segundo turno.

As soluções nas grandes metrópoles são fascinantes. Copenhagen reduziu suas emissões de CO2 de forma drástica; Paris recuperou o Rio Sena; os chineses experimentam a ideia de cidades-esponja para enfrentar grandes chuvas.

Nós contribuímos com uma cadeirada cinematográfica no candidato. Apesar disso, alguns sinais sugerem que a tão decantada polarização não dominou tudo. Os grandes eleitores, Lula e Bolsonaro, não tiveram o papel que se projetava para eles. Novos e promissores quadros políticos têm surgido, ainda que não tenham conquistado vitória eleitoral.

Faltou a experiência de uma campanha sorridente, otimista, voltada para o futuro, como a de Kamala Harris nos Estados Unidos. É preciso esperar ainda o resultado das eleições americanas para ver se o antídoto à indiferença e ao ressentimento funcionam. O que acontece lá não se reproduz mecanicamente noutros lugares, mas dá uma ideia de como tratar essa onda de rancor que domina a política dos nossos dias.

Artigo publicado no jornal O Globo em 07/10/2024

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quinta-feira, 3 de outubro de 2024

MORRE CID MOREIRA

Do g1 Rio

Cid Moreira, ícone do jornalismo da televisão brasileira, morre aos 97 anos

Jornalista, locutor e apresentador estava internado em um hospital em Petrópolis, na Região Serrana do RJ, desde o início de setembro, e teve falência múltipla dos órgãos.

Morreu nesta quinta-feira (3) o jornalista, locutor e apresentador Cid Moreira, um dos rostos mais icônicos da televisão brasileira, aos 97 anos.

Ele estava internado no Hospital Santa Teresa, em Petrópolis, na Região Serrana do RJ, desde o dia 4 de setembro, quando deu entrada com insuficiência renal crônica. O quadro piorou, e às 8h desta quinta Cid morreu de falência múltipla dos órgãos.

Segundo o Memória Globo, Cid Moreira apresentou o Jornal Nacional cerca de 8 mil vezes.

O corpo do jornalista será enterrado em Taubaté, sua cidade natal. Ainda não se sabe a data e em qual cemitério será a cerimônia de despedida.

Estão previstos ainda dois velórios: um nesta quinta em Itaipava, na Região Serrana, e outro na sexta (4) no Palácio Guanabara, em Laranjeiras, na Zona Sul do Rio.

Vida e carreira

Cid Moreira nasceu em Taubaté, no Vale do Paraíba, em 1927 — ele completou 97 anos no último domingo (29).

O jornalista iniciou a carreira no rádio em 1944, depois de ser descoberto por um amigo que o incentivou a fazer um teste de locução na Rádio Difusora de Taubaté. Nos anos seguintes, entre 1944 e 1949, ele narrou comerciais até se mudar para São Paulo, onde trabalhou na Rádio Bandeirantes e na Propago Publicidade.

Em 1951, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde foi contratado pela Rádio Mayrink Veiga. Foi lá que, entre 1951 e 1956, começou a ter suas primeiras experiências na televisão, apresentando comerciais ao vivo em programas como “Além da Imaginação” e “Noite de Gala”, na TV Rio.

Sua estreia como locutor de noticiários aconteceu em 1963, no “Jornal de Vanguarda”, da TV Rio, o que marcou o início de sua carreira no jornalismo televisivo. Nos anos seguintes, trabalhou nesse mesmo programa em várias emissoras, como Tupi, Globo, Excelsior e Continental, consolidando sua presença na televisão.

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Ele estreou o JN

Em 1969, Cid Moreira voltou à Globo para substituir Luís Jatobá no “Jornal da Globo”, que então ia ao ar às 19h45. No mesmo ano, foi escalado para a equipe do recém-lançado “Jornal Nacional”, o 1º telejornal transmitido em rede no Brasil. A estreia ocorreu em setembro de 1969, e Cid dividiu a bancada com Hilton Gomes.

Cid Moreira contou do nervosismo na estreia daquele que, em pouco tempo, seria o principal telejornal da televisão brasileira. “Eu chegava no horário de fazer o jornal, não participava da redação. Eu só ia para apresentar o jornal. Naquele dia, cheguei e vi aquele nervosismo, todo mundo preocupado. E, para mim, era normal. Mas no dia seguinte, vi na capa do jornal O Globo: ‘Jornal Nacional…’ Aí comecei a perceber a dimensão”, revelou ao Memória Globo.

Dois anos depois, iniciou uma parceria de longa data com Sérgio Chapelin. Durante 26 anos, Cid foi o principal rosto do JN. Sua voz tornou-se sinônimo de credibilidade, e seu “boa-noite” diário marcou a televisão brasileira.

Em 1996, uma reformulação do programa trouxe novos apresentadores, William Bonner e Lillian Witte Fibe, com Cid Moreira dedicando-se à leitura de editoriais.

‘Senhor de todos os sortilégios’

Paralelamente, Cid também participou do “Fantástico” desde sua estreia, em 1973, revezando com outros apresentadores. Em 1999, ele narrou o famoso quadro de Mr. M, que se tornou um grande sucesso do programa. Sua voz icônica ficou tão ligada ao quadro que ele entrevistou o próprio Mr. M quando o ilusionista visitou o Brasil no ano seguinte.

A partir da década de 1990, Cid começou a se dedicar à gravação de salmos bíblicos. Em 2011, realizou o objetivo de gravar a Bíblia na íntegra, projeto que se tornou um grande sucesso de vendas.

Em 2010, foi lançada a biografia “Boa Noite – Cid Moreira, a Grande Voz da Comunicação do Brasil”, escrita por sua esposa, Fátima Sampaio Moreira. Durante a Copa do Mundo daquele ano, ele gravou a famosa vinheta “Jabulaaani!” para a cobertura do “Fantástico” e programas esportivos da Globo, adicionando mais um capítulo à sua ilustre carreira.
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