O processo sobre a tentativa de golpe deve ser julgado em
setembro. Até lá, o debate entre juristas pode esclarecer alguns pontos. No
entanto, existem certos aspectos que permanecem um pouco nebulosos para mim.
Um deles é o elo entre os preparativos para a tentativa de
golpe e as invasões de 8 de janeiro em Brasília. É possível depreender dos
depoimentos, provas e gravações que a virada de mesa dependia basicamente de
dois fatores.
O primeiro deles era a suspeição sobre as urnas eletrônicas.
Bolsonaro investiu pesado nisso. Começou por duvidar de sua própria vitória nas
eleições de 2018; fez reuniões com embaixadores para disseminar a suspeita;
recebeu hacker no Palácio da Alvorada e, de uma certa forma, introduziu a
ambiguidade num relatório da comissão das Forças Armadas que não encontrou
indício de fraude.
O segundo fator era a mobilização popular. Bolsonaro achava
que a denúncia de fraude seria um fator importante para colocar gente nas ruas.
A porta dos quartéis foi o lugar de encontro, e no dia 12 de dezembro houve
conflitos em Brasília, numa espécie de ensaio geral para o desejado caos.
Os dois fatores essenciais, denúncia das urnas e agitação
popular, eram o que Bolsonaro contava para assinar um decreto de golpe e obter
o apoio das Forças Armadas para sua aventura. No entanto, quando ocorreu o 8 de
Janeiro, uma tríplice invasão aos Poderes da República, Bolsonaro não estava
mais no governo, assim, ele não poderia assinar nenhuma minuta de golpe.
Outro aspecto da conjuntura que havia sido alterado entre
dezembro e janeiro foi que os comandos das Forças Armadas foram trocados,
conforme advertiu, numa mensagem, o general reformado Mário Fernandes.
Portanto, a chamada festa da Selma, que reuniu gente de todo
o País em Brasília, tinha a característica de um ato de desespero: Bolsonaro já
não podia assinar decretos, as Forças Armadas, que recusaram apoio em dezembro,
estavam ainda mais predispostas a se afastar de um golpe. Os líderes mais
informados sabiam que a conjuntura mudara. Quem assinaria um decreto de
Garantia da Lei e da Ordem (GLO) seria o Lula, um político experiente que
perceberia o perigo de uma decisão dessa natureza.
Ainda assim, a manifestação preparada em escala nacional
aconteceu. Foi como se dissessem: falhou toda a articulação de cúpula, a
iniciativa popular que se resolva.
Para os líderes, era tranquilo porque, na verdade, quem
arriscaria o pelo seria a multidão. Bolsonaro estava nos Estados Unidos. Seu
ex-ministro da Justiça Anderson Torres também foi para os Estados Unidos,
licenciando-se do cargo de secretário de Segurança de Brasília.
A única esperança que movia a multidão era a ideia de que as
Forças Armadas, indiferentes ao movimento na porta dos quartéis, iriam se
sensibilizar com os conflitos da tríplice ocupação.
Não sei como esses episódios serão examinados juridicamente.
Mas a verdade é que os líderes foram incapazes de desmobilizar os manifestantes
e esperavam, em lugares seguros, o desfecho daquele drama histórico.
Os participantes do 8 de Janeiro foram uma verdadeira massa
de manobra. Colocaram a cara para as câmeras, quebraram o que podiam com as
próprias mãos, possivelmente contando com a impunidade e futuras menções de
honra.
Certamente, foram iludidos pelas análises, inclusive uma de
Olavo de Carvalho, divulgada depois de sua morte, antes da festa da Selma, na
qual afirmava que o Exército só se mobiliza quando o caos se instala.
Mas foram iludidos também pelas mensagens ambíguas de
generais e militares de outras patentes indicando que algo iria acontecer. O
próprio Bolsonaro estava esperando algo, uma esperança bem vaga, mas suficiente
para manter as pessoas mobilizadas.
O julgamento é de uma tentativa de golpe contra o Estado de
Direito. Mas houve também golpe contra a ingenuidade popular, uma suposição de
que todos cumpririam seu papel, quando, na verdade, os líderes estavam
abrigados longe dali.
O ideal seria um julgamento que abordasse o conjunto dos
acontecimentos, envolvendo todos os acusados. Os manifestantes do 8 de Janeiro
foram julgados e condenados por seus atos, é verdade. Mas, vistos num quadro
mais amplo, mostraram-se mais destemidos do que seus líderes e, nestes
primeiros anos, por outro lado, confirmam o ditado de que a corda arrebenta
sempre do lado mais fraco.
Faltam ainda detalhes sobre a preparação do 8 de Janeiro.
Assim como algumas informações sobre a preparação do golpe no mês de dezembro
ainda podem aparecer. Mas a grande curiosidade é saber como se fará justiça a
pessoas que tiveram papéis diferentes, inclusive aquelas condenadas a longa
penas: em caso de êxito do golpe de Estado, talvez continuassem sua vida
modesta e obscura, completamente esquecidas dos líderes que viriam recolher os
aplausos pela tomada do poder.
Artigo publicado no Estadão em 28/02/2025
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