Resistiu a participar do sindicato, foi contra a aliança de
trabalhadores com estudantes, menosprezou o apoio da Igreja Católica, resistiu
à campanha Diretas-Já, vetou a colaboração do PT com o governo Itamar Franco,
boicotou a Constituinte de 1988, criticou o Plano Real e considerou
"herança maldita" os avanços sociais de Fernando Henrique Cardoso,
seu predecessor. Quem construiu esse perfil, antes de chegar à Presidência da
República e deixar o poder, ao fim de oito anos de mandato, com mais de 80% de
aprovação popular, só pode ser considerado um conservador e é essa a avaliação
do jornalista José Nêumanne Pinto no livro
O que sei de Lula, no qual chega a
uma conclusão, no mínimo, surpreendente: "Lula nunca foi de
esquerda".
Repórter, editor de política , escritor e, atualmente,
articulista de O Estado de S. Paulo, com mais de 40 anos de profissão, Nêumanne
conta, com conhecimento de causa e informações privilegiadas, a história de
Luiz Inácio Lula da Silva - a ascensão admirável do menino retirante que fugiu
do sertão pernambucano, do operário metalúrgico do ABC paulista, do militante
sindical que ajudou a derrubar a ditadura militar e do três vezes candidato a
presidente e depois titular do Palácio do Planalto. Paraibano de Uiraúna,
cidade natal também da deputada Luíza Erundina, ele sabe o que custou a
trajetória daquele que é, em sua opinião, o maior político brasileiro de todos
os tempos.
"Meu objetivo, ao escrever esse livro, foi descobrir o
homem atrás do mito", revela Nêumanne, um pesquisador incansável que
consultou biografias, conferiu entrevistas, ouviu testemunhas e revirou
lembranças de seus tempos de repórter, para contar os bastidores da carreira de
Lula, um personagem fascinante que ele pretende ter analisado com isenção e
justiça, apesar da opinião contrária daqueles que não deverão perdoá-lo por
estar contando o que sabe. "Os áulicos de Lula certamente encontrarão na
revelação desses incidentes motivos para execrar esse livro, da mesma forma que
já condenam o autor, mas não mudarão o fato inexorável de que, como ele mesmo
narrou, delatou camaradas menos aptos para levar vantagem pessoal pecuniária no
princípio de sua vida profissional", prevê Nêumanne.
Há revelações inéditas, fatos inconfessáveis, conclusões
incômodas. "Descobri que Lula, filho de um canalha e uma santa, um sujeito
de sorte cavalar, consegue construir em cima dos equívocos, não dos
acertos", afirma Nêumanne, ao explicar que, apesar de falhas e defeitos,
seu protagonista se tornou um "fenômeno fantástico de popularidade porque
as pessoas se identificam com ele". O jornalista lembra que Lula recebeu
Leonel Brizola com hostilidade quando o político gaúcho voltou do exílio e que
nunca negou sua admiração pelo governo do general Ernesto Geisel. Quem
organizou a greve dos metalúrgicos do ABC, acrescenta Nêumanne, foi Frei Betto
e não Lula - uma afirmação que o frade dominicano considera exagerada.
Amigos e companheiros de luta do operário-presidente poderão
discordar, mas será difícil rebater o autor. "Poucas pessoas armazenaram
tanta informação sobre a política brasileira", observa na Apresentação do
livro o professor Leôncio Martins Rodrigues, lembrando que "mais do que
simples repórter, descobridor e narrador de fatos, Nêumanne é um analista capaz
de aprofundar e conectar os eventos particulares a situações mais gerais, às
teorias e interpretações sobre o Brasil". Os fatos narrados, acrescenta o
cientista político, são fatos que Nêumanne viveu. O autor conhece os
personagens e, em alguns casos, esteve presente na cena dos acontecimentos que
narra.
Paralelamente à biografia de Lula, em parte baseada em obras
de outros biógrafos, como Denise Paraná e Audálio Dantas, além de entrevistas
do próprio biografado, Nêumanne rememora o cenário da política e a atuação de
políticos brasileiros no contexto das últimas décadas, da ditadura de Getúlio
Vargas aos primeiros meses de governo de Dilma Rousseff. A construção de
Brasília, o golpe de 1964, o quadro econômico e as denúncias de corrupção
ocupam páginas de análise lúcida e competente. Os assassinatos de petistas
ligados a Lula, como Celso Daniel no ABC e Toninho (Antônio da Costa Santos) em
Campinas, são tratados com apurada técnica de reportagem. Outro destaque é o
perfil que o autor traça de personagens como José Alencar, Duda Mendonça e José
Dirceu.
Nêumanne dá a Lula o título de "perdoador-geral"
dos escândalos que estouraram em sua administração e chama o assessor especial Marco
Aurélio Garcia de "bajulador-geral" da República. "Quem conhece
Lula - como eu conheço - sabe muito bem que ele não mudou tanto assim desde que
emergiu no país como líder dos sindicalistas do ABC paulista até seus dias de
apogeu no poder republicano", afirma o jornalista, ao criticar a política
externa adotada pelo ex-presidente com relação a Cuba e ao Irã, com assessoria
de Garcia e do ex-chanceler Celso Amorim. Embora considere seu texto imparcial,
Nêumanne não resiste à ironia, ao lembrar a formação de poucos estudos de Lula.
"Noço guia universal", escreve o jornalista, referindo-se ao
ex-presidente.
Dilma Rousseff, na qual Lula apostou seu futuro, abrindo mão
de uma eventual e provável reeleição, é a personagem central no Epílogo. Um
atraso na publicação do livro, que deveria ter sido lançado em dezembro - após
a eleição de Dilma, mas antes de Lula descer a rampa do Planalto - acabou dando
melhor fecho à história. O que parecia mais especulação ganhou consistência, ao
se completarem seis meses de governo. Ao registrar mudanças de rumos, ou pelo
menos de estilo, na administração federal, Nêumanne transcreve os elogios que
Dilma fez a Fernando Henrique na comemoração dos 80 anos do ex-presidente, a
quem definiu como "acadêmico inovador" e "político habilidoso",
sem mais referência à "herança maldita" da qual Lula falava na
campanha eleitoral.