“Coloque o dedo na ferida: sem as assinaturas é uma
esperança vã, impossível de frutificar”. A frase, do ministro Marco Aurélio
Mello, do Tribunal Superior Eleitoral, equivale a uma potencial sentença de
morte para a Rede, a “vã” esperança partidária de Marina Silva. Marco Aurélio
tem razão quando põe o dedo na “ferida” jurídico-administrativa, mas a “ferida”
política está em outro lugar: na democracia brasileira não existe liberdade
partidária. Por que eu, meu vizinho e um grupo de amigos não podemos decidir,
hoje, fundar um partido e vê-lo, amanhã, reconhecido mediante a simples
apresentação de um estatuto? Isso é liberdade partidária — algo que não temos
pois a elite política decidiu, em seu proveito, estatizar os partidos
políticos.
A Constituição de 1988 consagrou a estatização dos partidos,
refletindo um consenso de nossa elite política. Os partidos oficiais adquiriram
o curioso direito de avançar sobre o bolso de todos os cidadãos, extraindo-lhes
compulsoriamente os recursos que financiam o Fundo Partidário e as propagandas
partidária e eleitoral nos meios eletrônicos de comunicação. Em 2012, as
dotações do orçamento federal para o Fundo Partidário somaram R$ 286,2 milhões.
Nós todos pagamos R$ 850 milhões, em 2010, sob a forma de compensações fiscais
às emissoras de tevê e rádio, pela transmissão dos horários cinicamente
rotulados como “gratuitos” e utilizados pelos partidos. O projeto do PT de
reforma política, que almeja introduzir o financiameno público de campanha, tem
a finalidade de expandir ainda mais a transferência de recursos da sociedade
para os políticos profissionais.
A Justiça Eleitoral é, ao lado da Justiça do Trabalho, uma
das desastrosas invenções do varguismo. Nenhuma democracia precisa de tribunais
para organizar eleições, missão que pode ser cumprida por meros órgãos
administrativos. A razão de ser de nossos tribunais eleitorais encontra-se no
princípio anti-democrático da subordinação dos partidos ao Estado. O aparato
judicial especializado desempenha a função de identificar os partidos que
cumpriram os requisitos legais para tomar dinheiro dos cidadãos — e,
eventualmente, disputar eleições. “Não cabe estabelecer critério de plantão
para esse ou aquele partido”, explicou Marco Aurélio referindo-se à Rede, antes
de concluir com a inflexão típica do juiz que zela pela igualdade de direitos:
“Abre-se um precedente muito perigoso”. De fato: os princípios da liberdade
partidária e da estatização dos partidos são inconciliáveis — e, para preservar
o segundo, nosso ordenamento político sacrifica o primeiro, sem jamais abrir
perigosos precedentes.
Os partidos estatais formam um dos pés do tripé que sustenta
um sistema político avesso ao interesse público e orientado para a corrupção
sistemática. O segundo pé são as coalizões em eleições proporcionais, um
expediente de falsificação da vontade do eleitor destinado a conferir
viabilidade a partidos que não representam ninguém mas acomodam frações
periféricas da elite política. O terceiro pé é a prática de loteamento político
da máquina estatal, propiciada pela escandalosa existência, apenas na esfera
federal, de quase 50 mil cargos de livre nomeação. A privatização do Estado é o
outro lado da moeda da estatização dos partidos políticos. “Não tem conversa, a
lei é peremptória”, enfatizou Eugênio Aragão, vice-procurador-geral Eleitoral,
alertando para os limites legais ao direito de candidatura. Hoje, diante do
pedido de registro da Rede de Marina, a Justiça Eleitoral emerge como fiadora
burocrática dos interesses gerais da elite política, que não pode abrir mão da
coerência do conjunto do sistema.
No balcão cartorial do Estado brasileiro, registrar partidos
é um negócio tão lucrativo quanto fundar sindicatos ou igrejas. PTC, PSC, PMN,
PTdoB, PRTB, PHS, PSDC, PTN, PSL, PRB, PPL, PEN — a sopa de letrinhas das
legendas oficiais vazias produz a falsa impressão da vigência de ampla
liberdade partidária. Aplicando sua inteligência à produção de sofismas, Marco
Aurélio argumentou que a ausência da Rede não prejudicaria as eleições de 2014
pois, afinal, o país não carece de partidos. Na esfera exclusiva da lógica
burocrática, o ministro tem razão: todos poderão votar em partidos que não
representam ninguém, mas cerca de um quarto do eleitorado experimentará a
impossibilidade de sufragar a candidata de sua preferência. De certo modo, o
Irã é aqui.
Marina e os seus não aprenderam direito as regras do jogo,
explicam nos jornais os ínclitos políticos fundadores de legendas de aluguel e
seus advogados especializados nos “negócios do Brasil”. Mas, como atestado de
uma devastadora crise política e moral, ninguém pergunta aos representantes de
nossa elite política sobre a natureza das regras desse jogo. Três meses atrás,
centenas de milhares de manifestantes tomaram as ruas para expressar sua
frustração e sua ira com um Estado hostil à sociedade. Depois disso, o Supremo
Tribunal Federal decretou que os políticos de sangue azul se distinguem dos
cidadãos comuns pelo privilégio da impunibilidade. Agora, o Tribunal Superior
Eleitoral prepara-se para, aplicando as leis vigentes, cassar o direito de voto
de um quarto dos brasileiros. Entre o Brasil oficial e o Brasil real, abre-se
um fosso ameaçador, quase intransponível.
Nos círculos próximos a Marina, comenta-se que ela não
aceitará a alternativa de concorrer às eleições por uma legenda de negócios.
Numa hipótese viciosa, o gesto de desistência configuraria uma rendição
disfarçada por discursos de indignação — e Marina contrataria um despachante
astuto para viabilizar a Rede no horizonte de 2018. Por outro lado, na hipótese
virtuosa, seria um ato de bravura e resistência: o ponto de partida para uma
“anticandidatura” de mobilização da sociedade contra a estatização dos partidos
e a privatização do Estado. Estou sonhando?
Artigo do sociólogo Demétrio Magnoli publicado no O Globo
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